Literatura de viagens é um subgênero literário que abrange textos que à viagem real ou imaginária foram buscar temas, motivos e formas, como se lê no ensaio “Para uma teoria da Literatura de Viagens”, que o professor Fernando Cristóvão escreveu para Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens: estudos e bibliografias, livro que ele mesmo coordenou (Lisboa, Edições Cosmos, 1999). É um subgênero, com individualidade, semelhante à de outros de estatuto reconhecido, como o pastoril, o histórico, o policial etc.
Lembra o professor Cristóvão que, se há textos em que nenhuma viagem é relatada, nem por isso deixam de pertencer ao subgênero Literatura de Viagens. Há outros, diz, que relatam viagens, mas podem não se incluir nela por serem tributários da isotopia dominante de outros subgêneros que os modelam, de marca bem diferente das que tipificam a Literatura de Viagens.
Hernâni Cidade já dizia de uma literatura de expansão que abarcaria todo o conjunto de obras literárias suscitadas pela atividade descobridora, conquistadora e missionária, como se lê no Dicionário de Literatura, de Jacinto do Prado Coelho (org.). Antônio José Saraiva e Oscar Lopes, em História da Literatura Portuguesa, já se referiam a uma literatura de viagens ultramarinas ou narrativas de viagens.
Da carta de Pero Vaz de Caminha, Maria Cecília Guirado, em Relatos do Descobrimento do Brasil: as primeiras reportagens (Lisboa, Instituto Piaget, 2001), concluiu tratar-se de uma reportagem antes mesmo que esse gênero jornalístico tivesse nascido. Seja lá o que for, a Literatura de Viagens é, acima de tudo, um subgênero que reúne relatos que entrecruzam Literatura com História e Antropologia, o que inclui tudo aquilo que ao olhar europeu causou espanto durante os anos de Quatrocentos a Setecentos. Afinal, a descoberta de novas terras trazia ao conhecimento do Ocidente a existência de outros povos, outras maneiras de se comportar, que era necessário dar a conhecer e explicar a quem não tivera a oportunidade de sair de sua terra. É claro que tudo sob um olhar etnocêntrico, ou melhor, eurocêntrico.
E a poesia? É claro que, numa relação de poemas clássicos de todas as línguas, vamos encontrar vários deles dedicados ao tema das viagens e da descoberta de prodígios, monstros e maravilhas. Mas é preciso ir devagar com o andor, como diziam os antigos. O poema “Os Lusíadas”, de Luís de Camões (1524?-1580?), constitui um vasto painel erguido sobre algumas memórias que seu autor guardou de sua viagem ao Oriente e projetou para o que teria sido a odisséia de Vasco da Gama, embora sejam raras as descrições nele que parecem inspiradas num testemunho direto, como assinalou Antônio José Saraiva em Luís de Camões (Lisboa, Publicações Europa-América, 1959). Bem diferente, por exemplo, do relato de A Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, um texto clássico do subgênero Literatura de Viagens. Nem por isso “Os Lusíadas”, como epopéia, pode deixar de ser incluído nesse subgênero.
Não é apenas aos relatos e poemas dos séculos que vão do XV ao XVIII que se limita o subgênero Literatura de Viagens. Ainda agora acaba de sair à luz No Fim das Terras, de Milton Torres, que, embora até agora pouco procurado nas livrarias, constitui uma das mais extraordinárias experiências com o discurso épico na recente poesia brasileira, na definição do professor Ivan Teixeira, responsável pelo luminoso posfácio da edição. E que se enquadra perfeitamente no subgênero Literatura de Viagens.
O volume divide-se em duas partes principais — “Portugueses” e “Novo Mundo” —, num total de 161 poemas, alguns breves, outros nem tanto, entre eles “Matriz das ilhas de maldito mar”, que se destaca não só porque composto em página dupla, mas escrito em várias línguas, repleto de referências à África Oriental e ao mundo luso-oriental.
Na primeira parte, há quatro subdivisões, sendo que a que encabeça o conjunto, “Hispania”, antecipa os temas encontrados na segunda parte. As outras três divisões (“Da Memória”, “Do Império”, “Do Pensar e do Fazer”) colocam em termos filosóficos alguns dos problemas culturais, políticos e econômicos mais significativos do Império português durante a época das conquistas territoriais e da colonização, como explica Leopoldo Bernucci no prefácio que traz por título “A poesia douta de Milton Torres”. A segunda parte, “Novo Mundo”, abrange quatro subdivisões, mas abarca temas especificamente brasileiros.
Em resumo, o livro vai de Gil Vicente à Copacabana do início do século XXI. Abre-se com “O Tempo e a Lusitânia”, poema que transpõe passagens latinas mescladas com um trecho do epitáfio da tumba de Gil Vicente, e termina com o resultado do processo transculturador, a ruína em que se transformaram bairros como Cinelândia e Copacabana, no Rio de Janeiro, imersos na prostituição e no tráfico de drogas em que já não se sabe quem é autoridade nem quem é bandido. Eis um trecho de “Copacabana”:
(...) a noite de bunda de fora (não que defeque)
a outra aferrolhada em casa, mais outra pelo chão, esta
defeca no passeio, como defecam os cães.
os pertences na pochete o prazer baseado
acima do entrepernas é só correr o zíper da saia,
o da pochete. gringo gosta assim a gente também.
Por aqui se vê que este é um livro que nasceu de um longo processo de maturação, como um minucioso projeto arquitetônico. Não se trata, portanto, de uma coletânea de poemas de várias épocas que estiveram adormecidos no fundo de alguma gaveta. E só por isso este é um livro raro. Mais ainda: é um livro que faz lembrar Invenção do Mar (Rio de Janeiro, Record, 1997), de Gerardo Mello Mourão, considerado pelo crítico Wilson Martins uma epopéia da nacionalidade brasileira, “prolongamento e diversificação da que se cristalizou para sempre nas estrofes brônzeas de Os Lusíadas”. Talvez uma continuação do discurso camoniano, como se vê em “Mombaça”:
(...) Mombaça Mombaça,
forte cheiro traz o vento que a pejada nuvem sopra,
e a chuva alimpa as terras, e o mar
feito água doce: e a nau há-de emergir, e brancas as enxárcias
e eretos os homens rotos que estas águas navegaram.
Eis aqui o que é o livro de Milton Torres: uma epopéia, ou melhor, uma antiepopéia, porque nestes poemas não há heróis nem heroínas. Se há algum personagem principal, esse é o Brasil, mas visto de forma irônica e cética. Como no poema “Brasil 70” que revive os anos de chumbo da última ditadura (1964-1985):
a medo vivo, a medo escrevo e falo,
hei medo do que falo só comigo,
mas inda a medo cuido, a medo calo.
Homem viajado que viveu em várias partes do mundo por força da profissão, o poeta sabe como usar as referências históricas para transformá-las em poesia, manejando com habilidade os aspectos formais. E ainda pratica o poema-collage, como o que se vê à página 87 em que o poema (e a ironia) está no título que cobre a inscrição no marco de pedra em Belém que registra a tentativa de regicídio em 1758: “A outra face do Iluminismo”.
Erudito, escreve não só poemas inteiros em português arcaico, quinhentista, como em espanhol, espanhol arcaico, inglês e latim. É claro que, diante de um poeta versado em tantas línguas e extremamente sutil no uso da metalinguagem, não é qualquer leitor que pode se aventurar. É um poeta especial que, portanto, precisa de leitores especiais que saibam ler poemas como “Elephant´s cemetery”:
a dead specimen. a large one. of an accident
no evidence
voluminous limbs putrefaction,
ivory
taken away.
firmament
infirmus
black-stars-spangled: no message.
Milton Torres, diplomata de carreira, é cônsul-geral do Brasil em Houston, Texas. Não se sabe de outros livros que tenha publicado nem No Fim das Terras traz maiores informações a respeito de sua carreira literária. Já tentou algumas vezes o romance, mas desistiu. Exigente em demasia, tem preferido manter-se fiel à poesia, que pode pacientemente burilar até à exaustão, como, sem dúvida, foi o caso de No Fim das Terras, livro que preparou durante anos a fio. Encontra-se atualmente debruçado diante de outros em preparo.
Como servidor diplomático, Milton Torres faz parte de uma seleta galeria de poetas que também desempenharam atividades profissionais no Ministério das Relações Exteriores do Brasil, o Itamaraty, que vai de Rui Ribeiro Couto (1898-1963), Vinícius de Morais (1913-1980) e João Cabral de Mello Neto (1920-1999) a Alberto da Costa e Silva. Afastado da atividade diplomática em razão de uma doença que o acometeu nos últimos meses, sem deixar Houston, diz-se agora com mais tempo para se dedicar à literatura, a sua grande paixão. Profundo conhecedor da História luso-brasileira e admirador de poetas setecentistas como Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) e Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), Milton Torres poderia também, com igual brilho, mergulhar no ofício de historiador. Ganhariam a história e a poesia. |