AGUSTINA BESSA-LUÍS
A coroação

FONTE:
AGUSTINA BESSA-LUÍS
Adivinhas de Pedro e Inês
Lisboa, Guimarães Editores, 1983
Capítulo X, A coroação (extracto)

A morte era, na Idade Média, uma realidade tanto mais implacável quanto não dispunha de atenuantes sensíveis. Só os meios espirituais a confortavam. As grandes devastações feitas pelas epidemias, a guerra de machado e lança que provocavam feridas aterradoras, a falta de recursos da ciência para combater e reparar os danos no corpo humano, causavam uma disposição que até nas mais humildes pessoas se chamaria heróica. Pois a heroicidade depende muito da consciência sofrida do irreparável; é uma aliança última com o destino.

A agonia tinha um carácter de expiação, preparando o indivíduo para o juízo final. E só a recordação o situava no mundo dos vivos, como uma resistência à culpa de tão precariamente o ter protegido. Por isso, os monumentos fúnebres e o cerimonial da morte atingiram na Idade Média uma importância extraordinária. A decomposição exercia uma fascinação especial, como hoje o terror em doses de celulóide; são frequentes as imagens tumulares, executadas por expressa vontade dos modelos, com efeitos arrepiantes; descarnadas figuras que os crus panejamentos mais revelam, rostos em que os sapos se prendem como símbolo da fealdade da carcaça humana, impotente às injúrias da sepultura, são tratados com grande realismo e, algumas vezes, as costuras do embalsamamento reproduzidas na pedra como num coiro hirto.

Mas há também o monumento funerário que atinge um significado não tanto de orgulho mundano, como de extrema piedade pelo que se amou. Por outro lado, a morada dos mortos tinha, no seu luxo e esplendor, tanto a intenção de reproduzir o efeito da morada que mereceram em vida, como exprimia o desejo de retratar o estado celestial a que eram conduzidos. Túmulos como os dos duques de Borgonha impressionam pela beleza consumada, com os seus finíssimos arcos góticos em volta da base, com o rosto pintado, no caso da figura de Filipe o Atrevido, cujo monumento levou vinte anos a executar, vinte anos que foram a duração do duque desde que mandou executar a obra. Capelas mortuárias como a do conde de Warwick ou a de Eduardo II de Inglaterra exigiram muito tempo. Era um trabalho de perícia que não podia ocupar demasiada gente, e por isso a sua demora se explicava.

É por isso que não admitimos que o túmulo de Inês fosse lavrado em tão escasso período de tempo como se quer concluir. É uma obra segundo os moldes da época, feita por artistas experimentados, senão tão requintados como os escultores lombardos; as edículas apresentam testemunhos familiares sem decerto esquecer o leque heráldico que confirma o prestígio da morta e que, no caso de Inês, se impunha sobremaneira. Penso que imediatamente depois de subir ao trono, em 1357, ou mesmo antes, ainda como infante, D. Pedro promoveu a execução da obra, que deixou ao cargo doa monges de Alcobaça ou, mais exactamente, do seu abade. Se em 1361 ou 1362 se fez a trasladação do corpo de D. Inês para o mosteiro onde jaz, não quer isso dizer que o túmulo estivesse completo. No entanto, foi um trabalho rápido, mesmo produzido em cinco anos. Diz-se que não há vestígios de o monumento ser falado antes de 1360, data em que foi feita a declaração do casamento, que surpreendeu muita gente. Não é possível nenhuma surpresa desse género, dados os acontecimentos tão tumultuosos e claros; a própria violência dos factos absorvia os pequenos comentários de que se fabrica a lenda oral. As pessoas tinham medo de falar porque temiam represálias. Houve lugares e terras devastados pelos grupos que se combatiam duramente e que puseram a nação em tal turbulência que se receou pela estabilidade da coroa. O povo estava farto de barafunda inesiana, e é natural que o seu túmulo fosse feito com certo sigilo. D. Pedro era extremamente cuidadoso com a sua imagem popular e nem sequer devia orientar os trabalhos em Alcobaça. Em parte para não denunciar qualquer obsessão que comprometesse a sua personalidade de base, tão necessária à identificação colectiva. No fundo, as pessoas comportam-se com uma simplicidade que a linguagem, e só ela, deformou. Nós vemos nos túmulos de Alcobaça os mesmos motivos que era costume representar na época, executados como que de memória, o que exclui a ideia de qualquer conselho mais pessoal. Era a figuração heráldica e familiar; era o juízo final, tema essencial na Idade Média, utilizado sobretudo nos arcos dos presbitérios e sobre a entrada das igrejas, e não tanto, ao que suponho, nos monumentos funerários; o que faz crer que, no caso do túmulo de Inês, que tem o Juízo Final representado na pedra facial dos pés da arca fúnebre, se tratava de operários habituados com obras de igrejas, e não propriamente de artistas de escola tumular como eram florentinos e lombardos. A estátua jacente de Inês não é uma imagem realista, mas mostra, num pormenor, uma doce perpetuação da vida activa que, desde os meados do século XIII, devia opor-se, ou acompanhar, a expressão da divina aspiração: é a luva descalçada da mão esquerda com gentileza cortesã e que demonstra a classe social de uma infanta. Mas a coroa — significa uma situação clara de rainha? Ou simplesmente será a expressão paradisíaca da coroação final, tema que os artistas dos séculos XIII e XIV pintavam usualmente para os presbitérios? A coroa é o símbolo da vida celestial, significa a ideia de superação, triunfo sobre os instintos. Ao mesmo tempo a sua origem emblemática seria a terra, expressa no feitio de vaso, mais evidente na alta coifa dos egípcios. De qualquer modo, sendo D. Pedro um legalista, é de pôr em dúvida a intenção de coroar Inês rainha depois de morta e de a propor à vassalagem dos nobres; o que seria experiência política muito problemática, havendo, como havia, uma corrente de oposição muito acentuada.

Deixando de lado as especulações românticas que fizeram do drama inesiano uma imitação profana da liturgia das mártires romanas, encontramos dentro do tema das exéquias um fenómeno bem mais interessante: foi o elogio fúnebre proferido por D. João de Cardaillac, francês de origem e suposto arcebispo de Braga. Era reputado orador eminente, pelo que a escolha do assunto e o seu desenvolvimento não se podem dever a qualquer incipiência. O assunto foi o de Sara e Abraão.

Abraão, o seio de Abraão, era figura retórica que significava a morada celeste, o paraíso. Santo Agostinho usa essa expressão falando da morte do seu amigo Hebrídio: «Agora vive no seio de Abraão». Só esse lugar admite para uma alma como a do seu terno amigo; um lugar excelso digno de um espírito excelso. Portanto, a imagem que precede o tema é comum na oratória sagrada. O que já não parece tão comum é o exemplo de Sara. D. João de Cardaillac falava em latim e era compreendido por uma grande massa de clero e gente culta, vinda sobretudo do meio docente de Coimbra, onde não se ignorava a Bíblia com todos os pormenores ambíguos e dramáticos. Falava portanto para entendidos e insistiu sobre a dor de Abraão ao perder Sara e no cuidado de lhe procurar um túmulo condigno. Mas Sara não era a personagem histórica mais recomendável, e a sua vida podia conter passos algo escabrosos. Como, por exemplo, o da chegada ao Egipto dos dois esposos. Abraão, sabedor das realidades indomáveis da natureza humana, disse a Sara que escondesse o estado matrimonial e que se dissesse sua irmã; porque, sendo muito formosa, os ministros do faraó iriam contar-lhe as suas perfeições, e ele trataria de eliminar Abraão para se apoderar de Sara. Convencido de que eram apenas irmãos, o faraó recebeu Sara no seu leito e encheu Abraão de benesses; até que, punido por calamidades, reconheceu o seu erro e, ao mesmo tempo, o verdadeiro laço que unia marido e mulher. Entregou Sara a Abraão e mostrou-se arrependido.

Isto é assunto de conversa num reino em que um rei perseguira o infante por causa do casamento que ele negara desesperadamente e que acabara por ser denunciado pelos espiões, senão pelos amigos? Não é possível ser-se tão inapto ou tão insolente. O que quer dizer que D. João de Cardaillac executara uma ordem, e essa ordem só podia vir de D. Pedro ou de alguém que não receasse dele o descontentamento e o castigo. Este Monsenhor de Cardaillac — quem lhe encomendou o sermão? Possivelmente os frades de Alcobaça, que tinham motivos de sobra para desamarem D. Afonso IV; ou o clero em geral os apoiava, com um rancor manifesto pelo próprio D. Pedro e as suas medidas de reforço do poder civil. De qualquer maneira, o discurso fúnebre proferido por D. João de Cardaillac desapareceu do reino, assim como o seu autor, que partiu para Paris pouco tempo depois. Tratava-se de um prelado reformador, transferido da diocese de Orense para a de Braga em 18 de Junho de 1361, o que, a meu ver, lança as exéquias de Inês para data mais adiantada, decerto Primavera de 62 ou 63. Entre os fins de Fevereiro, até Maio de 1363, D. Pedro anda por terras de Coimbra, com permanência notável nesta cidade, ele que era tão mudável e aldeeiro. Passa todo o mês de Março em Coimbra, donde são datadas uma série de cartas de privilégio clerical, e desloca-se entre Soure e Tentúgal, onde possui uns paços da sua predilecção; visita Montemor-o-Velho, lugar de dolorosas recordações, pois daí partiu o tribunal que executou Inês, vai a Buarcos, sobe a Aveiro e ao Porto, onde parece demorar-se, e chega a Guimarães, Braga, Ponte de Lima, com permanência no Alto-Minho. Só em Novembro volta a descer a Coimbra e aí se demora o mês inteiro, assim como Dezembro, parcialmente. Nunca mais o rei volta a parar muito tempo em Coimbra; não passará de Leiria, e a sua vida vai decorrer mais habitualmente pelo Ribatejo e terras da Estremadura para ele particularmente familiares. Os filhos vivem em Santarém; e ele morre no dia 17 de Janeiro de 1367, em Estremoz, numa segunda-feira de madrugada, quase repentinamente mas com tempo suficiente para ditar o seu testamento. Morre «por meio de uma dor, que entendo pelo efeito ser flato maligno, porque o privou da vida arrebatadamente...» — diz-se numa passagem da Monarquia Lusitana. «Flato maligno» podia corresponder a uma peritonite, angina de peito, ou apendicite, de prognóstico nesse tempo pouco claro, o que fez que não chegasse a ser chamada a família para o ver com vida. A robustez do rei, a sua idade pouco avançada, pois tinha 46 anos, não deixavam prever esse desenlace fulminante. Sucumbiria à dose de «ervas», que era receita maquinal quando a paz abre as asas sobre os tronos?

Portanto, é na Primavera de 63 que D. Pedro estaciona prolongadamente em Coimbra e quando parece provável que orientasse ali os preparativos para a trasladação de Inês. A corte inteira, com grande afluxo até de forasteiros, devia estar na cidade donde partiu o préstito para Alcobaça; as condições da marcha, longa de cem quilómetros, entre filas de naturais das terras que atravessavam, e que empunhavam círios acesos, previam uma época seca e amena, portanto nos meses de Primavera. Nunca se vira tal enterramento em Portugal e decerto no mundo. Porque se o préstito do Duque de Borgonha, em 1404, é extraordinário, com os seus dois mil acompanhantes da corte, o de Inês seria mais fabuloso e só lhe faltaram olhos experientes para deixar dele memória competente. Donas e donzelas acompanhavam o corpo de Inês. E pode imaginar-se esse caudal de sedas de Gaza e veludos negros com suas faixas de ouro; e os dignitários vestidos com briais vermelhos deixavam arrastar os arminhos carregados de pó. Freiras veladas rezam, e o murmúrio delas cobre os campos como um bater das ondas muito longe. Nas mulas ajaezadas com as cores do reino, vão os nobres, encapuchados de preto, com as espadas altas embainhadas em couro gravado a ouro; os escudos parecem proteger-lhes os corações ferozes e contrariados, e os círios dos seus homens têm um losango de ferro que brilha com a chama, mostrando o símbolo heráldico das suas casas. Só o rei, os prelados, os juizes, vestem de cor rubra «porque Inês não morreu». É o cerimonial destinado aos reis, mas D. Pedro é só nessa etiqueta que a proclama esposa viva e rainha. Ele toca com a mão a barba, em sinal de luto, e uma auriflama, levada por um pajem, varre-lhe, com o vento, a face branca. «Uma grande guerra faz de um avaro senhor um generoso», diz Bertrand de Born, entre satírico e atraído pela inspiração da carnificina e do saque. Para Pedro, o amor foi uma guerra, e como tal o celebra nesse cortejo memorável. É uma parada e não um mortório. Debaixo dos véus as mulheres trazem colares de granadas e de ametistas que pertenciam às viúvas do Salado. E riem baixo, fingindo o gesto mongo e dolorido.

Concluiu-se que o sermão de D. João de Cardaillac era manifestamente adulador e se destinava a confirmar o casamento de Pedro e Inês. Mas o texto apenas a designa como infanta e princesa, este um tratamento afrancesado, porque em Portugal só passou a usar-se mais tarde. O que há de enigmático no discurso do bispo Cardaillac é de facto a comparação do rei e Inês com Abraão e Sara, mencionando-se «a humildade» da Castro em esconder o título de esposa, como fez Sara. Mas Sara procedeu assim porque o faraó a pretendia, e o facto de saber que ela era casada podia levá-lo a uma deliberação radical — a condenação à morte. Este paralelo parece, pois, o bastante insidioso para não ser focado; e, no entanto, D. João de Cardaillac ousou fazê-lo. Porquê?

Aqui levanta-se fatalmente uma questão que pode dar na história de Pedro e Inês uma reviravolta. O que se passou na realidade não seria um caso passional à maneira do rei Seleuco, mas sem os maviosos resultados que conhecemos? Seria Inês amada por D. Afonso IV de uma maneira obsessiva que não excluía o laço sadomasoquista que havia entre pai e filho e que, cedo ou tarde, teria o seu desfecho trágico? Começa que Abraão está prometido a uma vocação, e a esse respeito a Bíblia é explícita: «Disse o Senhor a Abraão: 'Sai da tua terra, da tua pátria e da casa do teu pai para a região que eu te mostrarei. Eu farei de ti uma grande nação e te abençoarei e engrandecerei o teu nome e serás uma bênção'» (quer dizer, um exemplo). Abraão era da genealogia de Sem, um dos filhos de Noé, que o respeitou, ainda que o encontrasse descomposto e embriagado. Sem e Jafet são modelo da piedade filial, e por isso a sua descendência é protegida na era pós-diluviana, quando a terra é repovoada. Não se sabe quais foram as primeiras noções educativas de D. Pedro e se a História Sagrada lhe foi ensinada com a insistência própria dos estudos da época. Os sermões obedeciam a um esquema simbolista em que as imagens da Bíblia eram exploradas em todo o seu sentido edificante. É possível que alguma vez aquelas palavras do Senhor a Abraão soassem aos ouvidos do infante como uma espécie de consolação. Porque ele temia o pai, e há um pouco de morte naquilo que se teme. Tareh, pai de Abraão, morrera em Harán, na Mesopotâmia, terra de idólatras, onde se adorava a deusa Lua, ou a Diana caçadora que era deusa dos reis silvestres que nós tivemos; assim devia discorrer o professor de D. Pedro, tendo-o à sua beira nos jardins de Santa Cruz, se ele recebia lições dos doutores que lá havia e que traziam de Paris uma tendência herética e insidiosa. A controvérsia, fo­ mentada no método dialéctico de Abelardo, criou na época medieval uma liberdade de pensamento que estamos longe de imaginar; e a escolástica não era afinal senão um processo de estudo que produzia conclusões muito diversas, conforme a mente que o utilizava. Sendo tão permitida e livre a filosofia quanto era inviolável e fechada a teologia, decerto acontecia que, nas mesmas mãos, ambas as disciplinas, numa tendência averroísta, ficassem ligadas, mas com prejuízo para a autoridade académica. Ao escrever os seus discursos sacros, os oradores da Igreja tinham à disposição um vasto espaço legal, que eram os temas bíblicos; mas, conforme as pressões do poder ou o grau de independência do grupo ou pessoa social em evidência, era possível carregar de sentido político até o dogma religioso mais ortodoxo.

Proferido em latim, o sermão de D. João de Cardaillac era dirigido, no seu efeito musical, à psique popular; mas havia um enorme público clerical e até intelectual que compreendia perfeitamente o exemplo escolhido e que podia estar apto para uma consciência crítica da realidade.

De tudo isto tem que ficar excluída a ingenuidade do orador e o mau ouvido dos assistentes. As palavras do trecho que se refere a Abraão no Egipto são estas: «Diz que és minha irmã para que assim me tratem bem por tua causa.» E Sara escondeu que era esposa de Abraão, e o faraó a to­ mou como sua mulher; e Abraão saiu de tudo isso muito favorecido e não perseguido, como aconteceria se não dissimulasse o casamento com Sara.

O ouvinte mais entendido nos textos bíblicos ficou decerto preocupado com tal simbolismo; ou escandalizado, se ele agitou áreas até aí encobertas. O tema foi, portanto, o da dissimulação. Assim como a ortodoxia bíblica desculpa a mentira de Abraão como obrigada por razões fortes, também D. João de Cardaillac devia, no seu íntimo, querer ilibar D. Pedro do silêncio em que manteve o seu casamento com Inês. Mas os motivos, esses, apareciam como gritos entre as frondosas árvores de pedra de Alcobaça.

A História é uma ficção controlada. A verdade é coisa muito diferente e jaz encoberta debaixo dos véus da razão prática e da férrea mão da angústia humana. Investigar a História ou os céus obscuros não se compadece com susceptibilidades. Que temos nós a perder? A personalidade não existe, mas sim efeitos que a desenham como os efeitos da luz sobre os corpos. Por isso não causamos danos no carácter dos povos quando aventuramos paixões e factos que, no fundo, são a projecção do mais humilde dos cabaneiros e zagalos.

Partindo do indício deixado no eco do discurso de D. João de Cardaillac, e que caiu como um maná do deserto sobre os corações vingativos, a história de Pedro e Inês muda literalmente. Torna-se mais clara e sem desvios. Na realidade, porque é que uma mulher como Inês, educada para impressionar um rei, formosa e inteligente como tinha que ser o modelo da Circe galega, não podia causar estragos na alma de D. Afonso antes de atacar as resistências do infante? Imaginámo-la enviada por D. João Afonso de Albuquerque à corte de Portugal, com o pretexto de servir D. Constança, em cujo casamento o filho de Afonso Sanches interveio. Mas na verdade ele não desperdiçava os seus dobrões, e aquela jovem ricamente vestida, com um enxoval de corte e por sua vez acompanhada por um séquito e criadas mouras e cristãs, tinha que lhe render na área da política o que ele perdera no campo dos afectos: um trono pelo viés da capa cinzenta do conselheiro. Não é para duvidar que D. João Afonso tivesse motivos de sobra para ensombrar o rei de Portugal com toda a espécie de perfídias e de cabalas, pois ele fora o inimigo cruel de seu próprio pai. Expulsara-o como um caseiro cujo contrato expirasse, um membro da administração senhorial que não pagasse as taxas do moinho, que roubasse a lenha e a caça; quando, afinal, os bastardos de D. Dinis eram a mais fina flor do reino, D. Afonso e D. Pedro, ambos concorrentes ao trono, ambos rivais em dotes de cavaleiros e letrados. E o braço daquele brutal irmão lídimo e malvado varrera o herdeiro dilecto, reduzira-o à miséria como a um pajem ladrão.

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Agustina Bessa-Luís nasceu em Vila Meã, Amarante em 1922, descendente de uma família de raízes rurais de Entre Douro e Minho e de uma família espanhola de Zamora, por parte da mãe. A sua infância e adolescência são passadas nesta região, cuja ambiência marcará fortemente a obra da escritora. Fixou-se, entretanto, no Porto, onde reside.

Estreou-se como romancista em 1948, com a novela Mundo Fechado, tendo desde então mantido um ritmo de publicação pouco usual nas letras portuguesas, contando até ao momento com mais de meia centena de obras.

Tem representado as letras portuguesas em numerosos colóquios e encontros internacionais e realizado conferências em universidades um pouco por todo o mundo.

Foi membro do conselho directivo da Comunitá Europea degli Scrittori (Roma, 1961-1962).

Entre 1986 e 1987 foi Directora do diário O Primeiro de Janeiro (Porto). Entre 1990 e 1993 assumiu a direcção do Teatro Nacional de D. Maria II (Lisboa) e foi membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social.

É membro da Academie Européenne des Sciences, des Arts et des Lettres (Paris), da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa, tendo já sido distinguida com a Ordem de Sant'Iago da Espada (1980), a Medalha de Honra da Cidade do Porto (1988) e o grau de "Officier de l'Ordre des Arts et des Lettres", atribuído pelo governo francês (1989).

É em 1954, com o romance A Sibila, que Agustina Bessa-Luís se impõe como uma das vozes mais importantes da ficção portuguesa contemporânea. Conjugando influências pós-simbolistas de autores como Raul Brandão na construção de uma linguagem narrativa onde o intuitivo, o simbólico e uma certa sabedoria telúrica e ancestral, transmitida numa escrita de características aforísticas, se conjugam com referências de autores franceses como Proust e Bergson, nomeadamente no que diz respeito à estruturação espácio-temporal da obra, Agustina é senhora de um estilo absolutamente único, paradoxal e enigmático.

Vários dos seus romances foram já adaptados ao cinema pelo realizador Manoel de Oliveira, de quem é amiga e com quem tem trabalhado de perto. Estão neste caso Fanny Owen ("Francisca"), Vale Abraão e As Terras do Risco ("O Convento"), para além de "Party", cujos diálogos foram igualmente escritos pela escritora. É também autora de peças de teatro e guiões para televisão, tendo o seu romance As Fúrias sido adaptado para teatro e encenado por Filipe La Féria (Teatro Nacional D. Maria II, 1995).

Recebe aos 81 anos o mais importante prémio literário da língua portuguesa: o Prémio Camões, em 2004.

(Instituído em 1988, pelo Protocolo Adicional ao Acordo Cultural entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil, visa «consagrar anualmente um autor de língua portuguesa que, pelo valor intrínseco da sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum».)

Fonte: http://www.mulheres-ps20.ipp.pt/August-Bessa-Luis.htm#Biografia