"A classe eclesiástica não significa a realização de uma crença; é ainda uma multidão de desocupados que querem viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira, como se compreendia outrora, é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado vindo ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria indústria faz-se protecionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres, e das casas arruinadas; é a ocupação natural das mediocridades; é o usufruto da burguesia. Ora como o Estado, pobre, paga tão pobremente que ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos como uma fatalidade".
Não fosse por uma referência aos réis, moeda já extinta em Portugal e no Brasil, ninguém diria que estas palavras foram escritas em 1871, tal a sua atualidade tanto lá como cá. São de Eça de Queiroz (1845-1900) e podem ser lidas em As Farpas - crônica mensal da política, das letras e dos costumes, de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, livro editado sob coordenação geral de Maria Filomena Mônica (Cascais, Principia, 2004).
No Brasil dos últimos dias, o Estado continua a ser a salvação de desocupados, que, atrelados a um partido político que em seu título dizia representar os trabalhadores, agarram-se às tetas públicas para perpetrar falcatruas sem conta. Como eram aventureiros, nem foi preciso à oposição mover alguma palha para denunciá-los. Aves de rapina, brigaram entre si pelo butim e denunciaram uns aos outros pelos motivos mais reles. Como tinham a sanha de dilapidar o patrimônio público, interromperam os processos de privatização que, se outros méritos não tinham, pelo menos permitiam que a corrupção, praga inevitável, ocorresse de uma só vez, ou seja, no momento em que a empresa pública passasse às mãos de um algum grupo privado.
Mas não nos alegremos muito se, nas próximas eleições, essa gente for defenestrada porque outros virão, disfarçados por palavras pomposas e atrás de outros partidos políticos. O Estado sempre será a mãe dessa gente vil. Aos bem situados, continuará favorecendo a construção de fortunas sob a sua sombra protetora, aos desvalidos poderá representar uma esmola na forma da chamada Bolsa-Família e aos medíocres um emprego vitalício e uma aposentadoria gorda ao final da vida. Sem contar que para muitos representa também a oportunidade do exercício do nepotismo, com a nomeação de mulher, filhos, sobrinhos e amigos do peito. Tudo passa de pais para filhos como uma fatalidade, tal como dizia Eça de Queiroz.
Ler o "pobre homem da Povoa de Varzim", neste dias, pode constituir tarefa pouco alentadora, pois, 135 anos depois, constata-se que nada mudou. Quem duvidar que enfrente este cartapácio de 639 páginas que reúne o texto integral de As Farpas produzido no período em que Eça nele colaborou, ou seja, tal como os seus leitores contemporâneos o leram.
Quando saíram à luz, eram opúsculos de capa alaranjada que começaram a aparecer nas bancas de Lisboa a 17 de junho de 1871 e tiveram a colaboração de Eça de Queiroz pelo menos até o número de setembro-outubro de 1872, quando o escritor partiu, como cônsul, para as Antilhas espanholas. A de Ramalho Ortigão, como observa Maria Filomena Mônica na introdução, estender-se-ia ao longo de 11 anos.
Quem fizer as contas vai descobrir que Eça de Queiroz era a esse tempo um jovem de 26 anos que ainda não deixava entrever que seria o maior romancista da Língua Portuguesa do século XIX, ao lado do brasileiro Machado de Assis (1839-1908). O nome mais forte da publicação era o de Ramalho Ortigão (1836-1915), a essa altura com 35 anos, que fora professor de francês de Eça no Colégio da Lapa, no Porto, dirigido por seu pai. A publicação que lançavam em Lisboa saía à altura do 33º governo constitucional presidido por Ávila, num momento de crise em que a Guerra do Paraguai (1864-1870) interrompera as remessas dos emigrantes que viviam no Brasil, fonte essencial para a economia de Portugal à época.
Em tempos de crise econômica, todos gritam e ninguém tem razão. Por isso, os governos se sucediam a um ritmo intenso. Só em março de 1871, Fontes Pereira de Melo viria a assumir o poder para dar alguma estabilidade ao país. Portanto, o jovem Eça de Queiroz também vivia uma situação difícil, agarrando-se a empregos precários, de olho também na segurança que oferece um emprego público, ainda que visse no Estado a ocupação natural das mediocridades.
Como diz Maria Filomena Mônica, foi o desemprego que levou Eça até As Farpas, do amigo Ramalho Ortigão, enquanto movimentava-se em busca de uma oportunidade para começar uma carreira no estrangeiro como diplomata. Queria sair de Portugal, sim, mas com segurança. Nada de aventurar-se como emigrante. Em julho de 1870, ao tempo do duque de Saldanha no poder e de um amigo de seu pai, Dias Ferreira, no Ministério do Reino, conseguiu ser nomeado administrador do concelho de Leiria. Era uma "boquinha" magra e que ainda tinha o inconveniente de que ficava um tanto longe de Lisboa, pelo menos naquela época de transportes e estradas precárias.
Não ficou lá três meses e logo retornou a Lisboa, a pretexto de preparar-se para um concurso no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Fez as provas para cônsul e saiu-se em primeiro lugar. Mas não levou a vaga para Salvador, na Bahia, perdendo-a para alguém que dispunha de maiores trunfos políticos. Teve de voltar a Leiria para retornar a Lisboa em maio de 1871. Foi por esse tempo que, a convite de Ramalho Ortigão, começou a escrever para As Farpas.
Os textos dessa época refletem a desilusão do jovem escritor com os homens e com Portugal, ainda mais porque a esse tempo descobrira que na preterição que sofrera no Ministério dos Negócios Estrangeiros também contribuíra a idéia de que seria um homem de idéias revolucionárias, um incendiário. Num desses textos de As Farpas, ele rebate: "Não, eu não sou esse homem. Não o sou, porque não tenho paciência para ser agitador; porque não tenho tempo; porque nos clubes há falta de ar; porque detesto clubes, essa bastardia grotesca da decadência parlamentar (...)".
De fato, satírico, irônico, polemista e moralista, Eça de Queiroz estava longe de ser revolucionário. Nem para a carreira política tinha talento - ou melhor, estômago. Se tinha inimigos pela frente, esses eram os políticos, aos quais vergastou com sua pena brilhante. Por isso, se por acaso o incauto leitor faz parte dessa cáfila que infesta as repúblicas daqui e d´além mar, passe longe deste livro. Se o ler, não vai passar sem chumbo no lombo. |