Nestes tempos de globalização, em que a mídia está completamente dominada pelos grandes senhores do dinheiro e totalmente submetida à lógica comercial, ainda há espaço para os princípios que definiam (definem?) a atividade jornalística, como o rigor, a isenção, a procura da verdade e o interesse público?
Correndo o risco de ser acusado de apego excessivo ao passado e de recusa à mudança, Fernando Correia, jornalista desde 1966, professor de Jornalismo da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias e chefe de redação da revista Vértice, ambas de Lisboa, escreveu Jornalismo, Grupos Econômicos e Democracia (Caminho, 2006), livro em que procura responder àquela questão e discute a situação dos órgãos de comunicação em Portugal, mas cujas conclusões também se aplicam à realidade brasileira. Correia lembra que a mídia se transformou não apenas num importante ramo de negócios como passou a exercer imenso poder sobre políticos e instituições políticas, provocando desse modo uma perigosa perversão no funcionamento da democracia. Dentro desse novo mundo, como observa o autor, o futuro dos jornalistas como grupo profissional está também em causa, já que, inevitavelmente, começam a ser envolvidos pela gigantesca onda mercantilista que invade e contamina todo o sistema, “com evidentes repercussões em aspectos como a comercialização da informação”. O experiente jornalista ressalta que há, hoje, não só entre o público como no mundo acadêmico, uma confusão muito usual que trata de nivelar a mídia e os jornalistas como se se tratassem de uma mesma realidade. “Mas uma coisa é falar da mídia enquanto organizações empresariais submetidas aos objetivos e lógicas comerciais, que trazem consigo a publicidade e, com ela, os lucros”, adverte. “Outra é falar dos jornalistas, trabalhadores assalariados e não profissionais liberais, sujeitos às estratégias empresariais, subordinados a hierarquias, e cujos objetivos são produzir informação destinada ao público, isto é, fazer notícias, entendendo a notícia como um bem social e não como uma mercadoria”. Dentro da redação de um jornal, revista ou televisão, empresários e jornalistas nunca buscam fins idênticos, antes pelo contrário: freqüentemente os critérios comerciais revelam-se contraditórios com os critérios jornalísticos, o que gera um conflito latente e cria sérios constrangimentos à autonomia jornalística e ao direito do público a informar-se e ser informado, diz Correia. De fato, não há quem, trabalhando numa redação de jornal, não tenha sido constrangido a escrever “notícias” sobre iniciativas dos chamados “amigos da casa”, aqueles cujos interesses de certo modo se entrecruzaram com os dos proprietários do veículo de comunicação. Ou ainda escrever reportagens de apoio a iniciativas de interesse do departamento de publicidade do jornal. Sem contar aqueles jornalistas que, por alguma razão, tiveram de escrever reportagens, obviamente encomiásticas, sobre aspectos turísticos ou econômicos de um determinado Estado ou município cujo governo se dispôs a comprar algumas páginas de sua publicação. E concordaram em ver aquilo que era evidentemente matéria paga sair como se fosse matéria da redação, sem qualquer aviso que tornasse explícito ao incauto leitor de que se tratava de informe publicitário. Não se trata aqui de colocar-se contra o lucro, como deixa claro Correia. Aliás, sem lucro não há jornalismo — porque a publicação fecha as portas e empresários e profissionais de imprensa têm de cantar em outra freguesia. Mas a verdade é que, ao contrário dos empresários, os jornalistas trabalham, em princípio, sob outra perspectiva, que é a informação ao público. E, muitas vezes, essa visão não coincide com o interesse empresarial. De qualquer modo, jornalistas e empresários nem sempre estão em planos antagônicos, pois nem a empresa pode dispensar a colaboração dos jornalistas nem estes estão de modo algum interessados em que a empresa não seja rentável. Para Correia, a questão surge quando os objetivos econômicos se tornam de tal maneira obsessivos que tudo a eles fica subordinado, inclusive, o nobre espaço da opinião do jornal ou da revista. Já não estamos no tempo de Assis Chateaubriand (1892-1968), empresário que dominou a imprensa brasileira dos anos 30 até os primeiros tempos da ditadura militar (1964-1985), de quem se dizia que, quando algum de seus repórteres pedia aumento salarial, perguntava-lhe se não tinha carteira de jornalista, como a sugerir que tratasse de achacar algum empresário, político ou autoridade pública com vistas a reforçar o orçamento doméstico. Mas que muitos dos métodos que levaram Chateaubriand a ficar conhecido como “rei do Brasil” ainda estão em vigor, não há dúvida. O professor considera que “os jornalistas” são, de certo modo, uma abstração, já que não se trata de um grupo profissional homogêneo. E lembra que, no topo da carreira, há uma elite que ocupa os cargos de direção cuja visibilidade os identifica com o público, para o bem e para o mal, usufruindo de recompensas (materiais e simbólicas) muito acima da média. Depois, há uma camada intermediária entregue ao trabalho anônimo do dia-a-dia, englobando não só os profissionais dos grandes órgãos de comunicação como os de agências, jornais, emissoras de rádio e TV regionais, revistas especializadas, jornais digitais e assessorias de imprensa. E, finalmente, na base da pirâmide, estão os jovens jornalistas recém-formados, em número cada vez maior, que atuam quase sempre como free lancers cujas principais características são a insegurança e a precariedade de trabalho. Entre os patrões da mídia tampouco há homogeneidade, pois há aqueles que procuram atuar de maneira ética e aqueles que buscam na imprensa não só prestígio social como até mesmo um salvo conduto para escapar de enrascadas em que se envolveram no mundo dos negócios e, às vezes, até em coisas piores. Seja como for, a verdade é que a mídia se transformou em peça fundamental de dominação política, social, cultural e ideológica, não só por parte dos países mais poderosos, mas também das classes dominantes sobre as outras que constituem a maioria das populações. É irônico — para não dizer trágico — ver que esses meios extraordinários, proporcionados pela mídia, estão cada vez mais a serviço de estratégias de mercado, quando, num mundo ideal, poderiam servir à educação, ao desenvolvimento da cultura e ao melhor conhecimento entre os povos. Em países como Portugal e o Brasil está claro que, hoje, servem, ainda que involuntariamente, muito mais para aprofundar os gravíssimos problemas sociais que nos afligem, aumentando o analfabetismo e o atraso cultural, do que para aprofundar a democracia. Sua concentração em mãos de reduzido número de grupos econômicos não só na matriz do capitalismo como na periferia é sinal de que avançamos celeremente para o lado oposto da democracia, o mundo totalitário imaginado por George Orwell em 1984. Se jornalismo e democracia compartilham os mesmos ideais, está na hora de começarmos a discutir o futuro da mídia. Esta é a mensagem que Fernando Correia deixa em seu instigante livro, desde já manual indispensável para professores e estudantes de Jornalismo em ambos os lados do Atlântico. |