John Milton (1608-1674), autor de Paraíso Perdido, sempre foi acusado de não ter feito nada melhor do que procurar furtar a Bíblia tanto quanto possível. Nem por isso deixou de ser um dos maiores poetas ingleses de todos os tempos. Como se vê, furtar a Bíblia não é atividade recente. Chaucer (ca.1343/1400), Shakespeare (1564-1616) e outros homens de gênio também se inspiraram em fontes bíblicas e nem por isso foram acusados de plágio. Aliás, como observou o crítico canadense Northrop Frye (1912-1991) em Anatomy of Criticism (Anatomia da Crítica), se alguém plagia autor vivo, o ato constitui prova de delinqüência moral, mas se o plagiado já está morto, tudo passa a ser apenas um sinal de erudição.
Harold Bloom (1930), professor na Universidade de Yale, apontado, ao lado de George Steiner (1929), professor de Cambridge e Genebra, como um dos maiores críticos de literatura da atualidade, repetiu um pouco Milton, inspirando-se na Bíblia para escrever em 2004 o seu mais recente livro, Onde encontrar a sabedoria? (Where Shall Wisdom be Found?), resultado de uma crise pessoal que o levou à beira da morte.
Partindo de alguns cânones universais — para quem não sabe, é autor de O Cânone Ocidental (1994), espécie de inventário do que de melhor se publicou na literatura do Ocidente até hoje —, Bloom propôs-se a escrever um livro sobre como a leitura ajuda a viver e a compreender a vida. Para ele, a sabedoria só pode ser alcançada na solidão, na reflexão acerca de leituras, o que contraria certos círculos religiosos ou políticos que costumam ver sabedoria no voluntarismo de alguns semi-alfabetizados.
Ao mesmo tempo, com um sério problema no coração, deprimido pela morte daqueles com os quais convivia, depois de uma operação e quatro meses de convalescença, imaginando-se à beira do fim, Bloom concluiu que de pouco lhe valeriam os 31 livros que publicou, pois nem toda a erudição do mundo serve para muita coisa num momento-limite. Foi da necessidade que sentiu de procurar algum tipo de sabedoria que lhe permitisse suportar as agruras da velhice que nasceu esse livro.
Que não encontrou a sabedoria, está claro no título de seu livro que encerra uma pergunta, mas Bloom garante que a leitura de alguns trechos da Bíblia, como Eclesiastes, Cântico dos Cânticos e o Livro de Jó, e de autores canônicos, como Shakespeare, Cervantes, Montaigne, Bacon, Nietzsche, Freud e Proust, pelo menos colabora para que o homem se torne mais sereno e resignado diante do inevitável fim. Já não é pouco.
No mais instigante dos ensaios que compõem Onde encontrar a sabedoria?, “Montaigne e Francis Bacon”, Bloom diz que a sapiência do primeiro autor, aquele que criou e deu forma ao ensaio, não é bíblica, o que o torna diferente dos demais. Citando muito mais Sócrates (ca470-399aC) do que a Bíblia, Montaigne (1533-1592) observa que o pensador resgata do exílio celestial a sabedoria humana. “Ele (Montaigne) não nos propicia dialética nem virtude, mas um estado de espírito que é uma força singular, dirigida a si mesma. Tal força, e não temor ao deus, é o início do saber. O segredo de Montaigne reside nessa força inominada, que corresponde a uma espécie de objetividade natural, na maneira como vivem e morrem as pessoas comuns. Elas aceitam a si mesmas, e, ao lado de Sócrates, ensinaram Montaigne a agir de modo idêntico”, escreve Bloom, deixando uma pista de onde supõe possa ser encontrada a sabedoria.
Para Bloom, obras datadas e lixo comercial — e não é preciso dizer que as listas de best sellers estão sempre repletas disso — não facultam sabedoria alguma, muito menos a sabedoria exaltada por Montaigne, que, como diz, pode ser encontrada em “Sobre a Experiência”, o texto que encerra o seu famoso livro, Ensaios. “Nosso dever é compor o nosso caráter; não é compor livros; não é vencer batalhas e províncias, mas conquistar a ordem e a tranqüilidade em nossa conduta”, escreve Montaigne. “Nossa grande e gloriosa obra-prima é viver adequadamente. Todo o restante, governar, poupar, construir, são, no máximo, pequenos acréscimos e acessórios”.
No ensaio “Cervantes e Shakespeare”, Bloom reafirma a tese de que para entender o autor inglês, é preciso que tenhamos algo da sua inteligência, o que o tornaria inacessível para a maioria dos críticos, exceto talvez para o erudito Bloom, embora ele costume dizer que o dramaturgo está infinitamente acima “de você e de mim". Diz mais: “Shakespeare é uma forma tão vasta de pensamento e linguagem, de pessoas e convulsão espiritual, e de insinuação de transcendências bloqueadas pela realidade, que apenas começamos a compreendê-lo e absorvê-lo, apesar da arrogância de grupinhos de críticos e estudiosos”.
Ora, não é preciso ser Harold Bloom para saber que, quando lemos Shakespeare ou qualquer outro grande autor canônico, como Dostoievski (1821-1881) ou Machado de Assis (1839-1908), não entendemos boa parte do que eles escreveram. O que entendemos é outra coisa, mas, claro, alguma coisa entendemos.
Para saber exatamente o que Shakespeare quis dizer em suas peças talvez fosse necessário que tivéssemos nascido no século XVI na Inglaterra da rainha Elisabeth I. Ou, borgianamente falando, que tivéssemos nascido Shakespeare. Até mesmo nós, brasileiros deste começo do século XXI, temos dificuldades para entender o que Machado de Assis quis dizer em muitos de seus contos e romances porque, afinal, não conhecemos a Rua de Matacavalos nem a Rua do Ouvidor no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Isso não significa, porém, que tenhamos de desistir de ler Machado ou Eça de Queirós (1845-1900) porque não entendemos algumas de suas nuances que talvez só tenham sido entendidas por poucos de seus contemporâneos.
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