Bernardo Lago e Maria de Sousa eram dois portugueses que, como tantos, em meio às dificuldades que Portugal vivia sob o regime salazarista depois da Segunda Guerra Mundial, decidiram tentar sorte em África. Daquele continente, vinham notícias boas, falava-se e mandava-se em português e havia trabalho. Por isso, escolheram Moçambique.
Da união de Bernardo e Maria, nasceria Pedro Lago, já em solo moçambicano. É a história desse menino, que, depois, viraria pintor, que conta o romance M´Africando, de José Cavalheiro Homem, nome recriado de Adelino José Cavalheiro Gonçalves, controlador de tráfego aéreo e piloto em Portugal, filho de pais portugueses, que nasceu e viveu a sua juventude em Luena, em Angola.
Não é preciso dizer que Pedro Lago é um alter ego, o instrumento que o autor encontrou para retirar do fundo da memória passagens de sua vida africana. Sem contar que suas constantes passagens por terras africanas têm-lhe servido como fonte de inspiração, aguçando-lhe a criatividade e alimentando-lhe a imaginação, como se lê na apresentação do livro.
O romance é constituído por 25 partes, que, na verdade, podem ser lidas independentemente, como se fossem contos. E ainda traz um glossário com as palavras de origem africana, vocábulos da terra, que foram adicionadas ao português falado em Moçambique. E outras do português antigo que, provavelmente, já foram esquecidas em Portugal, mas que tanto em Moçambique como no Brasil continuam a sair da boca do povo, como catinga (cheiro característico de negro), farnel (mala em que se transporta alimentação para viagem), moleque (adolescente) e enxotar (mandar alguém embora). Sem contar expressões típicas do linguajar luso-moçambicano, como chamar de mata-bicho à primeira refeição do dia, pequeno almoço em Portugal e café da manhã no Brasil. Ou ainda corruptelas como mazé, apócope de mas é! no sentido de confirmar algo sucedido.
Permeado por essas expressões, o texto de Cavalheiro Homem é prosa que se lê com prazer, pois suscita evocações de um tempo que as novas gerações já nem acreditam que possa ter existido. É o que se pode constatar no capítulo “O professor com cara de galinha” em que o menino Pedro Lago é submetido a castigos físicos aplicados por seu professor e pelo diretor da escola, ambos de vara à mão.
A passagem fez este recenseador lembrar de seus tempos na escola primária mantida pelos operários portuários da cidade de Santos, em São Paulo, nos anos 50, em que havia pelo menos duas professoras exímias em aplicar castigos físicos a alunos considerados relapsos. Uma, senhora de mais de 60 anos, era extremamente hábil e certeira ao atirar de sua mesa uma régua de madeira maciça na testa do aluno ao fundo da sala; outra, ao redor dos 40 anos, menos hábil e mais irritadiça, recorria ao clássico “telefone”, ou seja, dava socos ou tapas com a mão espalmada ao mesmo tempo nos ouvidos do aluno, método que, mais tarde, seria disseminado pela polícia política entre os adversários do regime militar implantado em 1964 ou generalizadamente nos distritos policiais.
Como Mia Couto, Cavalheiro Homem também recorre à criação de palavras, à la Guimarães Rosa, como são exemplos devagarar (no sentido de tornar-se mais lento), despacientou-se, alonjava, dessaber ou dessabedoria (no sentido de não ter conhecimento) e outras expressões. E o faz não por imitação barata, mas porque essa é uma característica da linguagem falada em Moçambique a que nenhum autor local pode passar imune.
M´Africando segue até a juventude de Pedro Lago, contando os seus sonhos de se tornar pintor reconhecido em meio às telas que ia produzindo, até que, um dia, um eczema passou-lhe a incomodar a vista, a ponto de caminhar para a cegueira, o que o fez abandonar pincéis e tubos. Mas a vista seria recuperada e a vida seguiria seu rumo normal, entre jogos de futebol, o trabalho numa oficina de reparação de barcos e, depois, como piloto de avião, os amores da juventude, as viagens pela mata, as chuvadas de lama, as caçadas, uma viagem da África Oriental à África Ocidental.
Se carece de um enredo mais rocambolesco, este romance esbanja imagens e evocações de um expatriado que, provavelmente, gostaria de continuar a seguir vivendo em África, fossem outras as circunstâncias, e que, portanto, não suporta o desterro e procura livrar-se dele mediante o regresso figurado aos lugares de sua infância e juventude. A busca da terra ausente constitui a sua metáfora criadora.