1. Como é,
que é, o seu processo criativo. No sentido em que tem de haver
entusiasmo, no sentido em que a palavra é embriaguez ou possessão, no
mínimo de inspiração, ou no sentido em que tem de moldar comportamentos
ou atitudes que se estruturam na evasão, no caos?
Roderick Nehone:
Felizmente, muito cedo aprendi as leis da dialéctica. Aprendi que atrás
de cada fenómeno que se manifesta como efeito, visível, perceptível, há
sempre uma causa. Do nada, apenas o nada se pode esperar. Por
conseguinte, mesmo no processo criativo na literatura, tem de haver uma
razão para contar algo, tem de haver algo com mérito para ser contado,
com significado social para ser partilhado com os demais, que lerão o
que escrevemos, ainda que seja no domínio do abstracto e imaginativo
mundo da poesia, na sua perspectiva, sempre redutora, de puro trabalho
com a fonética, a morfologia e a semântica das palavras. Em quaisquer
circunstâncias estará sempre alguém no fim da linha, para quem, o que
escrevamos seja perceptível, inteligível. É ao serviço deste
interlocutor potencial que existirá sempre um estímulo muito forte para
desencadear o processo criativo, formular novas ideias que podem assumir
a forma de poesia ou de prosa, sempre que o que escrevamos reúna os
requisitos que antes mencionamos.
A inspiração é um
acontecimento de circunstância, que tem como premissa básica exactamente
o ter ou não algo para contar, dizer, partilhar, pressupostos que
constituem a essência de todo o meu processo criativo.
2. O seu texto literário, é sem dúvida bem urdido artisticamente,
representa os títulos da contínua sombra do homem em génese, nas
peugadas de musa, nas estórias dispersas da vida de um reino, no ano do
cão, nos tempos sem véu e numa bóia na tormenta. De certeza que não nos
pede que nos ceguemos. E também sabemos que as palavras na literatura
nunca cobriram a realidade, elas inventam outra, ou outras. O que tem a
nos dizer sobre o seu tecido literário, entrecortado num primeiro plano
entre poesia e prosa e, num segundo plano, contagiados?
Roderick Nehone: Procuro recriar a realidade desde a minha perspectiva
de observação e de juízo sobre a mesma. Procuro construir um mundo
fictício com os pedaços da realidade que melhor percebo, que mais me
tocam, que mais profundamente provocam o meu sentimento e desafiam a
minha noção racional e ética das coisas e da vida mesma. Arranco (ainda
vivos) da realidade aqueles factos quentes da vida, que fotografam as
nossas congruências e incongruências, ambições e angústias, sucessos e
fracassos, chegadas e partidas, sonhos e desejos, e torno-os peças ou
agentes animados dos meus contos e romances, e também da minha poesia,
dando-lhes significado próprio nos diversos contextos em que a minha
construção literária os enquadre. Como a ficção não é um antónimo da
verdade, há sempre um espaço para a verosimilhança que provoca no leitor
uma satisfação muito próxima a de quem se alegra com o semblante do seu
próprio rosto reflectido pelo espelho. É este diálogo mudo e distante
que mantém próximo de mim quem gosta do que escrevo. Aqui estriba
também, sem subterfúgio algum, uma das muitas e fortes razões para que
continue escrevendo por prazer.
3. Será válida a noção de que as artes precisam de 'abertura' e de
'contactos' para se desenvolverem e de se ter a ideia de que a partir do
material original ou genuíno pode-se perfeitamente fazer-se outro
material, igualmente original (enquanto criação) e genuíno (mantendo a
essência da fonte). Para si o que isso representa para a “angolanidade”
e “para uma geração de incertezas”, ou será que isto não lhe diz nada?
Roderick Nehone: A arte necessita de ar para prosperar. A “quadratura”
de qualquer círculo asfixia a arte. A arte não prospera num ambiente de
“círculos quadrados”ocupados e frequentados por actores envaidecidos com
a suposta beleza extrema dos seus respectivos umbigos. Num mundo cada
vez mais pequeno devido a rapidez como as pessoas se contactam e
partilham ideias, tornando os acontecimentos locais cada vez mais
passíveis de apropriação global, quem não se “abre”, quem não
“contacta”, sucumbe ou se deixa sepultar pela poeira do esquecimento e
da indiferença.
O perigo para a
“angolanidade” não está na maior ou menor abertura com que esta se
exponha ao mundo, mas na cegueira de se pretender catalogar como
genuíno, como “puramente angolano”, apenas aquilo que pertença ao
passado, e que com muito mérito, sublinho, representa apenas o génio e
as conquistas das gerações que nos precederam. Não podemos, nem devemos
ancorar a “angolanidade” tão só nas proezas do passado, apenas pelo
facto de constituírem obras de quem já não está, permanecendo portanto
intocáveis e quase inatacáveis. É preciso dar vida à “angolanidade” no
presente, nos dias de hoje e para tal urge que a nossa obra esteja à
altura dos desafios que nos coloque a convivência entre nós e com os
demais povos do mundo. Tal como acontece relativamente às coisas e
também às pessoas, onde o homem só tende a dar valor àquilo que julgue
que lhe seja útil, na relação entre povos e culturas diferentes, o
respeito ou a consideração estão numa dimensão directamente proporcional
à utilidade que o interlocutor tenha para a vida de quem o observa,
analisa e julga.
Em conclusão, é
preciso não esquecer que a nossa utilidade para os demais situa-se na
justa medida em que possamos satisfazer parte das suas necessidades,
sejam elas materiais ou espirituais. Será então fácil compreender por
que razão nos dias de hoje, o sucesso da nossa “angolanidade” depende
muito do modo frontal e descomplexado como saibamos lidar com as demais
culturas do mundo.
A própria
sobrevivência da “angolanidade” depende da sua capacidade de mutação e
adaptação no tempo à pressão que sofre e sofrerá cada vez mais, num
ambiente de intercâmbio crescente com outras culturas, muitas das quais
reflectem e traduzem realidades materiais tecnologicamente mais
avançadas e mais sofisticadas.
4. Sabemos que é um dos escritores angolanos mais premiados, embora
pouco estudado, por um lado, o que representa para si, entre nós, a
leitura e, por outro, o que representam os prémios literários, por outro
ainda, a média, por outro também, as instituições literárias e de ensino
entre nós?
Roderick Nehone: A leitura é o caminho mais fácil para a constante
consolidação da organização das ideias, do pensamento. Quanto mais se lê
mais se “vê”, tanto o interior da mente, no modo como se arrumam as
palavras, conceitos e categorias que utilizamos para exprimir o que
pensamos, como o mundo que nos rodeia, o homem na complexa teia das suas
relações, a natureza na sua perpétua apresentação de surpresas. A
leitura é o caminho menos oneroso para a liberdade do pensamento de um
indivíduo. Lamentavelmente, entre nós há um grande défice de leitura,
passível de conduzir a longo prazo a um índice perigoso de cegueira
intelectual.
Os prémios
literários constituem um estímulo à criação literária, um incentivo a
boa escrita, um apelo discreto à necessidade de se fomentar a leitura.
Por esta razão devem continuar. Há espaço para mais iniciativas neste
domínio e estas deveriam estar directamente associadas a acções pensadas
e eficazes de fomento da leitura.
Os mass media têm
contribuído para o fomento da literatura e, tal como acontece com outras
áreas da nossa vida, reflectem o estágio de aprendizagem em que estamos
relativamente às noções de liberdade e responsabilidade e ao respeito
pela diferença, o bom nome e a privacidade de cada. É claramente um
processo em progresso.
Há ainda um
caminho longo por percorrer e melhorias a fazer na organização e na
performance das nossas instituições, sejam elas literárias, de ensino,
administrativas e da cultura, em sentido amplo. O país necessita de
consolidar o processo de institucionalização de aspectos
importantíssimos da sua vida. São as instituições, quando fortes, as
entidades que asseguram a continuidade no tempo da obra dos homens,
quando estes são “vergados” pela efemeridade da sua existência.
Instituições fortes afastam as sociedades do caos, da anarquia e da
desordem, e asseguram uma passagem pacífica do legado, do testemunho, de
uma geração para outra.
5. Há problemas, pensamos, com a recuperação e preservação do nosso
património (i) material, temos o caso do espólio de José da Silva Maia
Ferreira, uma parte, repousa nas mãos de uma família americana e, a
outra parte, as crónicas que ele publicou num jornal brasileiro,
enquanto vivia na América, encontra-se na biblioteca do Rio de Janeiro,
temos ainda o caso de O paquete do ultramar de Joaquim António de
Carvalho e Menezes, fundador da imprensa angolana, para poucos exemplos.
Sendo político e homem de cultura, como avalia este tipo de situações em
que ficamos privados de muito do nosso património, até recuperável, e
aquilo que se deve ter como pauta nas preocupações do governo, virados
ao sector da cultura?
Roderick Nehone: Os problemas que uma sociedade vive são hierarquizados
em função da sua gravidade, ou da profundidade como eles colocam em
risco a existência da própria sociedade, caso não sejam atendidos ou
resolvidos em tempo útil. Durante muito tempo o que esteve em risco
chegou a ser a própria existência de muitos de nós, de quase todos ou
mesmo de todos nós, independentemente do lado da barricada em que nos
encontrássemos. Hoje os nossos desafios colocam-se num outro plano e
certamente quem deve e quem pode, no domínio público, saberá equacionar
a maneira que melhor se ajuste ao momento, para cuidarmos do resgate
possível do nosso património levado para fora pelas mais diversas razões
e circunstâncias. Creio que a abordagem deste problema, outrora
protelada pelas razões antes genericamente enunciadas, ganha a cada dia
que passa um estatuto de cada vez maior actualidade na agenda de quem
governa.
6. Literatura e ideologia política, literatura e antecipação política.
O que é, que pulsa em si, sendo escritor e político. Que memória guarda
da nossa literatura nessa matéria ou acha que isso representa o nada que
é apenas o peso da história que pesa mais do que o nosso corpo que nos
permite escapar dela?
Roderick Nehone: A literatura é o que sabe que é, e o que tem de comum
com a ideologia está exactamente no facto de constituir também um
veículo para a transmissão de ideias, a partilha de perspectivas e de
abordagens da vida. Quem escreve tem a sua perspectiva de vida e da vida
e esta última perpassa inevitavelmente toda a sua obra literária. Não
vamos aqui nem agora pesar quantidades nem medir qualidades. Não se
trata de uma questão de proporções. É muito mais do que isso! Trata-se
dos problemas a que tem de fazer face um homem que vive a sua época, que
tem consciência da efemeridade da sua existência, da inevitável natureza
contingente de cada momento desta e também da sua inabalável vontade de
vencer, apesar das contingências. Cabe agora a cada um escolher os meios
de afirmação social que melhor se ajustem à leitura que faz do contexto
que lhe corresponda viver e aos desafios que se disponha a enfrentar.
7. Num país que sai de longos anos de guerras fratricidas, mas também
que vai saindo do autêntico caos mental, envolvido pela queda brusca de
valores, dos hábitos e costumes do passado fossem eles urbanos ou
rurais. O kandongueiro, o kangulo, o miúdo de rua, no seu texto organiza
neste caos estruturas artísticas. Em sua opinião qual é o sentido de
escrever (fazer arte), não será isso inútil para os desafios que o país
nos coloca?
Roderick Nehone: A nossa vida seria pior, seria mesmo insossa e vazia
sem arte, sem literatura, sem música, sem cultura, numa perspectiva mais
lata. A arte sintetiza a superioridade do bicho-homem relativamente ao
resto do mundo animal. Os grandes desafios do país serão tratados pela
arte, em cada uma das suas vertentes e retratados de uma maneira
singular que pulse o sentimento e a interpretação dos diversos agentes,
dos fazedores da cultura. Não há e nunca houve “caos mental”. Há crise
de valores, porque foram por muito tempo violentos os choques da mudança
e, agora, com a globalização, apesar de menos traumáticos, continuam
sendo igualmente radicais os vectores de pressão externa portadores de
outras referências culturais, que simbolizam outros estágios de
desenvolvimento tecnológico, conseguidos com base noutros padrões
culturais. Estamos pois dentro de uma casa que se reorganiza e tenta
sustentar-se em pilares endógenos, infelizmente, demasiado frágeis. É
então elevado o risco de que o tecto nos caia em cima, ou teremos de
agregar ao lado dos nossos, alguns pilares exógenos. Se assim for, não
se tratará certamente de uma operação cosmética. Estaremos diante de um
processo que não pode deixar de ser doloroso e que, por conseguinte,
exigir-nos-á pagar um preço. E aí está, para mim, o maior desafio, maior
ainda porque ninguém pode vaticinar como é que sairemos dele, ou melhor,
em quê que nos teremos convertido quando sairmos dele.
8. O português é sem dúvida parte da nossa cultura e do nosso
imaginário a par das outras línguas. No plano linguístico alimenta uma
realidade exoglótica que se pode definir como fronteira entre
semiosferas. Numa visão de língua cultura, história, literatura,
pluralismo e identidade nacional, que prioridades, acha que se deve ter
para estruturar e desenvolver o nosso tecido linguístico nacional e
cultural refuncionalizado e integrado nos textos das tradições orais
numa realidade global?
Roderick Nehone: Em poucas palavras, a primeiríssima tarefa é da
incumbência dos nossos linguistas. Os nossos linguistas devem fazer o
seu trabalho de casa. E o seu trabalho de casa é, através do estudo
científico, criar, inventar, descobrir os vocábulos nas nossas línguas
nacionais que exprimam a realidade material e espiritual de hoje, que
não é, nem de longe, a que foi deixada pelos nossos bisavôs. Eu, que sou
quimbundo, quando souber como se diz proteína, fusão nuclear,
astronauta, biotecnologia, física quântica, nanotecnologia,
dermopa-piloscopia, etc, em quimbundo, sem necessidade de recorrer ao “ji-rádio”,
“ji-televisão”, e outros “jis” sem graça que aparecem como falsos
prefixos, olharei com maior circunspecção para todos os demais
argumentos, ainda que não estejam baseados na realidade objectiva e
estejam apenas ancorados no perigoso voluntarismo. Quando este trabalho
de casa estiver feito, (e se alguém tiver dúvidas de que pode ser feito,
recomendo que compre um electrodoméstico feito na Indonésia e verá que
além do inglês e do francês, estará também no manual a língua local a
exprimir toda a complexidade tecnológica do aparelho) poderemos sair a
rua de mangas arregaçadas e ensinar a todos todas as nossas línguas,
além do português.
9. A era dos Shopping center’s, a das tecnologias de informação, a da
comunicação de massa, a da união dos escritores angolanos, a da crítica
literária e da literatura angolana, que argumentos de razão guarda sobre
a sua qualidade e a sua promoção. Acha que há autores de peças
artísticas e de peças críticas que devem ser recuperados de um injusto
esquecimento?
Roderick Nehone: Acho apenas que ao existir uma União dos Escritores
Angolanos, ao existirem editoras angolanas, o esforço de divulgação da
literatura angolana, dentro e fora de Angola, com essas entidades
colectivas, deve produzir resultados maiores, que estejam bem acima das
iniciativas individuais e dos lobbies elitistas baseados em critérios
muito questionáveis ou pouco sustentáveis. Cabe à crítica literária
identificar a qualidade do que foi feito ontem e do que está a ser feito
hoje e sugerir a sua maior divulgação. Porém, tenho consciência de que
esta crítica literária também convive com o eterno problema da
maturidade ou da maioridade. Não obstante, é fazendo que se aprende a
fazer e temos de aceitar o que se faz, tal como se faz, ainda que não
lhe poupemos de uma crítica construtiva.
10. De que modo compreende e define o espaço das novas propostas
artísticas, na nossa memória literária. Ou acha que devemos todos ir nos
ajustando nas formas artísticas anteriores, na lógica duma fábrica de
tijolos em detrimento dum jardim, ou seja, a ideia de quem chegar
primeiro ser a medida para todas as coisas?
Roderick Nehone:
Seria inadmissível aceitar que se espartilhasse a liberdade de criar.
Deixai o homem criar com a mesma liberdade e satisfação que sentimos ao
vermos um pássaro voar sem amarras. Reservemos ao escritor, ao criador,
a responsabilidade pela escolha dos estilos, das formas e dos conteúdos
da sua obra. Deixemos aos leitores, aos destinatários da produção
literária e cultural, a nós mesmos, em última instância, o direito de
opção por aquilo que melhor satisfaça a nossa educação estética e
artística. Creio que estas são algumas das premissas para que a criação
cultural não se converta numa reprodução invertida, monstruosa ou
raquítica, da realidade material que sustenta ou inspira as ideias que
lhe dão forma e conteúdo.
Muito Obrigado. |