Houve uma época, há meio século, apesar das dificuldades de comunicação de então e da ditadura salazarista que grassava, que havia maior intercâmbio entre os intelectuais do Brasil e de Angola, Moçambique e outras terras africanas em que se fala o português. Não acreditam? Pois leiam o que Salim Miguel, escritor brasileiro que anda na juventude de seus 80 anos, reuniu em Cartas d´África e Alguma Poesia (Rio de Janeiro, Topbooks/Academia Brasileira de Letras, 2005).
São cartas que ele recebeu na década de 1950 de escritores das colônias portuguesas na África, eufemisticamente chamadas de províncias do Ultramar. Radicado em Florianópolis, Salim Miguel, em companhia de outros jovens intelectuais, editava a revista Sul, uma das mais importantes publicações culturais que se publicaram no Brasil fora do eixo Rio-São Paulo. E por que Florianópolis, se a sua gente, na imensa maioria, tem lá ancestrais açorianos e pouca miscigenação com africanos? Se fosse em Salvador, Belo Horizonte ou mesmo no Rio de Janeiro, seria mais compreensível. Foram, pois, as tramas do destino, o momento, as circunstâncias, como diz Salim Miguel no prefácio. É que aparecida em 1948 a revista Sul, na acanhada e conservadora Florianópolis de então, o escritor Marques Rebelo (1907-1973), no Rio de Janeiro, dela tomou conhecimento e entusiasmou-se com o esforço que aqueles jovens faziam para fugir do isolamento. A revista não era só uma publicação de artes, idéias e cultura. Em torno dela gravitavam um cineclube, exposições e muita efervescência cultural. Foi, então, que, convidado a ir a Florianópolis, Marques Rebelo perguntou aos jovens escritores se eles não estavam interessados em contatar outros jovens em Portugal e África. De volta ao Rio de Janeiro, conta Salim Miguel, Marques Rebelo enviaria para Florianópolis o endereço do poeta português Manuel Pinto e do poeta, crítico e gravurista Augusto dos Santos Abranches, de Moçambique. Começaria, então, um largo intercâmbio de cartas, livros, idéias e experiências. Logo, a revista Sul estava publicando colaborações de nomes pouco conhecidos do público brasileiro, como, por exemplo, o de Adolfo Rocha, o Miguel Torga, então desconhecido no Brasil e até mesmo em Portugal. No último número da revista, o 30, aparece um conto assinado por um tal de José Graça, que, mais tarde, acabaria por se tornar conhecido como Luandino Vieira. É claro que a coleção da revista Sul é, hoje, uma preciosidade que talvez só seja encontrada em algum arquivo público de Santa Catarina ou, quem sabe, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. E que toda essa correspondência poderia estar perdida se Salim Miguel não a tivesse preservado durante todos estes anos, embora diga que muitas cartas acabaram por se extraviar nas várias mudanças de casa que fez, inclusive, de Florianópolis para o Rio de Janeiro. Diz o escritor, porém, que, a partir de 1985, houve uma redescoberta do papel de intercâmbio que Sul exerceu entre as então jovens gerações de escritores brasileiros e aqueles que viviam nas chamadas colônias portuguesas de África. Foi naquele ano que o professor Manuel Ferreira, profundo estudioso da literatura africana de expressão portuguesa, e Alexandre Cabral, romancista e especialista em Camilo Castelo Branco, em Lisboa, quiseram saber de que maneira a revista se tornara veículo para a manifestação dos novos escritores africanos durante os anos 50. Hoje, a estudante paulista Juliana Santin desenvolve uma tese de doutoramento na Universidade de Bordéus que examina as relações culturais entre Brasil e Angola e, naturalmente, dedica um capítulo à influência que a revista Sul exerceu nessa difícil tarefa de unir o que o Atlântico separa. Espera-se que logo seja publicada em livro. Além disso, em Sonha Mamana África, a professora e jornalista brasileira Cremilda Medina já havia registrado o que Luandino Vieira declarou a respeito do que significou para os jovens escritores angolanos o contato com a revista dos jovens escritores catarinenses. Lembra Salim Miguel que, naqueles difíceis tempos, os escritores de lá e de cá não sabiam se o que enviavam chegaria ao destino. O Brasil vivia uma época de democracia, que seria violentamente quebrada por militares direitistas em 1964, mas Portugal continuava mergulhado no obscurantismo salazarista. Esbirros do ditador na África vasculhavam e violavam correspondências para apreender o que não atendia ao disposto nas leis da censura. O livro preparado por Salim Miguel reúne cartas de Antônio Jacinto, Luandino Vieira, Américo de Carvalho, Mário Lopes Guerra, Viriato da Cruz e Garibaldino de Andrade, de Angola; Augusto dos Santos Abranches, Orlando Mendes, Manuel Filipe de Moura Coutinho, Domingos de Azevedo, Domingos Ribeiro Silveira e Dulce dos Santos, de Moçambique; e de Fernando Reis, da Ilha de São Tomé. De todas, a correspondência mais marcante é a de Augusto dos Santos Abranches (1912-1963), que, em 1955, deixou Moçambique para se instalar em São Paulo, onde trabalhou na Livraria Francisco Alves como propagandista de livros e no jornal Portugal Democrático como secretário de redação, falecendo precocemente vítima de problemas cardíacos, depois de casar com uma brasileira com quem teve uma filha. Deixou vasta obra esparsa e livros inéditos. De notar na correspondência que Abranches mandou de Nampula, em 1952, as referências elogiosas que faz à revista Vértice, então editada em Coimbra, e à “admirável página literária que é a de O Primeiro de Janeiro, do Porto”, que, segundo ele, escapavam do “marasmo puro” em que o modernismo tomava feição acadêmica no Portugal de então. Abranches era colaborador da Vértice e d´O Primeiro de Janeiro. A morte de Abranches levou Marques Rebelo a escrever “Conversa Carioca”, artigo publicado no jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, nas edições de 18 a 22 de junho de 1963, e reproduzido por Salim Miguel. O escritor reproduziu também artigo que publicou no diário O Estado, de Florianópolis, em 28/8/1983, dez anos depois da morte de Marques Rebelo em que contou como se deu a aproximação daquele intelectual já consagrado na faixa dos 40 anos com os jovens catarinenses que ainda não haviam chegado aos 30. Por fim, o livro traz poemas e um conto de Luandino Vieira que saíram, praticamente, em primeira mão na revista Sul. Seria bom que o exemplo de Salim Miguel e de seus amigos dos dois lados do Atlântico suscitasse nas jovens gerações a vontade de restabelecer esse diálogo entre Brasil e África, ainda mais agora em que a Internet nos aproxima como nunca.
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