Tânia Mara Galli Fonseca*
O NATAL POR VIR

“O fim está no começo e no entanto continua-se”.
Samuel Beckett

“ O verdadeiro caminho passa por uma corda esticada não em altura, mas um pouco acima do solo. Parece destinada a fazer tropeçar, não a ser ultrapassada”.
Franz Kafka

Estamos no Natal. Mas o Natal não pré-existe. é preciso traçar um círculo em torno de seu centro frágil e incerto, roer-lhe o rosto habitual e automatizado, convocá-lo como espaço que nos revitaliza e acolhe as forças germinativas de uma tarefa a ser feita. Selecionar, eliminar, extrair, não deixar submersa uma vez mais a potência da ocasião para reinventar aquilo que padece da tendência de se parecer sempre consigo mesmo, tão tradicional e compulsivo.Marcar território, traçar um círculo para uma outra fundação, sem afundamentos. Depois, entreabrir-se, chamar alguém ou sair em busca, deixá-lo entrar... abrir o território para um futuro, fissurar a linha do círculo para ir ao encontro de um Fora. Improvisar o Natal, sair do Natal do passado e traçar linhas de errância mesmo que ainda apoiados tão somente no corrimão de uma cançãozinha recém aprendida. Situar o Natal entre o passado e o que pode vir. Colocá-lo no interstício, dar-lhe a chance de ganhar ritmo de pulsação, de ser tanto dia como noite, de ser passagem para o incomensurável que nos surpreende. Precisamos de um Natal que funcione como plano para nos fazer passar para outro meio, aterrisar, amerissar, alçar vôo. Arremessar na cena de Natal, as marcas trágicas e paradoxais de nossa condição de humanos, marcá-lo pelo nosso combate contra o que ele tem sido e ao que nele se tem produzido: não desejamos o natal como sinal das artimanhas do capitalismo, do consumismo, do fetiche e da fantasia de felicidade. Poderíamos querer erigí-lo como signo para dele extrair e dilatar sentidos. Precisamos esgotar o Natal, mas ainda preservar as mãos abertas. Liberá-lo do capital, da submissão ao amor como palavra de ordem, da tolerância como signo da inclusão, da mercadoria como recompensa e reconhecimento.Rasgar-lhe a velha fisionomia, inscrevê-lo em outro fluxo da história, fluxo dos tempos de homens e mulheres que se fazem à altura de sua própria condição de viventes, desamparados para sempre das certezas definitivas, inscritos em movimentos a contrapelo da história do presente. Descobrir que se pode viver junto, pois, desde sempre, não possuímos senão distâncias e trata-se de criar um meio que torne possível a coexistência de um máximo de multiplicidades. Reagrupar as forças de nosso território existencial de modo a fazê-lo um lugar onde todas as forças se reúnam, num corpo-a-corpo de energias. Colocado como meio, o Natal pode vir a ser esse corpo-a-corpo, esse centro intenso para o qual peregrinam múltiplas forças e o transformam em pátria desconhecida, terra nova. Dar chances ao Natal para que se marginalize do código dominante, se defase e diferencie. Esgotá-lo daquilo que nele temos impregnado. Localizá-lo ali, onde não o suportamos mais, ali onde não mais o acreditamos e desejamos. Tocar o seu insuportável, dar voz à nossa longa queixa de tristeza natalina, pois desde sempre nos sabemos fora de qualquer natal. Chegar ao fim da linha e nos forçar a buscar o desvio porque o caminho de que nos servíamos de transporte, já não nos leva mais a lugar algum; apenas nos deposita numa espécie de dissipação, de nevoeiro branco e nervoso que insiste em nublar a visão que temos de nós mesmos. Produzir o Natal como desvio, como criação de um meio próprio para o nosso tropeço. Natal paradoxal, que desnaturaliza o equívoco do Natal em nós. O Natal não está dentro, Ele se situa Fora de nós e sempre que o buscamos dentro, corremos o risco de encontramos somente aquilo que já foi, aquilo que não se renova, aquilo que nos erige como ruína sem esperança. Não se trata de encontrar a nós mesmos. Trata-se de sair, libertar o devir, desengatar a série monótona, inócua e previsível. Sair do Natal mecânico para produzir a maquínica do Natal que nos autoriza a renascer em nossa vontade de potência porque nos coloca no ponto de esgotamento de nossas velhas vias de existir em comum. Há, sim, um certo Natal de onde precisamos sair. Natal das origens, das promessas, da longa memória. Fazer um Natal do presente, impregnado de um tempo que a todo o momento se bifurca em passado e futuro. Reaver os natais perdidos, encarquilhados na opaca brancura de nosso esquecimento. Produzir o Natal que ainda não foi vivido, não o último Natal do último homem, mas o Natal do além do homem e que se encontra à espera como um Natal por vir.

Bibliografia

Beckett, Samuel. Fim de Partida. Sâo Paulo:Cosac e Naify, 2002, p. 128.

Deleuze, Gilles e Guattari, Félix.Mil Platos. Capitalismo e Esquizofrenia, v.4. São Paulo: Ed. 34, 1997.

Deleuze, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

Kafka, Franz. Aforismos. Portugal: Ed. Ulmeiro, 2001, p.07

 * Professora do Instituto de Psicologia da UFRGS