Se o XIX foi um século úmido, como constatou Virginia Woolf (1882-1941), ao descrever uma Grã-Bretanha em que a umidade doía-lhe até nos ossos, o XVIII foi luminoso, o século da Luzes, de Voltaire (1694-1770), Montesquieu (1698-1755), Rousseau (1712-1778), Diderot (1713-1784) e outros pensadores. Por isso, como qualquer outro bom poeta setecentista, Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805) foi marcado pela França.
Descobrir as influências que recebeu do pensamento francês foi o que levou a pesquisadora belga Florence Jacqueline Nys a escrever As fontes francesas das Cartas de Olinda e Alzira de Bocage, sua tese de mestrado em Língua e Literatura Francesas, defendida em 2003 no Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho e publicada em 2005 pelo Centro de Estudos Humanísticos da mesma instituição em sua coleção Hespérides.
Não é de hoje que se desconfia de que Cartas de Olinda e Alzira, atribuídas pela crítica a Bocage, sejam de outro autor e, portanto, uma tradução bocagiana, como já havia assinalado Inocêncio Francisco da Silva (1810-1876), autor do Dicionário Bibliográfico Português. A verdade, porém, é que ninguém, até hoje, conseguiu colocar a questão em pratos limpos.
A partir daí, Florence Nys, com o objetivo de alimentar a tese da paternidade de Bocage, decidiu assinalar as afinidades entre Cartas de Olinda e Alzira e outros textos bocagianos, como a Epístola a Marília, também conhecida como Pavorosa ilusão da Eternidade, e duas traduções, Eufrásia a Melcour e Eufrásia a Ramiro, extraídas das Lettres d´une chanoinesse de Lisbonne à Melcour, officier français, do poeta Claude Joseph Dorat. Para a estudiosa, Bocage terá utilizado a forma do romance epistolar em verso delineada por Dorat, de quem foi tradutor, além de ter sido inspirado pela literatura pornográfica francesa, “à qual terá tido acesso através de diversas redes clandestinas”.
Como se sabe, Cartas de Olinda e Alzira envolvem duas personagens femininas que mantêm uma correspondência contínua sobre o mesmo assunto: o amor carnal. É um texto que está muito próximo da filosofia libertina veiculada pelos escritores franceses do Iluminismo. Como lembra Florence, em uma das cartas, a sexta, Olinda condena a literatura obscena trazendo à cena “uma Teresa” e “outras tais francesas”.
Com visão percuciente, a estudiosa não deixa de lembrar que Bocage traduziu excertos de La Henriade e outras epopéias comentadas por Voltaire, além de ter incluído uma citação do filósofo em muitas de suas produções. Para ela, além da admiração por Voltaire, talvez Bocage tenha imaginado provar que seria capaz de produzir textos tão bons ou mesmo superiores aos do filósofo francês.
O que intriga mesmo é que Cartas de Olinda e Alzira não façam nenhuma referência explícita à realidade portuguesa da época, mas antes à mitologia, à história romana e à literatura francesa. Sem dúvida, este é um indício que reforça a hipótese segundo a qual Bocage teria traduzido um original de Voltaire.
Pode-se alegar que a pressão da censura teria levado Bocage a omitir qualquer referência à realidade portuguesa, mas o certo é que poesia licenciosa era escrita para ser lida na clandestinidade e não para ganhar letras de imprensa. E muito menos para passar pelo crivo da censura. Nesse caso, o argumento pouco vale. Tanto que, há pouco mais de quatro décadas, em 1965, uma antologia preparada por Natália Correia, que incluía Cartas de Olinda e Alzira, foi apreendida e condenada pela censura salazarista.
Seja como for, como até hoje não se encontrou o presumido original voltaireano, a questão continua em aberto, o que, por outro lado, suscita excelentes trabalhos de análise e investigação como este de Florence Nys.
Na introdução que escreveu para o volume VII da Obra Completa de Bocage: Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas (Porto, Edições Caixotim, 2004), às págs. XXXIII e XXXIV, o rigoroso pesquisador Daniel Pires diz que a composição Cartas de Olinda e Alzira “apresenta inequívocas ressonâncias da literatura erótica francesa”, argumentando que “suas afinidades com a Pavorosa ilusão da Eternidade são evidentes”, o que bastaria para que caísse integralmente pela base a tese de que não são da lavra de Bocage, como advoguei em “Cartas de Voltaire atribuídas a Bocage”, artigo publicado no Suplemento Das Artes Das Letras de O Primeiro de Janeiro, do Porto, a 18/3/2002.
A alegação deste articulista, porém, não é fortuita. Foi feita com base em documento da seção de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa, o códice 10576, que leva o extenso título “Miscelânea Curiosa ou Colecção de diversas Poesias & vários Autores: a maior parte de Bocage, ou traduções originais; algumas de J.A.da C. (José Anastácio da Cunha) e outras por autores incertos e que não conheço; e juntas por José Câncio Ferreira de Lima em Coimbra (acabado e revisto em Março de 1825)”. Nesse códice, às fls. 81-112, estão incluídas “Cartas de Olinda a Alzira traduzidas de Voltaire por Manuel Maria Barboza du Bucage” (sic), como Pires devidamente assinalou em sua introdução.
É possível que esse contemporâneo do poeta tenha cometido algum equívoco e que Cartas de Olinda e Alzira sejam mesmo obra bocagiana, mas a verdade é que compará-las com a Pavorosa ilusão da Eternidade também não prova nada, apesar do esforço louvável de Pires em mostrar que, “pelo estilo, pela temática tratada, por alguns versos que são em tudo idênticos aos da Pavorosa ilusão da Eternidade, (os versos de Cartas de Olinda e Alzira) só poderão ter saído da pena de Bocage”. Aliás, o pesquisador Carlos Castilho Pais, da Universidade Aberta, diz em artigo recente que a Epístola a Marília é tradução parcial de Imitação (do poeta grego Alceu) de Parny (ver www.instituto-camoes.pt/CVC/olingua/08/lingua02.html).
Tampouco o fato de o investigador não ter encontrado nada equivalente a Cartas de Olinda e Alzira entre as obras conhecidas de Voltaire prova coisa alguma. O que há é uma hipótese de trabalho que a própria pesquisadora Florence Jacqueline Nys comprometeu-se a investigar em arquivos franceses, depois de ter participado conosco do Colóquio Internacional Leituras de Bocage nos séculos XVIII-XXI, realizado ao final de novembro de 2005, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Convenhamos: não é hipótese absurda a possibilidade de Cartas de Olinda e Alzira constituírem tradução de Voltaire. Aliás, não seria a primeira vez que se descobriria que um texto por décadas atribuído a determinado autor não passa de tradução. Recentemente, o professor francês Jean-Michel Massa, um dos maiores pesquisadores da obra e da vida de Machado de Assis (1839-1908), provou que Queda que as mulheres têm para os tolos, atribuído como da lavra do escritor brasileiro, é tradução do tratado De l´a amour dês femmes pour les sots (1859), de Victor Hénaux, originalmente publicada na revista A Marmota, do Rio de Janeiro, nos dias 19, 23, 26 e 30 de abril e 3 de maio de 1861. A única edição em livro foi produzida pela tipografia Paula Brito ainda em 1861.
A bem da verdade, diga-se que Machado de Assis nunca afirmou que aquele era trabalho de sua pena, mas críticos brasileiros concluíram que o mestre havia se enganado (?) e, por muitos anos, consideraram Queda que as mulheres têm para os tolos como uma autêntica obra machadiana. Vai saber... |