WILSON COELHO
O ETERNO RETORNO

Não era um clandestino, mas viajava ao destino de seu mundialmente desconhecido clã que – totêmico – resistia na parede morna de sua mona memória cansada de causos ancestrais. Todavia, no percurso de toda a via, via que perdia a noção do trem. Não havia trilhos, não vinha de lugar algum e, em cada parada de cada estação onde embarcavam e desembarcavam pessoas, como se fora uma brincadeira de troca-troca dos ocupantes das poltronas, dizia para si mesmo e para qualquer suposto interlocutor ou vizinho de viagem que lhe desse atenção:

- Eu nasci aqui, você não me conhece? – perguntava apontando o dedo.

No entanto, mesmo sem respostas, alimentava-se de uma orgânica necessidade de seguir viagem, mesmo sem a noção dos paralelos trilhos, mas pressentia o destino como uma ânsia de mudar alguma coisa ou apenas sair dali.

Talam-talam!

Talam-talam!

Sua consciência natural queria esquecer a história porque um amontoado de pedras na história continua sendo um amontoado de pedras e mesmo que algum transeunte tenha retirado algumas para atirar num pássaro ou apenas para fazer fogo.

Numa determinada parada do trem, saiu rapidamente, deixando seu lugar marcado pelo jornal que trazia nas mãos, foi a um boteco próximo a estação e tomou uma cachaça num só rápido gole. Ao voltar para o seu assento, percebeu que a poltrona vizinha havia sido desocupada pelo mudo senhor que o tinha acompanhado até então. Então, no lugar do tal velho, sentou-se uma senhora com um olhar de Madalena arrependida usando um grande relógio com pulseira de metal. Aparentava ter a sua ida idade. Trinta e oito anos, apesar dos maus tratos, mas preferia imaginar que ele tivesse uma ruguinhas a mais.

- Não nos conhecemos? – ele se atreveu.

- Claro! – respondeu a mulher. – Estudamos juntos. Você morava na cidade vizinha e todos os dias vinha e voltava neste mesmo velho e abominável trem...

- É verdade! Você era a Maria dos Infelizes.

- Era, você disse bem! Agora... só tenho um infeliz na minha vida.

- Mas ainda não tem filhos?

- Filhos? Claro que os tenho, mas não são infelizes, são uns miseraveizinhos, quase humanos, e ainda não se preocupam com a felicidade...

Calaram-se abruptamente como se estivessem falando por intermédio de uma porta entreaberta e que esta tivesse se fechado pela força de um grande vento. Mas não era um vento como aquele que encerra os “Cien Años de Soledad”, de García Márquez.

Continuaram a viagem em silêncio... porque o princípio e o fim podem até estar nas extremidades da mesma corda, mas nem por isso serão contrários, entendendo que o princípio só é princípio se tiver um fim. Não um fim em si mesmo, mas um fim que já existe no princípio como proposta e objetivo. Ao mesmo tempo, o fim só pode ser fim se puder ser a plenitude da realização do objeto do princípio. Mas... voltando à onça morta, ele pensava no quanto a amara e, ao mesmo tempo, sentia – como dizem os ressaqueados da

Psicanálise – uma mistura de autopiedade e ódio. Cultivara por muito tempo a idéia de que podiam se enamorar como os que realizam os seus sonhos, mesmo que por umas horas a mais do que o curto espaços das festas que participaram – ou dos coitos às escondidas e às pressas nos vãos de escadas.

Por outro lado, ela alimentava o amargo gosto ou uma espécie de sensação de que poderia estar melhor se naquela época tivesse optado por ele ou pelo menos não tê-lo conhecido. Mas agora tratava-se de algo irreparável e não valia mais a pena apenas refletir sobre o sexo dos anjos. E se vovó tivesse morrido virgem?

Três estações depois, ele resolveu por quebrar o gelo.

- Eu morava ali. – disse apontando para uma encosta de montanha onde havia escombros denunciando a possibilidade de algum vestígio de civilização.

- Mas como, se ali não existe nada? – retrucou Maria dos Infelizes, mas retrucar sempre dá a idéia de um novo truque, é claro, como se costuma ver nos romances adocicados de happy end ao molho pardo.

Não insistiu na investida. Não seria mais possível remontar o quebra-cabeças de nenhum momento de sua história para aquela a quem a vida – apesar dos trilhos – não tinha mais nada de paralelo com a sua e que no roteiro de sua tragédia não lhe cabia sequer o papel de figurante.

Seria impossível dizer das aventuras que vivera um dia naquele rio sob os trilhos, na lagoa defronte a antiga casa, a relação com os caçadores, o seu jacarezinho de estimação e aquele pensamento ingênuo, puro e besta de que o mundo não era de ninguém, ou seja, era d qualquer um e de todo mundo ao mesmo tempo, considerando que pescar, caçar, nadar, andar a cavalo e apanhar as mais variadas frutas fazia parte do cotidiano. Naquele tempo o mundo não era dividido em propriedades e proprietários.

Numa estaçãozinha onde não havia sequer uma casa ao lado, Maria dos Infelizes saltou. Sequer se despediu e, logo depois que se foi, parece que nem tinha estado. O vazio de seu antigo lugar já havia sido tomado por outra mulher. Talvez tivesse embarcado na mesma estação em que Maria havia desembarcado. Talvez estivesse de pé, no corredor do trem, ao lado dos dois, aguardando a sua vez na academia dos solitários.

Depois de algumas horas de silêncio, ele lhe pergunta:

- Não nos conhecemos?

- Claro...

 
Wilson Coelho é dramaturgo, escritor, graduado em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo