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Espaços heterotópicos, imagens sobrepostas: encontros entre arte,
loucura e memória
Tania Mara Galli Fonseca, Andresa
Thomazzoni, Vivian Lockman & Vitor Buktus |
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Resumo:
O tema desse trabalho é o processo de catalogação das
obras produzidas na Oficina de Criatividade Nise da Silveira,
freqüentada por internos do Hospital Psiquiátrico São Pedro, situada em
Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Durante os dezessete anos de sua
existência, essa oficina foi se instaurando como um lugar contra o
esquecimento, onde temporalidades singulares puderam resistir,
fazendo-se obra ao tempo sem duração que insiste em se instituir na
cidade globalizada. O trabalho de catalogação vem se desenvolvendo como
produção coletiva (extensionista) que reúne a equipe do Hospital e
estudantes de diversas áreas, como artes, psicologia e história
(Universidades pública e privada do RS). Foi identificada a existência
de no mínimo quatro coleções significativas do ponto de vista do que se
denomina Arte Reclusa ou Arte Bruta.
Tais produções, que constituem um inestimável
patrimônio imaterial, carecem, entretanto, de preservação e catalogação
pertinentes para que venham a se constituir em reserva técnica para a
pesquisa em diversos domínios como os da saúde, educação e artes. A
organização desse acervo, assim, acontece como inseparável de uma ética
que vem buscar na obra o testemunho de subjetividades, tendo como
matéria a afirmação da diferença em sua positividade. |
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Palavras-chaves:
arte, loucura, memória, museologia. |
Heterotopical spaces, overlapping
images: meetings between art, madness and memory |
Abstract:
The theme of this article is the process of cataloging of the works that
have been produced in the Studio of Creativity Nise da Silveira, which
is attended by interns of the Psychiatric Hospital São Pedro, in Porto
Alegre, Rio Grande do Sul. During the seventeen years of its existence,
this studio has been established as a place against oblivion, where
singular temporalities can resist, through artistic creation, in spite
of the time without duration that distinguishes globalized cities. The
process of cataloging has been developed as a collective production,
congregating the Hospital’s staff and students from several areas, such
as Arts, Psychology and History (from public and private local
universities). At least four significant collections, in the perspective
of so-called Art Brut, were identified. These collections, which
constitute an inestimable immaterial patrimony, require appropriate
preservation and organization, in order to become a technical reserve
for researching. Therefore, the organization of these collections has
been moved by an ethic purpose that affirms the works of art as
testimonies of subjectivities, claiming the difference in its
positivity. |
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Keywords: art,
madness, memory, museology. |
a)
Espaços heterotópicos, imagens sobrepostas: encontros entre arte,
loucura e memória.
b) Espaços heterotópicos, imagens sobrepostas.
c)
Heterotopical spaces, overlapping images: meetings between art, madness
and memory.
d) Tania Mara Galli Fonseca. Psicóloga,
professora titular do Instituto de Psicologia da UFRGS, docente
pesquisadora dos programas de pós-graduação em Psicologia Social e
Institucional e Informática na Educação/UFRGS.
Andresa Ribeiro Thomazoni. Psicóloga. Mestranda em
Psicologia Social e Institucional UFRGS. Integrante do grupo de pesquisa
Corpo, Arte e Clínica nos Modos de Trabalhar e Subjetivar.
Vivian Lockmann. Artista visual. Graduanda em Artes
Visuais pela UFRGS. Integrante do grupo de pesquisa Corpo, Arte e
Clínica nos Modos de Trabalhar e Subjetivar.
Vitor Butkus. Artista visual. Graduando em Artes
Visuais pela UFRGS. Integrante do grupo de pesquisa Corpo, Arte e
Clínica nos Modos de Trabalhar e Subjetivar.
e) Rua Campos Salles, 262 Bairro Boa Vista / Porto
Alegre / RS -CEP 90480-030. Fone: (51) 3328 5350 Fax: (51) 3328 6505.
e-mail:
tfonseca@via-rs.net |
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Este trabalho se insere
no movimento prático-reflexivo iniciado pela proposta de organização o
Acervo da Oficina de Criatividade Nise da Silveira, criada em 1990 num
dos pavilhões do mais antigo hospício gaúcho, o Hospital Psiquiátrico
São Pedro (HPSP), em Porto Alegre. Propõe-se a mapear o território dessa
ação, pioneira no Estado. A catalogação do Acervo foi iniciada no ano de
2007, inserindo-se no conjunto de ações desenvolvidas em caráter de
parceria e extensão entre as instituições do HPSP, Universidade Pública
e Privada do Rio Grande do Sul (estudantes de diversas áreas, como
artes, psicologia e história). Entendendo que tal iniciativa ocorre em
meio a processos em andamento, busca-se, aqui, realizar um recorte
dessas processualidades.
Em relação ao contexto
local, cabe aqui trazer as linhas gerais do lugar em questão. O pavilhão
que hoje serve de espaço para as atividades da Oficina faz saltarem,
àqueles que o visitam, muito mais que as imagens de arte, objetos da
catalogação. Essas imagens estão emolduradas por paredes que trazem,
além de resquícios de tinta, as marcas que testemunham a história da
loucura e da psiquiatria. Vêm à vista imagens que conservam, no
presente, histórias da relação da cidade de Porto Alegre com os cidadãos
para os quais, nessa cidade, se construiu esse lugar especial: os
loucos. A primeira parte desse trabalho dedica-se, então, a recontar um
pouco dessa história, partindo dos índices que a fazem durar na
atualidade do nosso contexto de trabalho.
Trazer à tona essas
marcas históricas coloca-nos num horizonte de discussão que não se
restringe ao contexto local. As paredes do HPSP participaram, em sua
construção planejada, de um movimento político e social ressonante das
políticas de urbanização e racionalização que produziram os modos
urbanos de vida. Ademais, tais paredes-muros, não mais tão brancos,
ilustram e conformam as recentes movimentações da Reforma Psiquiátrica,
no que toca às problematizações contemporâneas da loucura. Podendo ser
considerada um fruto dos novos modos de conceber o louco no contexto
urbano, a Oficina de Criatividade Nise da Silveira traz às vistas de
hoje um enorme volume de imagens, cujos destinos nos forçam a pensar. É
assim que a singular sobreposição de imagens, experimentada no ato desta
catalogação, nos convoca a instaurar as vias de sua disponibilização no
contexto artístico e investigativo atual. Tarefa essa, sobre a qual o
presente escrito busca refletir, traçando as linhas que conectam e
tensionam esse Acervo de memórias da loucura com a complexidade cultural
contemporânea.
Propomos um exercício de
pensamento, capaz de escavar as antigas paredes brancas, escavar a
insurgência de outros espaços na clausura do hospital. Resgatarmos a
memória da arte bruta[i]
ali produzida, num esforço capaz de extrair as potências que ali se
encontram e resistem ao tempo. Tal como Walter Benjamin nos fala, a
memória como meio de exploração ao passado e tudo aquilo que a
atravessa.
A língua tem indicado
inequivocamente que a memória não é um instrumento para a exploração do
passado; é, antes, o meio. É o meio onde se deu a vivência, assim como o
solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende
se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que
escava. (...)A rigor, épica e rapsodicamente, uma verdadeira lembrança
deve, portanto, ao mesmo tempo, fornecer uma imagem daquele que se
lembra, assim como um bom relatório arqueológico deve não apenas indicar
as camadas das quais se originam seus achados, mas também, antes de
tudo, aquelas outras que foram atravessadas anteriormente” (Benjamin,
1997, p.239). |
1. Paredes brancas em Porto Alegre |
O espaço que hoje abriga
o Acervo da Oficina de Criatividade do HPSP corresponde ao segundo andar
do pavilhão central do centenário hospital. As obras estão
acondicionadas em prateleiras de uma ampla sala, em cujo centro
encontramos uma mesa. Acima dessa mesa, afixado no teto, vemos um
portentoso braço metálico, que sustenta, em sua extremidade, um conjunto
de lâmpadas. São lâmpadas cirúrgicas. A mesa central tem as dimensões
suficientes para acolher um corpo humano, deitado.
A construção desse prédio
data de 1884, época na qual a administração municipal de Porto Alegre
tomava diversas medidas para racionalizar a malha urbana, organizando os
fluxos e criando, para isso, novos pólos institucionais e novas
condições de circulação. Segundo Costa (2005), os desarrazoados eram,
até então, separados do convívio social e confinados na Santa Casa de
Misericórdia ou nas cadeias. Às vésperas do século XX, Porto Alegre
crescia como metrópole regional. Reverberavam nessa cidade os ideais
positivistas de Auguste Comte, trazidos da Europa pela elite
intelectualizada. Nesse contexto, a criação de um hospício encontrou a
adesão de governantes e da população, que se viam justificados a adotar
modelos urbanísticos importados da modernidade européia.
Numa área afastada do
centro da cidade, foi erguido o prédio do HPSP, composto de seis
pavilhões, com seus respectivos pátios. No início do século, então, os
loucos da cidade – e de várias partes do Rio Grande do Sul – já tinham o
seu destino. Eles eram alocados nos seis pavilhões do hospital,
seguindo-se aí uma distribuição condizente com as classificações
nosológicas vigentes.
As paredes dessa sólida
construção serviram, num mesmo movimento, para separar os loucos do
resto da cidade e para constituir um ambiente de tratamento da loucura.
Tornados pacientes, essas pessoas recebiam tratamentos cuja finalidade
era o apagamento de subjetividades insuportáveis à dinâmica social. O
pavilhão que hoje abriga o Acervo era o centro cirúrgico do hospital:
espaço onde os corpos, depois de bem sedados, eram submetidos a
intervenções com fins terapêuticos.
As paredes brancas
formaram um ambiente asséptico e neutro de práticas, cuja neutralidade
era atestada pela suposta universalidade do saber médico-científico, e
cuja finalidade estava em consonância com uma regularidade dos modos de
viver em sociedade. O lugar do Acervo guarda essa memória na brancura
esmaltada dos seus azulejos e no mobiliário cirúrgico, que não nos
deixam esquecer as vigas concretas e abstratas que sustentaram a criação
de nosso espaço de trabalho. |
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2. Outros pigmentos |
No decorrer do século XX,
as mudanças epistemológicas que sustentaram diferentes nosologias e
intervenções no que concerne à loucura, se expressaram em configurações
espaciais do hospital em questão. Nos meados desse período, o HPSP
tinha, dentro de suas fronteiras, algo como uma pequena comunidade.
Hortas e manufaturas mantinham os moradores do hospital ocupados,
refletindo uma diferença no tratamento da loucura. Assim, os pacientes
fora dos estados de surto e catatonia tinham sua energia aplicada nessas
atividades – sempre, claro, sob os olhares atenciosos e vigilantes dos
médicos e funcionários responsáveis pelo bom andamento dos trabalhos.
Num esforço imaginativo, podemos considerar provável que pequenos
reparos nas salas pavilhonares tenham sido realizados por
moradores-pacientes – claro, desde que devidamente medicados e
instruídos pelo corpo de funcionários.
Já no final do século,
uma outra política pública vai nortear os modos de lidar com a loucura
social. A Reforma Psiquiátrica implantada em âmbito nacional acompanhou
um movimento de problematização das relações saúde-loucura que envolveu
um amplo campo de disciplinas e instituições. Outros âmbitos, além do
médico, passaram a se sentir convocados pela discussão das margens
instituídas entre o normal e o patológico, propiciando as condições
necessárias para uma revisão dos mecanismos sociais de gestão da saúde
mental. Ganhou corpo, assim, uma tendência de descentralização dos
locais de atendimento ao portador de sofrimento psíquico, onde se
reflete também a intenção de que a sociedade em seus vários estratos
contribua para a inclusão e o respeito da diferença.
Centenário, o HPSP deixa
de ser a destinação de pacientes psiquiátricos, que passam a ser
tratados em serviços substitutivos espargidos pela cidade. A rede de
serviços substitutivos inclui unidades que, em geral, não se destinam à
moradia, onde os pacientes são recebidos por equipes multidisciplinares
compostas de psicólogos, médicos, pedagogos, terapeutas ocupacionais,
assistentes sociais e arte-educadores. Assim, o atendimento ao doente
mental se complexifica, ao mesmo tempo em que, do HPSP, milhares de
pacientes são realocados para suas moradas de origem, sob a
responsabilidade dos respectivos familiares.
Em 1990, já no contexto
das mudanças que vão resultar na Reforma Psiquiátrica, é criada, no São
Pedro, a Oficina de Criatividade Nise da Silveira. Esta se configura
como um espaço de liberdade de expressão, a partir de materiais e
conteúdos escolhidos pelos próprios usuários. Ali, são produzidos
desenhos, pinturas, modelagens, bordados e escritas, sendo que os
suportes procedem de sucata, recolhida pelos profissionais e técnicos
que lá atuam. Lápis de cor, giz de cera, hidrocor, tinta têmpera,
sucatas, revistas, linhas, panos, argila são alguns dos materiais
utilizados na confecção dos trabalhos. A iniciativa de criação da
Oficina, bem como a atual organização por que passa seu Acervo,
encontram inspiração no Museu de Imagens do Inconsciente, situado no Rio
de Janeiro e fundado em 1952 pela psiquiatra Dra. Nise da Silveira, e
também no Museu Osório César, localizado em São Paulo, fundado em 1985
por Maria Heloísa Ferraz. Acreditamos, com Weinreb (2003, p.62), que “as
idéias de Osório César e Nise da Silveira sensibilizaram para um outro
olhar, um olhar para uma outra direção, a da inclusão, assim
ressignificando conceitos sobre arte e loucura. Esta proposta continua
ainda hoje presente e necessária, questionando em seu cerne as atitudes
que passam para os depósitos (manicômios) da civilização, tudo que não
se quer ver. Portanto, um novo olhar é necessário, através de um
movimento dos sentidos que permita ver este outro lado”.
A
Oficina propicia a adição de outras cores num espaço marcado pela
neutralidade. Nesse seu tempo de funcionamento, ela deu lugar à
confecção de cerca de cem mil trabalhos. Recentemente, num estágio
inicial de organização, esses trabalhos foram separados por ano e por
autoria. Além disso, foram recolhidas e armazenadas outras espécies de
documentos como fotos, relatórios, catálogos de exposições que, por seu
caráter de registro histórico, merecem ser disponibilizados para
pesquisadores. Constitui-se assim o grande volume de materiais que,
atualmente, está em vias de ser catalogado, através da criação de um
banco de dados digitalizado.
Do
trabalho inicial de organização das obras, que se encontravam acumuladas
aleatoriamente no espaço do Acervo, identificaram-se quatro coleções de
inegável consistência estética que, hoje, a par da continuidade daquele
outro processo ininterrupto, pois a produção de obras pelos
freqüentadores da Oficina é ainda constante e diária, estão merecendo
nossa atenção. Essas coleções, de autoria de Luiz Silveira Guides,
Natália Leite, Frontino Vieira e Cenilda Ribeiro, constituem uma arte
voltada para os afectos do tempo.. É por elas que se inicia a
alimentação do banco de dados, que, posteriormente, poderá ser o suporte
de uma maior visibilidade e circulação dessas obras.
Cronologicamente, as relações da arte com a psiquiatria e a psicologia
datam do século XIX quando apareceram as primeiras referências teóricas
sobre o assunto e foram introduzidas nos hospitais psiquiátricos algumas
atividades de natureza artística ou artesanato. No campo da psiquiatria,
percebe-se que as primeiras ligações entre elas vão oscilar entre as
diversas linhas terapêuticas e com as comparações com a arte de
vanguarda. (Ferraz, 1998)
“Neste
final de milênio, é fácil notar-se ainda o impacto da produção criadora
dos doentes mentais no imaginário das pessoas e nos trabalhos de
intelectuais e artistas, mas é muito pouco o que encontramos de
efetivamente produzido em termos de publicação e pesquisas. Ressaltam-se
as traduções de obras como a Prinzhorn (1995) e trabalhos como de John
M. MacGregor, The Discovery of the Art of the Insane (1992) e Depression
and the Spiritual in Modern Art- Homage to Miro. No Brasil, como veremos
mais adiante, estamos procurando marcar este espaço por meio de
pesquisas e eventos onde seja possível discutir e analisar as produções
e suas influencias” (Ferraz, 1998, p.27).
O
trabalho de organização do acervo, visa dar o tratamento adequado às
obras ali contidas, possibilitando a criação de espaços de diálogo e
pesquisa que envolvam a temática da arte e loucura. Através dessa
documentação será possível produzir e acumular conhecimento, divulgando
por meio de exposições, cursos e publicações. Esse movimento faz parte
da reforma psiquiátrica, exercendo influência no processo de
transformação dos espaços e dos métodos terapêuticos existentes.
A
idéia de art brut é lançada pelo pintor Jean Dubuffet, qualificando
artisticamente, e pela primeira vez do ponto de vista da crítica, as
criações dos não-profissionais, inclusive os psiquiatrizados.
No
grupo surrealista, os artistas André Breton, Paul Eluard, e Max Ernst
foram os primeiros a mostrar interesse pela manifestação espontânea dos
psicóticos, estudando desenhos, poemas e outros escritos. Da mesma
maneira que os artistas expressionistas, Breton e Max Ernst foram buscar
no asilo essas manifestações artísticas, visitando e trabalhando em
diversos hospitais psiquiátricos. A descoberta da arte dos psicóticos
interessa especialmente a artistas como Paul Klee e Max Ernst, que se
mostram sensibilizados ao conhecer os desenhos e pinturas dos loucos,
pela riqueza imaginativa, seus simbolismos e espontaneidade. (Ferraz,
1998).
«A
arte transcende, ou melhor, ignora a diferença entre as frágeis
fronteiras da sanidade e da loucura, como ignora a diferença entre
primitivos e modernos. Nas composições desses artistas, cujo diagnóstico
é freqüentemente sem esperança (esquizofrenia incurável) cumprem-se as
duas exigências da arte: ‘ser a destruição da comunicação comum e ser a
criação de uma outra comunicação’. Isto é, ser a instauração de uma
comunicação incomum”. (Frayze-Pereira, 2003, p.1) |
3. Sobreposições heterotópicas |
Fica, dessa maneira, demarcado um
conjunto complexo de imagens com as quais tem de se lidar no trabalho de
catalogação do Acervo. Para além da materialidade de cada obra, e da
visualidade de cada imagem, cabe recebê-las como expressões atravessadas
por uma série de movimentos, que as fazem durar como potências. Assim,
essas obras concatenam tendências que ultrapassam a individualidade de
seus autores. São os resíduos visíveis de um passado histórico que ainda
se move nas conformações da experiência contemporânea.
O processo pelo qual se individuou
a forma “museu” cumpriu a tendência moderna de compartimentar o espaço,
com vistas a uma ordem geral. As práticas embrionárias da musealização
consistiram, há quatrocentos anos, na reunião de obras de arte em
ambientes de ateliê, onde elas eram justapostas a obras ainda em
processo (Janeira, 2005). Mais tarde, as plataformas políticas liberais
suscitaram a criação de espaços públicos destinados a disponibilizar
tais bens culturais para um público irrestrito.
A prática de reunir acervos se
desloca, então, da casa do artista para espaços caracterizados pelo
acúmulo: acúmulo de tempo, coleção de processos, deslocados de seus
territórios gerativos e reterritorializados na malha social
compartimentada. O ato de catalogar, assim considerado, acha-se imerso
nos paradoxos que o sistema capitalista coloca à atitude criadora.
Acreditando, com Deleuze e Guattari (1996), que é nos limites do
capitalismo que se produzem as linhas de fuga, e não na dialética de
polarização, vemos ainda a possibilidade de que o gesto atual de
catalogação venha a favorecer verdadeiros acoplamentos com os devires
minoritários expressos nas obras.
Em seu texto De outros Espaços,
Foucault (2001) define os museus como lugares onde se acumulam registros
de “todos os tempos, todos as épocas, todas as formas, todos os gostos”,
ali inseridos por uma vontade, humana e moderna, de localizar-se acima
de todos esses tempos e dessas épocas, de fazer-se senhor das formas e
dos gostos possíveis. Por outro lado, tal caráter é lançado nesse texto,
quase que como um detalhe, ou um modo de ser, já que o propósito do
autor, aí, é propor as bases de estudo de espaços chamados por ele de
heterotopias.
Utopias e heterotopias, para
Foucault, referem-se a posicionamentos paradoxais em relação àquelas
economias espaciais praticadas na contingência dos cotidianos urbanos.
São paradoxais porque são vividos na contemporaneidade de tais
contingências histórico-sociais, mas, de alguma forma, lançando-as para
fora de si mesmas. A utopia mantém, com os espaços reais, uma relação
geral de analogia direta ou inversa; lança esses espaços, portanto, num
movimento de alcançar um ideal que eles ainda não concretizaram. As
macropolíticas urbanas, tendo como ideal bem figurado o bem-estar de
seus habitantes incluídos, lançam a malha urbana no interior de um
sistema utópico. Essa economia dos espaços faz surgir, entrementes,
situações concretas regidas por políticas que escapam ao controle do
Estado, seja ele central ou descentralizado – as heterotopias.
Diversamente das utopias, que
seriam principalmente abstrações operando em determinados lugares, as
heterotopias são localizáveis no tempo e no espaço. Porém, em relação a
esses posicionamentos, as heterotopias concretizam uma contestação
mítica e real, sendo lugares de afirmação de uma certa vida social,
instituinte e diferenciante. Assim, o espaço praticado do museu, lugar
do acúmulo instituído da produção artística, é espaço-tempo de processos
criativos que duram, no sentido bergsoniano do termo, o da duração em
que o ser desse espaço-tempo, ao conservar-se, diferencia-se (Bergson,
1959).
Na catalogação do Acervo da
Oficina de Criatividade, é, portanto, ética e esteticamente interessante
a vivência crítica possibilitada pela criação de um arquivo museológico.
A genealogia proposta por Janeira (2005), nos dando a ver as práticas
pioneiras daquilo que agora atualizamos, oferece-nos nostalgicamente as
imagens de um tempo em que a arte era oferecida ao público no lugar
mesmo de seu curso processual. A imagem foucaultiana da heterotopia,
considerando já os atuais arquivos de arte como espaços de fabulação
criadora, dá-nos condições de ultrapassagem em relação à nostalgia.
Se, do ponto de vista de uma
História linear, os colecionismos testemunham o surgimento de um sujeito
globalizante e hegemônico, a história do presente nos mostra que os
museus são os lugares de encontro com dimensões temporais não
reconciliáveis com a cronologia dos vencedores. Tal situação se torna
particularmente notável quando as obras que se propõe catalogar são
criações animadas pela expressão de subjetividades exiladas do sistema
utópico de formatação idealizada da vida. No horizonte aqui traçado,
habitado por imagens sobrepostas – a própria matéria de nossa presente
catalogação –, cabe considerar que as imagens do Acervo testemunham
histórias que desvirtuam aquelas histórias tidas como factuais. As
imagens produzidas na Oficina – se é que têm histórias a contar – fazem
durar narrativas diversas daquelas que se conservam nos arquivos da alta
cultura.
Vilela (2000, p. 10), num estudo
sobre a preservação da memória dos refugiados de guerra, sustenta:
“Existe uma linguagem da evidência marcada nesses corpos que faz com que
a verdade esteja, não do lado do agressor, mas da vítima; só ela pode
dizer um sofrimento que não se comunica ou representa, apenas se exibe”.
Contemporaneamente, há lugares onde se concentram essas imagens moventes
que não são produzidas com a intenção de comunicar-se com uma dada
cultura estabelecida, nem de representar uma realidade, com vistas a uma
inserção ou um reconhecimento. Os campos de refugiados são lugares de
existências concretas, vidas das quais não é suficiente dizer que
esperam por uma salvação ou uma inclusão. Na imagem de um corpo estirado
no chão, a autora lê uma história que, ainda que incomunicável, dura.
“Existem memórias de lugares, medos e resistência. Lugares que sendo não
lugares constituem heterotopias onde se define uma lógica paralela à do
espaço legitimado, por referência ao qual se tornam enclaves. Os homens
que os habitam — deslocados, asilados, refugiados — erguem-se rente ao
medo. Há lugares que se confundem com o seu objecto: o corpo estendido,
oblíquo ao céu como se apenas pudesse existir assim. Lugares de morte”
(Vilela, 2000, p. 9).
Podemos supor que as memórias destas obras referem-se ao espaço de
exceção do hospital psiquiátrico, na qual se instala a produção de vidas
nuas, “não a história dos vencedores, mas as ruínas e os restos, o que
sobrou dos escombros da história” (Engelman, 2007, p.55).
Dentre
as quatro coleções de obras por que iniciamos o gesto de catalogar, duas
delas têm os seus autores falecidos. As outras duas coleções ainda
aumentam, a cada semana que passa. Seus autores são antigos moradores do
Hospital que, nas diversas fases das mudanças estabelecidas durante a
Reforma, não tiveram aonde retornar. Esses artistas, não dispondo de
vínculos que pudessem amparar suas existências fora dos muros, agora
habitam esse espaço definitivamente. A obra em que se constituem suas
vidas se desenrola nesse espaço, tornado espaço de passagem pelas
políticas antimanicomiais. Nesse endereço singular, eles testemunham uma
exclusão do lugar social, e ao mesmo tempo essa existência-testemunha
instaura, pela arte, um plano de vida.
“Arte
voltada para os aspectos do tempo, arte-pensamento que difere da
arte-inteligência. Arte do vazio, espécie de contorno depois da
explosão, arte que resiste ao esquecimento imposto pelos muros
psiquiátricos, arte-testemunho de um desamparo absoluto e de uma longa
história de normalização do anômalo” (Fonseca, 2005, p.106).
Por
artistas da margem também denominamos, aqui, os autores das quatro
Coleções de Obras que se tornam objeto de nossa ação extensionista.
Referimo-nos, então, não a sujeitos que se situam nas extremidades,
delimitando um dentro e um fora da cultura. Referimo-nos à margem que
marca um intermezzo, a algo que se desloca entre lógicas duras, sem
pertencer a qualquer uma. Trata-se, ao nosso ver, de um lugar que é, a
um só tempo, absolutamente interior e exterior à máquina sócio-cultural
e que é forjado no próprio contexto no qual habitam os sujeitos que,
então, delas escavam novas possibilidades de linguagem. Desde esta
perspectiva, torna-se artista aquele que trabalha na direção de um “pode
ser”, na atualização, portanto, das virtualidades imanentes ao seu
próprio território existencial, o qual se transmuta por seu ato criador
e por suas possíveis proliferações. Consideramos que tal produção
artística - criada no próprio seio daquilo que a pode aprisionar -, é
dotada de um caráter de resistência ativa que a torna peculiar, ética e
politicamente significativa. Trata-se de uma produção artística
relevante tanto por sua extensão quanto por seus significados, podendo
ser tomada como um breve clarão que testemunha a existência de homens e
mulheres que, apesar da impotência de suas existências, resistem em sua
vontade de expressão e de relação viva com a realidade. Trata-se, enfim,
de uma manifestação coletiva, que nos leva a perguntar sobre a força que
ainda reside na impotência, e sobre como estes corpos, sujeitados a
tantos desígnios de um poder que os quer normalizar e negar, ainda dizem
não ao seu silenciamento e apagamento sócio-afetivo e cultural.
“As
sombras surgem em superfícies onde é a partida que está na memória de
todos os lugares de chegada. Existem corpos que não descrevem, mas
inscrevem nos seus movimentos a transcendência na imanência de cada
gesto. Estes corpos rasgam os lugares, tornam o não-lugar[ii]
uma heterotopia. São, eles mesmos, lugares onde a convocação de sentido
se faz em equilíbrio precário”. (Vilela, 2000, p. 9).
Nas paredes rachadas do hospício,
firma-se um outro espaço, frágil ponto capaz de empreender fugas,
esboçar novos estados, gestos inacabados. Marcel Duchamp falava que o
valor de uma obra se produz pelos efeitos que produz no mundo. As obras
da Oficina nos falam sobre aqueles que pintaram as forças do tempo, as
sensações em fluxos nos próprios corpos. É a entrega de seu tempo, em
gestos subjetivos, na tentativa de confecção de uma nova realidade.
“Produção de imagens de
resistência e criação, eternizadas por um sofrimento que nunca
cicatriza, por um abismo jorrante cujo magma é absorvido pela obra, como
uma espécie de curativo do vazio” (Fonseca, 2007, p.143).
As
obras das Coleções a que nos referiremos formam um conjunto que pode ser
considerado um arquivo da memória que, ao ultrapassar o sentido de
indícios registrados de biografias individuais, torna-se documento que
nos remete à necessidade de fazer a história do nosso presente,
retomando os liames rompidos dos diálogos entre loucura e razão,
cultura, ciência e vida. Mais do que biografias e rumos de vidas
individuais extraviadas da retidão da normalidade, o que nos surpreende
e interessa é a sua capacidade de expressão, sua resistência em
manter-se dizendo algo quando todo o seu entorno lhes impõe esquecimento
e letargia. Não nos interessa tomar as obras de arte para
desentranhar-lhes possíveis interpretações inconscientes que viriam a
auxiliar em processos terapêuticos. Nosso enfoque, neste momento, recai
na obra como arte e como incessante manifestação vital dos rumores de
forças que habitam ou habitaram os corpos dos autores. Encorajamo-nos a
encontrar, para tais Coleções de traços, gestos e cores, um lugar
valorizado e visível na cultura e no mundo das artes. Aqui, não importa
classificar e denominar segundo critérios marcados pelas dicotomias e
separações entre o que pode ser considerado como parte da cultura ou
dela excluído. Nosso olhar recai para um longo horizonte e não encontra
demarcação de beiras: como se as obras e seus artistas vivessem em meio
a um grande rio que, de tão largo, não dá a ver suas beiradas. Artistas
da margem e do meio, que não atracam ou se enrijecem nos lugares da moda
cultural, uma vez que seu ditame de produção não corresponde a nenhum
outro imperativo do que seu próprio desejo, sem finalidade mercadológica
e escolástica. Obras dos afectos e das singularidades, ditadas pela
força de expressão de seus corpos.
Acreditamos que esse movimento se integra aos propósitos da Reforma
Psiquiátrica, exercendo influência no processo de transformação dos
espaços e dos métodos terapêuticos existentes. Da mesma maneira, poderá
interceder a favor da receptividade da loucura no social, possibilitando
talvez algo de uma aproximação necessária no difícil processo de
reconciliação do homem com sua própria condição.
Um plano de vida que vive por si,
sem nenhuma promessa de salvação ou mudança de endereço; a Oficina mesma
já é um outro endereço, constituído por essas vidas que passam, podendo
se conservar e também se fazendo outras pela constituição de
consistências. A consistência dessas quatro coleções merece ser tomada
como um sucesso precário desses resquícios vivos da história dos homens,
em se fazer durar cumprindo uma exigência imanente de criação de si numa
condição definitivamente provisória. |
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Notas: |
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[i] O termo Arte Bruta foi criado por Jean
Dubuffet, artista plástico, em 1948, que lança a Compagnie de L’Art
Brut, com um museu em Lausanne, na Suíça. Essa expressão refere-se à
busca de obras que escapem o mais possível aos
condicionamentos culturais e que partem de posturas de espírito
verdadeiramente inéditas. Uma busca que não é feita em escolas, mas
entre os homens comuns, liberta de todos os compromissos que
alternam os mecanismos nas produções profissionais.
[ii] Não-lugar é o termo cunhado por Marc Augé
(2003) para dar conta de espaços onde se engendraria uma
supermodernidade. Caracterizada pelo excesso de memória e pela
intensa circulação midiática dessa memória, a supermodernidade se
funda nesses outros espaços que não negam os seus excessos de tempo
acumulado, mas os modulam na atualidade de sua proliferação.
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Referências bibliográficas |
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Aceito pela Pevista
Psicologia: Ciência & Profissão do CFP |
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Tânia Mara Galli Fonseca é professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS) |
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