De um tempo a esta parte, historiadores brasileiros e portugueses estão cada vez mais integrados em seu ofício com uma troca constante de experiências e visões que só têm contribuído para o crescimento dos estudos sobre a história comum dos países de língua portuguesa. Um exemplo disso é o livro Modos de Governar: idéias e práticas políticas no Império português — séculos XVI a XIX (São Paulo, Alameda Casa Editorial, 2005), organizado pelas professoras Maria Fernanda Bicalho e Vera Lúcia Amaral Ferlini.
A obra é produto dessa troca de experiências que vem desde julho de 2001, quando foi organizado o grupo de trabalho “Modos de Governar: política, negócios e representações do Império português ao Império do Brasil”, surgido no âmbito do XXI Simpósio Nacional de História da Associação Nacional de Professores Universitários de História (Anpuh), realizado na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, com a presença de historiadores brasileiros e portugueses.
Como resultado dos contatos de 2001, durante o XXII Simpósio, realizado em 2003 na Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa, houve um seminário temático sob o título “Modos de Governar: política, negócios e representações no Império Luso-Brasileiro”, com a apresentação dos 23 trabalhos agora reunidos. Entre os principais historiadores estão António Manuel Hespanha, Pedro Cardim, Mafalda Soares da Cunha, Nuno Gonçalo Monteiro e Luís Frederico Dias Antunes, pelo lado português; e Maria de Fátima Silva Gouvêa, Rodrigo Bentes Monteiro, Ana Paula Torres Megiani, Íris Kantor, Adriana Romeiro, João Pinto Furtado, Alexandre Mansur Barata e Jacqueline Hermann, pelo lado brasileiro.
Dividido em cinco partes, o livro, segundo a professora Maria Fernanda Bicalho, propõe-se a discutir a tessitura das redes de poder, parentesco, clientela e negócios que deram vida e dinâmica ao Império português. “As reflexões desenvolvidas em seus diversos capítulos privilegiam a análise dos vários níveis da administração imperial e local, das biografias de seus agentes e governantes, das representações, dos discursos políticos e das trajetórias sociais que conferiram materialidade e governabilidade ao Império português e ao Brasil independente”, explica.
Num dos mais instigantes ensaios reunidos neste livro, “Nichos e redes: interesses familiares e relações comerciais luso-brasileiras na África Oriental (1750-1800)”, o professor Luís Frederico Dias Antunes, do Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT), de Lisboa, observa que as historiografias de Portugal, Brasil e demais países de língua portuguesa, com raras exceções, pouco se dedicaram ao estudo das relações econômicas e políticas entre os domínios no Atlântico Sul e no Índico Ocidental. De fato, muito ainda se tem a estudar sobre as relações entre os comerciantes de carne humana da Ilha de Moçambique e do Rio de Janeiro ao final do século XVIII e início do XX.
O livro que mais se aprofundou nessas relações entre os comerciantes do Rio de Janeiro e a África é o de Manolo Garcia Florentino, Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995; 2ª ed., São Paulo, Companhia das Letras, 1997), mas ali, como já se percebe pelo título, a análise dos dados para o trato com Moçambique não revela o mesmo nível de profundidade que se vê em relação a Angola, concentrando-se substancialmente no mercado com as costas ocidentais da África.
A explicação é simples: o pesquisador não se propôs a revirar os papéis da capitania de Moçambique, Rios de Sena e Sofala do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), de Lisboa. Portanto, essa é uma etapa que se espera que Florentino ou outro investigador venha a trilhar porque é importante que se cruzem os dados do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro com os da secção de Moçambique do AHU a respeito do assunto.
Se este historiador literário pode acrescentar alguma coisa nessa questão, é apenas para observar que a maioria dos integrantes do pequeno grupo de mercadores (relacionado por Dias Antunes) que dominou o tráfico de escravos entre a Ilha de Moçambique e o Rio de Janeiro e Montevidéu foi gente das ligações pessoais do poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), ex-ouvidor de Vila Rica, condenado ao degredo na África por sua participação na conjuração mineira de 1789.
Entre os nomes de grandes armadores de navios dedicados ao tráfico negreiro aparece, por exemplo, o de Eleutério José Delfim, que foi quem, ainda muito jovem, levou as credenciais da maçonaria carioca para José Joaquim da Maia Barbalho, o Vendek, estudante brasileiro de Montpellier, que iria procurar na França o embaixador da América Setentrional, Thomas Jefferson, para solicitar o apoio de seu governo à nova república que estaria para surgir na América portuguesa. Era filho de António Delfim Silva, abastado comerciante do Rio de Janeiro, o que lhe facilitaria mais tarde a vida como exportador de carne humana.
Outro nome que aparece é o de Antônio Cruz e Almeida, armador com dois navios matriculados no Rio de Janeiro, um deles construído no Brasil, sucessor de Gonzaga como juiz interino da alfândega depois da morte do poeta de Marília de Dirceu. Ficaria também com os cargos de procurador da Real Fazenda e de procurador da Coroa, que haviam sido de Gonzaga.
Também João da Silva Guedes, protetor de Gonzaga desde os seus primeiros dias na Ilha de Moçambique, aparece na lista dos mais influentes traficantes negreiros da costa oriental da África nos primeiros anos do século XIX. Seu filho, Vicente Guedes, suspeito de maçonismo, teve seus livros confiscados no Rio de Janeiro durante a escala do navio que o levava de Lisboa para casa. Por causa da influência do pai, sequer foi detido no Rio de Janeiro e, de volta à Ilha de Moçambique, seria secretário de governo e envolver-se-ia no tráfico com as ilhas Maurícias, da França, e o Brasil.
Para toda essa gente, o ex-ouvidor de Vila Rica, formado em Leis pela Universidade de Coimbra, ofereceu suas luzes como advogado. Mais tarde, como juiz da alfândega, teria ido mais longe, ao fechar os olhos para as falcatruas que ocorriam no porto, pois há denúncia de um governador de que, ao seu tempo no cargo, a Fazenda Real teria sido “violentamente fraudada”.
Para quem sempre olhou a conjuração mineira de 1789 com os olhos do romantismo e do nacionalismo, muitas dessas notícias não devem soar bem. Revirar papéis velhos tem esses inconvenientes. Mas, a rigor, não há muito que recriminar naqueles homens: era assim o tempo que lhes coube viver.
Nas colônias, os chamados pró-homens estavam confinados aos pequenos negócios e sempre tiravam do contrabando e da sonegação as suas maiores rendas. Aliás, desde então, lesar o Estado sempre foi o caminho mais rápido para se chegar à opulência. Quem podia exercia cargos na administração pública e sob essa capa protetora fazia os mais rentáveis negócios.
Como se vê, a liberdade, ainda que tardia, dístico da bandeira idealizada pelos inconfidentes de Minas Gerais em 1789, obviamente, não incluía os africanos. A liberdade que os movia era a mesma que inspirara, poucos anos antes, Thomas Jefferson, um dos paladinos da independência norte-americana, igualmente grande senhor que nunca pensou em dar liberdade aos seus escravos. Imaginar que os nossos inconfidentes tenham sido diferentes seria adentrar o perigoso terreno do anacronismo. E isto um historiador de verdade não faz.
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