A internet trouxe-me a notícia brutal.
Ultrapassando o espaço que medeia de Portugal a Cabo Verde, chegou e
doeu-me. Perdera (não direi que para sempre, que sempre o relerei e
recordarei) um amigo que gostaria de reencontrar e abraçar no meu
garantido regresso a Lisboa, depois da mais que longa “comissão de
serviço” por este vulcânico arquipélago: Mário Contumélias morrera.
Anos de companheirismo nas redações, onde foi meu
chefe. Anos de estúrdia, por restaurantes e bares, de braço dado com o
inseparável Bueno de Matos. Anos muitos de convívio e de escapadas até à
sua residência, para as bandas do estádio de Alvalade. Com isso, uma
amizade sincera que viera desde os tempos em que comecei a admirá-lo
depois que ingressei no ingrato ofício de reportar e noticiar. Fora o
Mário Presidente do Sindicato português dos Jornalistas. Porém, pelo seu
apego à liberdade, optou nos jornais por corajosas decisões nos “tempos de
brasa” pós-revolucionários e vimo-lo a, ostensivamente, ser um dos
fundadores do matutino “Dia”, arrostando epítetos com que alguns (de
esquecida memória) o quiseram então mimosear.
Foi nas bancas dos jornais que o conheci
pessoalmente e me tornei seu amigo do peito. Era um excelente poeta e
letrista com canções que, à sua época, andaram de ouvido em ouvido e de em
boca em boca. Aquando do meu retorno às lides literárias (após 30 anos de
comprometido e preconceituoso silêncio), apadrinhou e prefaciou o meu
“Uagudugu” com que retomei o percurso. Descobri então que os
prefaciadores, tal como os críticos, têm a capacidade de descobrir em nós
o que nos passa despercebido (ou apenas está intuído) e que, em
consequência dessa leitura, em nós se entranha ou passa a ser algo
presente, palpável e assumido. Azares da vida me demonstraram, depois,
quão dificultoso é o engenho de prefaciar e me aconselharam a disso fugir
como da peste – nem sempre o consegui, apesar das resistências.
Certo é, como escreveria o meu amigo poeta e
jornalista brasileiro Ronaldo Werneck (a quem, para o destrinçar do
“outro” e vincar-lhe as origens, habitualmente designo como “Ronaldo
mineirão”), “todas as mortes são prematuras”. Tantos são os
jornalistas que já cá não moram… o Carreira Bom, o Quirino Teixeira, o
Fernando Madureira, o Cartaxo e Trindade, o Saúl Queiroz, o Gonçalo Nuno,
o Carlos Plantier, o Belmiro Vieira, a Sueli Cajueiro, o Dórdio Guimarães,
o Tomás Ribas, o Marques de Almeida, o Fernando Monteiro, é toda uma
lusofonia cuja listagem infinda e marcou etapas da minha biografia. Num
poema evoco esses manes (“o jornalista…/morreu convictamente morto/ com
título vermelho filetado e foto ao alto/ notícia a corpo oito redondo
times…”) que já entraram no fatídico cemitério impresso.
Mas o Mário, esse, recordo-o dolorosamente. Lembro
os dias em que, lado a lado, ingressei com ele no que foi o grande alfobre
de jornalistas em Portugal, o primeiro curso de formação que deu origem ao
CENJOR. Ou lembro a profunda
irritação que me provocou o modo como emergia do quw se reivindicava um
até justo “direito à diferença”, para moldar um verdadeiro
lobby que marginalizava e hostilizava quantos se não incluíam nessa
“diferença”, como se tal fosse pecado e negado fosse o seu mais que
legítimo direito à existência. A tal ponto que, desafiando o
“politicamente correto”, promovi certa noite num bar lisboeta um encontro
para reivindicar o também nosso direito à diferença: o Mário foi dos muito
poucos que ali compareceu. Pouco lhe importava o “politicamente correto”,
o que os outros pensassem. Preferia tomar partido pelo que considerava
justo, fosse qual fosse o seu preço. Assim fora nos tempos da “outra
senhora”, assim seria nos novos tempos.
Era o Mário. Lembro de outras cenas
porretas, como foi a da
apresentação de “A invasão do corpo”: estava programada, marcada, para uma
noite numa livraria do lisboeta Bairro Alto – todavia, patrão fora
(partira em viagem) dia santo na loja. A empregada que nos deveria abria a
porta da livraria afundou-se na droga, as horas passavam, a porta
encerrada, as gentes amontoadas no passeio, até que o Vítor Nobre, o Mário
Galego e o Contumélias tiveram a ideia: fazer a apresentação na rua. Pelo
menos, seria original. Valeu-nos a circunstância de outra livraria mais
acima, e de portas abertas à noite, resolver nos convidar para fazermos
nela a apresentação. Eis como o lançamento acordado para uma livraria
acabou noutra, com gáudio dos participantes.
Cenas que recordo: estava de subchefia no
ressuscitado “Século”, na Rua Augusta, então dirigido pelo Jaime Nogueira
Pinto, quando um fotógrafo me manifestou estranheza por três vultos que
arremedavam estarem a ler jornais, com isso disfarçando que de facto
controlavam a entrada da redação. Alertei o Mário e resolvemos parodiar
“L’arroseur arrosé” – mandei fotografá-los e comuniquei o facto ao diretor
que, de imediato, contactou quem na época controlava as coisas de
segurança. Aconteceu o bom e o bonito: os Serviços
de Informação, recém-criados, tinham acabado de formar novos agentes e a
“vigilância” era uma prova de teste. Resultado, foram apanhados com a boca
na botija. Com mil desculpas, se abafou o caso.
Peripécias destas reforçaram o companheirismo e a
profunda amizade que nos uniu. Evocá-las dá razão a quem escreveu: “triste
é quem tem memória”.
Nuno Rebocho
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Nuno Rebocho - Nascido em 1945, em Queluz (Portugal), viveu em Moçambique desde os três meses de idade até 1962. Jornalista, poeta e andarilho – bastou-lhe ter estado preso por cinco anos na Cadeia do Forte de Peniche (por cinco anos, motivos políticos), para recusar ser animal sedentário. Viveu a imprensa regional (Notícias da Amadora, Jornal de Sintra, Aponte, A Nossa Terra, Jornal da Costa do Sol, Comércio do Funchal, entre outros), foi redactor da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, das revistas O Tempo e O Modo e Vida Mundial, em diferentes diários e semanários, e é chefe de redacção da Antena 2 da RDP. Colaborador de Acontece en Sorocaba (Brasil) e Liberal (Cabo Verde). Autor de “Breviário de João Crisóstomo”, “Uagudugu”, “Memórias de Paisagem”, “Invasão do Corpo”, “Manifesto (Pu)lítico”, “Santo Apollinaire, meu santo”, “A Nau da India”, “A Arte de Matar”, “Cantos Cantábricos”, “Poemas do Calendário”, “Manual de Boas Maneiras”, “A Arte das Putas” (poesia), “Estórias de Gente” (crónicas), “O 18 de Janeiro de 1934”, “A Frente Popular Antifascista em Portugal”, “A Companhia dos Braçais do Bacalhau” (investigação histórica), está representado em diversas antologias e colectâneas em Portugal, Espanha e Brasil. Tem colaborado em catálogos para exposições de artes plásticas: Ramón Catalan, Deolinda, Carlos Eirão, Alfredo Luz, Edgardo Xavier, João Alfaro, Maria José Vieira, Ricardo Gigante, Ana Horta, Isabel Teixeira de Sousa, Nuno Medeiros, Viana Baptista, Teresa Ribeiro, Rico Sequeira, João Ribeiro, José Manuel Man... Comissariou a Bienal do Mediterrâneo, Dubrovnik (Croácia), em 1999. |