Eu procuro dizer como tudo é outra coisa. *
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Eu procuro ver o cão recém-chegado.
A sua boca, a espuma da sua
Proximidade.
Eu procuro as costas da tarde
Nos seios expostos da luz.
A curva que a casa faz
Ao dobrar-se sobre a colina: esse
Movimento.
O espanto do cão.
A sua mordedura no sofá. Sentir
A mesma sensação nos Dentes.
A exposição dos candeeiros.
Os globos rolados da colina.
A tentativa do cão os apanhar com a boca,
Apesar de serem muitos, e intermináveis.
Eu sou o cão recém-chegado.
O cão Espantado.
Acerco-me da hiprocrisia dos sofás
Da sua falsa exposição e disponiblidade.
E neles espeto as facas
À procura de algo escondido dentro
Como o dentista se debruça sobre a boca e cai
Entre as amígdalas.
O médico frio que se aproxima
Com o estojo dos estiletes.
Eu procuro as jarras, as pinças
Que decoram os apartamentos das pessoas,
Essa Consensualidade.
Com as facas. Com as fauces.
Com a raiva contraída.
Porque eu vejo que tudo é outra coisa.
Que toda a coisa está um milímetro
Ao lado de si mesma.
E em vez de as querer fazer coincidir, ou sobrepor,
Eu gozo com essa fenda.
Eu sou um um cão em fato completo
E gravata
Que se aproxima com olhos dilatados
Dos sofás.
Da sua espantosa ontologia.
* verso de Herberto Helder, de Poemacto, recolhido em A Faca Não Corta o Fogo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008, p. 12.
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