Resultado da paixão de duas professoras cariocas pelas literaturas africanas em língua portuguesa, África & Brasil: letras em laços, publicado inicialmente em 2002 com tiragem reduzida, sai agora em segunda edição, com três novos ensaios, aumentando assim o número de escritores com suas obras discutidas e analisadas.
A critério das organizadoras, com o apoio do professor Russel Hamilton, catedrático de Literatura Africana Lusófona, Brasileira e Portuguesa da Universidade de Vanderbilt, Estados Unidos, não se fez uma antologia de textos de escritores africanos, mas de estudos de especialistas sobre as obras de 19 autores: Agostinho Neto, António Jacinto, Arnaldo Santos, Boaventura Cardoso, Costa Andrade, João Maimona, João Melo, José Eduardo Agualusa, Luandino Vieira, Manuel Rui, Paula Tavares, Pepetela e Ruy Duarte de Carvalho, de Angola; Dina Salústio e Vera Duarte, de Cabo Verde; Eduardo White, José Craveirinha, Mia Couto e Luís Bernardo Honwana, de Moçambique. Por aqui se vê que os escritores angolanos ganharam um espaço desmedido em relação aos seus colegas de Moçambique e Cabo Verde — sem contar os autores dos demais países africanos de expressão portuguesa esquecidos —, mas, de qualquer modo, como reconhecem as autoras, um volume não poderia mesmo ter a pretensão de comportar nem de longe o número de importantes escritores africanos. O que vale é que os estudiosos escolhidos produziram textos de alto nível. De assinalar também é que todos são professores universitários brasileiros, o que prova que o Brasil — pelo menos nas universidades — não está assim tão de costas viradas para a África, como se imagina. E que esses ensaios reunidos são um caminho seguro para quem pretende conhecer uma literatura que, apesar das singularidades históricas e culturais de cada país, está umbilicalmente ligada à língua de Camões. Numa extensa introdução, Russel Hamilton, como a admitir a inevitável falha do esquecimento, faz uma relação de autores que poderiam aparecer num eventual segundo volume, como Agostinho Mendes de Carvalho, Manuel dos Santos Lima, Sousa Jamba, Manuel Pacavira, Henrique Abranches, Fragata de Morais, Domingos Van Dúnem e José Mena Abrantes, de Angola; Juvenal Bucuane, Hélder Muteia, Filimone Meigos, Armando Artur, Nélson Saúte, Ba Ka Khosa, Lília Momplé e Paulina Chiziane, de Moçambique; e ainda Corsino Fortes, João Varela, Oswaldo Osório, Armênio Vieira, Orlanda Amarílis, Manuel Veiga e Germano Almeida, de Cabo Verde; além de Amílcar Cabral, Vasco Cabral, Hélder Proença, José Carlos Schwartz, Tony Tcheka, Domingos Samy e Abdulai Sila, da Guiné-Bissau; e Alda Espírito Santo, Frederico Gustavo dos Anjos, Francisco Costa Alegre, Conceição Lima e Albertino Bragança, de São Tomé e Príncipe. Como se vê, o especialista norte-americano esqueceu-se de que na província da Casamansa, no Senegal, vizinha da Guiné-Bissau, também se fala um português igualmente influenciado por idiomas locais. E que, com certeza, por lá há de haver poetas, contistas e romancistas que tenham publicado suas produções, senão em livros em português — o que é terminantemente proibido pelo governo de Dacar —, pelo menos em jornais ou revistas clandestinos que tenham circulado em Zinguinchor ou mesmo fora da província. Aliás, aproveitando que este artigo há de circular também por grande parte do mundo lusófono africano e pela Internet, quem souber desses autores que escreva para o e-mail abaixo. E não vale mencionar Leopold Senghor, ex-presidente senegalês nascido na Casamansa, cuja fina poesia é de raiz francófona. Se a Casamansa ainda se encontra numa fase que a maioria dos países africanos de expressão portuguesa superou na década de 1970, as demais nações já têm o colonialismo apenas como um quadro na parede, uma etapa transposta, que já não influencia a poesia nem os romances e contos de seus novos autores. Como diz Rita Chaves, doutora em Letras e professora da Universidade de São Paulo e professora-visitante da Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, em seu ensaio “O sal da rebeldia sob ventos do Oriente na poesia moçambicana” sobre a obra de Eduardo White (1963), na geração que viveu as últimas décadas do colonialismo, a distinção articulava-se a um projeto de independência construído sob o signo da unidade nacional, com a noção de identidade vinculada à rebeldia aos valores coloniais. Mas, hoje, mais de três décadas de conquistada a independência, é a procura de um “fundo nacional genuíno” que motiva os poetas, romancistas e contistas, impelindo-os a resgatar as heranças culturais de seu povo — que, de qualquer modo, também passam pela presença do idioma português. Na poética de Eduardo White, por exemplo, como observa Rita Chaves, essa busca de identidade penetra por outros terrenos e vai projetar-se noutras águas a partir da ilha de Moçambique, onde esteve o navegador português Vasco da Gama em 1498 e por onde passaram três dos maiores poetas da língua portuguesa — Camões, Bocage e Tomás Antônio Gonzaga. Ali, na Muipiti, nome macua da ilha, local de passagem e interpenetração de muitas culturas, lembra a estudiosa, White tem ido buscar “as sedas, o m´siro, as miçangas, as oferendas de Java, o séquito ajawa, o curandeiro macua, o monge birmanês, com que se compõe o desenho do universo em que projeta a sua identidade”. Se White já cresceu dentro da nova realidade de seu país — em meio à guerra civil que o destroçou —, isso não se deu com Paula Tavares (1952), que viveu em Angola os dias da independência e participou ativamente do processo de reconstrução de seu país. E, hoje, continua a fazê-lo, ainda que à distância, vivendo em Portugal. Talvez por isso as marcas de sua poesia, como observa com acuidade Laura Cavalcante Padilha, doutora em Letras e professora da Universidade Federal Fluminense, no ensaio “Paula Tavares: e a semeadura das palavras”, são a dor e o sofrimento causados pela guerra civil e pela destruição daquele sonho de seus companheiros de aventura. É o que se pode perceber por uma crônica que escreveu para o programa semanal que manteve na RDP África entre 1996 e 1998: “Passaram vinte e um ano e não se trata já da maioridade, a maioridade agora atinge-se mais cedo e sem dor, trata-se sim de olhar no espelho a nossa própria velhice e a velhice da pátria apodrecida pela guerra, fermentada de fome, adiada de projectos”. Já na poesia da caboverdiana Vera Duarte (1952), como diz no ensaio “Duarte-Vera poesia multifacetada no espelho cabo-verdiano” a professora Maria do Carmo Sepúlveda, doutora em Letras Vernáculas pela Universidade Federal Fluminense, o que marca é o seu envolvimento com as causas populares e a libertação da mulher do jugo masculino. Formada em Direito na Universidade Clássica de Lisboa num período de muitas mudanças sociais, Vera Duarte, primeira mulher magistrada de seu país e hoje juíza desembargadora, engajou-se desde cedo na luta pela emancipação feminina e aprofundou seu interesse pelos direitos humanos, o que, segundo Maria do Carmo Sepúlveda, tem-se refletido em sua poesia até hoje. “Sua voz expressa o desejo de falar não só de suas companheiras, mas de seu povo, pois, com sua escrita, ela ultrapassa o mundo feminino e alcança o universo do humano em sua essência ilimitada”.
Com poetas como White, Paula Tavares e Vera Duarte, as modernas literaturas africanas de expressão portuguesa estão aqui muito bem representadas. Os leitores que não conhecem esses autores — e os demais acima citados — não sabem o que estão perdendo. Ou, se preferirem: (...) não sabem o que estão a perder.
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