O pícaro aparece na literatura sempre em momento de crise social: nos séculos XVI e XVII, quando os homens valiam por sua origem social; e nos séculos XX e XXI, quando os homens valem pelo dinheiro que podem ostentar.
No Brasil, esse dinheiro, muitas vezes, é obtido de maneira ilícita e, de preferência, depois de um bem engendrado avanço nos cofres públicos. Talvez por isso seja o país que, hoje, reúne o maior número de pícaros por metro quadrado. Nada mais natural, portanto, que no fosso criado pelo capitalismo entre a burguesia e o povo ressurja o romance picaresco, ou melhor, a sua recriação, a neopicaresca. Guardadas as devidas proporções e circunstâncias, vive-se no Brasil, hoje, uma época semelhante à que viu surgiu o Lazarillo de Tormes na Espanha.
Um dos responsáveis pelo surgimento de um romance negro brasileiro com tinturas neopicarescas é um escritor de origem portuguesa, que viveu 23 anos no Rio de Janeiro e 23 em Belo Horizonte, Cunha de Leiradella. Com o detetive Eduardo da Cunha Júnior, seu alter ego, em Apenas Questão de Gosto, Leiradella repete um pouco a trajetória do escritor catalão Eduardo Mendoza, responsável pelo ressurgimento do pícaro na Ibéria do século XX.
Como o detetive louco de Mendoza em El laberinto de las aceitunas e El mistério de la cripta embrujada (ainda sem tradução no Brasil), em Apenas Questão de Gosto, o investigador particular de Leiradella também só se vale de sua astúcia para sobreviver num mundo hostil, colocando em prática o conselho da mãe do Lazarillo: “arrimarse a los buenos por ser uno dellos”.
A exemplo do que Mendoza e Manuel Vázquez Montalbán (1939-2003), criador do detetive galego Pepe Carvalho, fizeram na literatura espanhola a partir da década de 70, Leiradella introduziu na literatura brasileira as características do romance negro através de um personagem espanhol de origem, o pícaro. Quem sabe resultado das reminiscências da época em que vivia entre contrabandistas, que ainda os havia naquele tempo na fronteira do Norte de Portugal com Espanha...
Não se pode dizer que foram os espanhóis que inventaram o pícaro no romance negro porque, na verdade, antes de chegar a Espanha, esse gênero já estava baseado em histórias de personagens com algumas características picarescas. O herói do romance negro, como observa José e Dupuy em Le roman policier (Paris, Larousse, 1974), é sempre “um pícaro, um detetive, um jornalista, um gângster, isto é, um homem móvel que, por sua profissão, está sempre à margem da sociedade burguesa que o explora”.
O pícaro, que o crítico Cláudio Guillén já definiu como half-outsider (meio marginal), é alguém que se movimenta com facilidade na sociedade e tem entrada em todas as partes, na casa do pobre e do rico, que assiste a tudo de fora e, por isso, sempre vê melhor, mas que não tem preocupações sociais. Não se trata, portanto, de um revolucionário, pois não pretende reformar a sociedade, mas antes, isso sim, integrar-se nela da maneira mais fácil, valendo-se apenas de sua sagacidade.
Esse é o tipo de anti-herói que encontramos em livros de Dashiel Hammet e Raymond Chandler, os grandes ícones do romance negro típico da sociedade norte-americana das décadas de 20 e 30, época de mudanças sociais, movimentação das massas para as cidades, interesses ocultos, delinqüência urbana e explosão de grandes escândalos político-financeiros impulsionados pela força de grandes empresas. Em tudo semelhante ao Brasil de hoje em que arrivistas chegam ao poder falando em nome de trabalhadores, mas dispostos apenas a arrombar as burras públicas em proveito próprio.
Tudo isso cria um ambiente favorável para o desenvolvimento do gênero. Que o Brasil do final do século XX seja semelhante aos EUA dos anos 20 e 30 só mostra que o atraso da sociedade brasileira em relação à norte-americana anda ao redor de meio de século, como pode muito bem perceber, por exemplo, quem se dispuser a ler Edmund Wilson: uma biografia, de Jeffrey Meyers (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997).
Não é, portanto, coincidência que Apenas Questão de Gosto esteja situado em meados da década de 80, quando o Brasil acordava do pesadelo que foi a ditadura militar (1964-1985). E que seu personagem principal, o detetive Eduardo Cunha Júnior, tenha de se disfarçar de jornalista de uma revista que não existe para se aproximar daquele a quem precisa investigar a pedido de uma cliente, “um pedaço de mau caminho para trator nenhum botar defeito”. No país das aparências, onde “quem rouba uma galinha é ladrão e quem rouba um galinheiro vira deputado ou senador”, todo cuidado é pouco: o mais esperto é sempre aquele que vai mais longe.
Não se pode chegar ao exagero de afirmar que Apenas Questão de Gosto seja um romance picaresco. Não o é nem quanto à estrutura nem quanto à temática. Se o fosse, por certo, perderia o sentido porque soaria de maneira anacrônica. Até porque não haveria sentido em repetir o esquema clássico da picaresca para contar episódios que teriam ocorrido na década de 80 do século XX num país periférico como o Brasil.
O que se quer dizer é que está vinculado a uma tendência neopicaresca, que se assumiu na literatura do século XX, não só pela opção autobiográfica do autor e seu estilo reflexivo, filosófico e crítico sobre aspectos morais como pela presença de um personagem que perdeu a corrida pela ascensão social, típico de uma sociedade em que a ausência de uma política econômica condena a esmagadora maioria da população à miséria e todos, ricos, pobres e remediados, a mais completa insegurança social. Em outras palavras: é uma narrativa marcada por ironia, sarcasmo e sátira feroz que coincide com a ação, como num bom romance negro.
O que se pode observar, portanto, é que o modelo clássico da picaresca neste gênero apenas sofreu uma correção de rota para se adaptar à evolução da técnica narrativa e à realidade brasileira (ou especificamente carioca) contemporânea. Assim, o que Leiradella entrega ao leitor é uma sátira permeada por um humor ácrata, daquele que não crê nas instituições, que ri da sociedade, que denuncia suas mazelas e expõe o ridículo de seu discurso e suas solenidades. Enfim, um exemplo bem acabado de neopicaresca tropical.
Cunha de Leiradella nasceu em 1934 na freguesia de São Paio de Brunhais, concelho da Póvoa do Lanhoso, Norte de Portugal, quase fronteira com a Espanha, entre neve, lobos e javalis. Depois de 45 anos vivendo no Brasil, cumpriu o sonho de seu pai, que era o de retornar aos valados da Serra do Gerês.
Chegou ao Rio de Janeiro com 24 anos de idade, um curso de Direito interrompido e disposto a ganhar a vida com o seu talento. Escreveu em jornais, começando pelo Portugal Democrático, levado por Adolfo Casais Monteiro, juntando-se àqueles que no exílio lutavam contra a ditadura salazarista. Logo, integrou-se à vida cultural do Rio de Janeiro, participando do Teatro Tablado, com Maria Clara Machado e Napoleão Muniz Freire.
Com Amir Haddad e Maria Helena Khünner, em 1965, fundou o Teatro Universitário Carioca (Tuca-Rio). Foi no espetáculo O Coronel de Macambira, dramatização do poema de Joaquim Cardozo, primeira montagem do grupo, que apareceram artistas do porte de Renata Sorrah e Roberto Bonfim, hoje grandes atores do teatro e da televisão brasileira.
Residiu em Belo Horizonte de 1980 a 2003 e lá fundou e presidiu o Sindicato dos Escritores do Estado de Minas Gerais. Tem extensa obra publicada: dez romances, além de contos em 11 antologias e prêmios nessas áreas e no teatro. Escreveu também roteiros para TV e cinema. Em 1999, ganhou o Prêmio Caminho de Literatura Policial, em Lisboa, com o romance Apenas Questão de Método. E, em 2004, lançou outro romance, Os espelhos de Lacan (Rio de Janeiro, Editora Ciência Moderna).
|