Até há pouco tempo, quem quisesse escrever sobre a época colonial do Brasil tinha de arrumar uma bolsa de estudos e partir para Portugal, especialmente em direção à Calçada da Boa Hora, na Junqueira, em Lisboa, onde fica o Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), no Palácio da Ega, construção cujo núcleo remonta ao século XVI e que, entre outras finalidades mais nobres, serviu de abrigo a uma tórrida paixão entre a condessa da Ega e o general Junot, comandante-chefe das invasoras tropas de Napoleão em 1807.
Depois do Projeto Resgate, empreendido entre 1994 e 1999, por iniciativa do professor Caio Boschi, de Minas Gerais, com o apoio do Ministério da Educação, muitos Estados brasileiros passaram a contar em seu respectivo arquivo público com a documentação catalogada e microfilmada referente à capitania colonial a que pertenceu e que consta originalmente do AHU. É o caso do Arquivo do Estado de São Paulo, que conta com a documentação de 1644 a 1830, que abrange documentos referentes ao Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Tocantins, que, à época, faziam parte da região sob jurisdição da Capitania de São Paulo.
A documentação também está em CD-ROM, o que facilita bastante ao historiador local, que não precisa mais se deslocar a Lisboa para consultar os manuscritos da Capitania de São Paulo do AHU. É claro que isso ajuda o País a economizar muitos reais, pois já não precisa bancar os custos de viagem e manutenção de tantos investigadores no exterior. Basta ver que, de 1990 a 1996, estiveram na sala de leitura do AHU 2.214 pesquisadores brasileiros contra 1.513 portugueses, ou seja, quase 50% do total, com a média de 316 pesquisadores por ano.
Esses dados constam da introdução que o historiador José Jobson de Andrade Arruda, da Universidade de São Paulo, um dos responsáveis pelo projeto, escreveu para o primeiro volume de Documentos manuscritos avulsos da Capitania de São Paulo (1644-1830), catálogo que coordenou e que traz a referência a 1.383 peças documentais e seus respectivos índices. Dois outros volumes reúnem 5.113 verbetes originalmente inclusos no catálogo produzido por Alfredo Mendes Gouveia, com os índices onomásticos e toponímicos por ele preparados.
Mendes Gouveia foi um antigo funcionário do AHU a quem, pouco antes de 1954, a Comissão dos Festejos do IV Centenário da Fundação da Cidade de São Paulo contratou para elaborar um catálogo dos verbetes referentes à Capitania de São Paulo. Foram inventariadas 66 caixas e identificados 5.113 itens documentais, que acabaram catalogados em 15 volumes mandados imprimir pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) entre 1956 e 1959.
Foi um trabalho de fôlego, feito a uma altura em que não havia à disposição a tecnologia que se conhece. Era, porém, uma obra inacabada, como constatou a equipe do Projeto Resgate em mais de uma década de trabalho. Havia mais documentos a identificar.
Os números do Projeto Resgate são superlativos, na definição do professor Jobson Arruda. Na Primeira Secção do Arquivo, que reúne as coleções referentes ao período que vai do século XVI a 1833, 1.824 caixas agregam 242.800 itens documentais sobre o Brasil. É papel que não acaba mais. Some-se a isso a Coleção de Mapas, Plantas e Gravuras com 600 códices específicos e 200 outros, nos quais o Brasil aparece junto às demais colônias portuguesas, perfazendo, no total, 50 mil documentos.
Segundo Arruda, desse imenso repertório não mais do que 40% encontravam-se inventariados quando ao AHU chegaram as equipes do Projeto Resgate e apenas 20% publicados. O acesso a esse material era, até então, privilégio de alguns poucos que conseguiam subsídio governamental para fazer pesquisas no exterior.
Os 5.113 documentos referentes à Capitania de São Paulo que haviam sido catalogados por Mendes Gouveia acabaram reduzidos a 70 rolos de microfilmes. Foram localizadas mais 30 caixas que originaram outros 33 rolos de microfilmes, contendo 1.383 documentos. Isso significa que 27% da documentação não haviam sido inventariados e tampouco publicados. Agora, tudo isso está à disposição dos pesquisadores no Arquivo do Estado de São Paulo.
É claro que os funcionários do AHU e pesquisadores brasileiros que participaram do Projeto Resgate fizeram o melhor que puderam, mas, convenhamos, nada substitui o prazer e as possibilidades de leitura que o original oferece. Este pesquisador já andou no Arquivo do Estado a revirar a documentação da Capitania de São Paulo e tanto em microfilmes como em CD-ROM as dificuldades de leitura que encontrou foram imensas.
Se já não constitui tarefa amena a leitura de um documento setecentista no original, mais difícil ainda se torna lê-lo em microfilme ou digitalizado. Até porque, além das dificuldades para entender a grafia — mesmo para investigadores acostumados com as abreviaturas correntes no século XVIII —, há manchas, rasuras, rasgões e outros danos causados nos papéis pela deterioração sofrida durante mais de dois séculos. Nada contra as novas tecnologias, mas a modernidade nem sempre resolve tudo.
Em boa parte do material, os pesquisadores do AHU — especialmente o antigo funcionário Mendes Gouveia — fizeram na capilha (como chamam em Portugal a capa de cartolina que protege o documento) extensas anotações sobre cada item, mas há outros em que as informações não passam de quatro ou cinco linhas.
A capilha também foi microfilmada e antecede cada documento. Em muitos casos, essas informações são o máximo que se pode saber, pois o estado de deterioração do documento não permite leitura completa. E essa é uma perda irremediável.
Quem pode continua a não deixar de lado a possibilidade de retornar a Lisboa, pois, além do contato com o documento original — ou, muitas vezes, o que sobrou dele —, ainda há a oportunidade de, ao final da tarde, quando o AHU fecha as portas, conversar com os seus funcionários na esplanada do restaurante Dois e Dois, em frente, na Calçada da Boa Hora, absorvendo a brisa que vem do Tejo e passa antes pelo arvoredo da velha mansão da Marquesa d´Alorna, poetisa de muitos méritos e tia da fogosa condessa da Ega.
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