Parecerá que tive uma
vida intensa. É verdade, intensa e bem vivida. Os factos evidenciam que
apenas tive a virtude - se virtude houve - de sobreviver e ser um
dinossauro. Cansado de peripécias, cuidei que delas me desafogava
retirando-me para Cabo Verde: era quase o regresso à meninice em África,
na longínqua Moçambique. Prefigurava dias de tranquilidade, de sossego,
numa placidez crioula.
Os anos na RDP, se
foram gratificantes, também trouxeram dissabores, agruras e desencanto com
os enredos. As dificuldades tornaram-se sufocantes quando Hernâni Santos
foi substituído na Direção de Informação por Pedro Cid, com quem já tivera
desinteligências aquando fui repórter parlamentar: acusava-o de me ter
surripiado, na Assembleia da República, uma agenda de contactos (a
“enxada” de qualquer jornalista). Fiquei de pé atrás com a sua nomeação e
meti férias mal ele foi nomeado. Segui para Vila Nova de Foz Coa. Levava
um chapéu madeirense. No Douro, mergulhei-o no rio, diante de quem o quis
ouvir: “eu te batizo com o nome de Pedro Cid. É o último barrete que ponho
na cabeça”. Como esperava, foram contar o episódio ao Cid (desconfio bem
quem o fez). Quando regressei a Lisboa, fui chamado do diretor, que me
disse: “Tinha pensado esquecer os problemas que entre nós houve. Estava
mesmo disposto a dar-te um bom cargo. Mas soube o que aconteceu nas tuas
férias…”.
Cid tornou público que
me promovera a chefe da secção de programas, o que significava que
objetivamente me despromovia, passava-me de Chefe de Serviços a chefe de
secção - ou seja, perdia uma centena de contos por mês. Quando li no
jornal que fora “promovido” pelo Cid, comentei: “se tenho mais duas
promoções destas, vou para a rua pedir esmola!”. Não acabaram aqui as
“vinganças” - para subchefe de redação, nomeou o Eduardo Fidalgo, que
tinha tanto de incompetência como de gordura. Para o defender, tivera
mesmo um confronto com Hernâni Santos que o quis proibir de ir a antena.
Como era seu chefe direto, opus-me aos métodos de Hernâni, embora
reconhecesse a incompetência do Fidalgo, a quem alcunhei de “Batráquio” –
destaquei-o para conduzir o programa “Pelo Sim Pelo Não”, o que ele fez
sem qualquer golpe de asa. Fidalgo inchou como subchefe, em tudo era
pequenino: a perseguição começava. Tiraram-me a secretária e até a
cadeira. Foram meses infernais que me levaram a apresentar baixa médica.
Com a saída do Pedro
Cid, voltei ao trabalho de reportagem – meses a fio calcorreei de novo o
Alentejo, quase sempre acompanhado pelo Galego. Fomos destacados para o
grupo de trabalho encarregue da cobertura da Expo 98: quase um ano a
caminhar até à foz do Trancão. Concluído esse destacamento, fui nomeado
chefe de redação da Antena 2. O que fez transbordar o copo: há anos que me
opunha ao relógio de ponto. Ainda estava no estúdio do Quelhas quando ele
foi introduzido. Perante o firme repúdio da redação (o relógio de ponto
chocava-se com as prerrogativas dos jornalistas - sem horário fixo, ao
contrário dos administrativos, tinham liberdade de trabalho), a
Administração da RDP garantiu à Comissão de Trabalhadores, que eu
integrava - o relógio de ponto nunca seria aplicado aos profissionais da
Informação. Já na Marechal Gomes da Costa e após a fusão da RDP com a RTP,
a Administração voltou à carga: o mal fora a entrada de um relógio de
ponto na empresa, tornando-se imprescindível com a junção das empresas.
Lembrado das garantias, recusei-me a utilizar o relógio de ponto sem
cuidar que o meu jornal (o das 18 horas) se tornara incómodo para o Poder
Político (socialista). Ameaçaram-me com um processo disciplinar com vista
a despedimento. Antes, fizera um último trabalho de reportagem: de
gravador na sacola, acompanhei os peregrinos a Fátima – caminhada a pé.
Queria perceber o que movimentava massas, qual a substância do que o vulgo
chama “fé”. Mostrou-se algo de poderoso, que ultrapassa as fronteiras da
religião, das minhas convicções agnósticas. Enfim, algo sobre o que me
deveria debruçar com seriedade.
Estava cansado de lutar
contra tudo e todos. Clamei: “Basta. Vou-me embora. Segundo a lei, os anos
de cadeia contam a dobrar para a reforma. Façam contas comigo!”. Era o de
que a Administração estava à espera.
O estrito
profissionalismo andara a paredes meias com as pequenas diatribes e
brincadeiras. Nos primeiros tempos do novo “O Século”, era subchefe de
redação, responsável pelo turno da tarde e Vasco Resende era redator da
área desportiva. Resolvi divertir-me à sua custa: aproveitando-lhe a
ausência, tomei a sua máquina de escrever (uma Adler, tal como a minha) e
troquei-lhe a ordem dos botões dos teclados – do nacional (HCESAR, que eu
usava) para o internacional (AZERT, com que o Resende trabalhava). Quando
Vasco chegou, começou a escrever. Estava já com a página em meio, releu a
prosa. O texto estava todo baralhado. Perplexo, mudou de folha de papel e
recomeçou. Tudo continuava ininteligível. Levantou-se, vestiu o casaco,
gritou “Estou bêbado!” e saiu esbaforido.
Pequenas brincadeiras, entretenimentos das redações.
Vasco Resende era bom companheiro. Escrevera um romance (“Antónia mulher
coragem”) que foi premiado. Nele utilizou o meu nome como personagem - “és
o gajo que conheço que melhor conta histórias”. Repetiu a “gracinha” em “A
mistificação de Shakespeare”. Já não achei piada… Por essa época, já
desistira da ideia de elaborar um trabalho sobre as rameiras de Lisboa.
Vasculhara os meandros noturnos, os bares e “boîtes” da cidade, sobretudo
as da Praça da Alegria, conhecera pessoalmente algumas das profissionais
lisboetas (mesmo protegera-as das investidas policiais): tinha o seu
respeito pois sabiam que delas apenas queria informações. Conhecera
demasiado bem bas-fond lisboeta
e o negócio de exploração de prostitutas conduzido no Cais do Sodré por
quem, mais tarde, se fez um conhecido presidente de clube de futebol –
coisas que o disparatado clubismo encobre.
Essa curiosidade quase
coincidiu com a época em que fui contratado para trabalhar na candidatura
presidencial de Freitas do Amaral: pediram-me que elaborasse uma resenha
das contradições de Mário Soares, o seu rival de campanha. Significava
quase produzir uma síntese dos oceanos. Quando concluí a revisão das
“afirmações” por ele arroladas ao longo de anos e anos (mais do que
quantas andorinhas existem numa primavera) e entreguei à candidatura o
extenso relambório coligido. Apareceu todavia no mercado outro livro sobre
esse mesmo tema. A minha recolha fora inútil, ainda que paga, como
acordado.
Começaram nessa época
as minhas relações com Manuela Ramos – fora minha colega na CP e assistira
aos meus contactos telefónicos com a aluna com quem fugi e como o meu
“entusiasmo” por ela se esfumara. Sem eu o perceber, interessou-se por
mim. E a sedução aconteceu. Desta vez, Dúlia enfureceu-se e separámo-nos.
Fui viver para Cascais, numa cave alugada na Travessa dos Navegantes.
Durou quase um ano essa separação, que foi altamente produtiva – nas
noites em que não estava de piquete na RDP, refugiava-me em casa a
escrever e a ler desalmadamente. Manuel Ramos sonhou “agarrar-me”: com o
intuito de me prender, comprou um “monte” entre Moura e Vidigueira, o
Monte Novo do Carvalhal. Fugi a sete pés dessa tentativa. Decididamente,
Manuela não tinha as caraterísticas necessárias para ser a companheira.
Mas ficámos amigos.
Estava à beira da
rotura o casamento com Dúlia. Tinha consciência de que, em grande parte,
tal se devia a culpa minha: não tivera coragem para conter uma aproximação
com Manuela Ramos que, de antemão, tinha a perceção que daria em nada.
Deixei arrastar a situação que se criara.
As perspetivas que se
abriam em Cabo Verde desenvolviam-se, especialmente graças ao meu
relacionamento com amigo cabo-verdiano, o Marcos Rodrigues, que conhecera
quando trabalhara no Ministério da Habitação – ele era empregado de um
restaurante na Baixa lisboeta que eu frequentava amiúde. O restaurante
encerrou, socorri-me de amizades para lhe arranjar colocação noutro
restaurante no aeroporto de Lisboa. Homem dos sete ofícios, Marcos
envolveu-se em negócios e convidou-me para o auxiliar a montar uma
serigrafia na cidade da Praia. Era o regresso a África.
Estava há muito tentado
a sair do continente português: aquando da nomeação de Silva Martins
(ex-sindicalista social-democrata) para o executivo de Macau, fui
convidado para assessor do Governo macaense. Aceitei. Passado algum tempo,
Martins telefonou-me para avisar de que estava apontado para esse cargo e
que o bilhete de avião vinha já a caminho: Dúlia queria vender as coisas
para partirmos, felizmente que me opus enquanto o bilhete não chegasse.
Nunca chegou e desconheço as razões. Confrontado com o clima de intriga
política e de negocismo naquele território, depois relatado por amigos que
nele viveram e com o que aconteceu ao meu ex-colega António Ribeiro,
agradeço nunca ter partido para Macau.
Também fui convidado
para chefiar a redação do “Diário de Notícias” do Funchal, tive reuniões
em Lisboa com o seu diretor e, a seu pedido, cheguei mesmo a estruturar um
plano de trabalho – deparei-me com a oposição de Alberto João Jardim, para
quem eu era um “cubano” (português do continente europeu). Mais tarde, nos
últimos anos da RDP, convidaram-me para Bratislava (Eslováquia), onde se
pensava abrir uma delegação do Instituto Camões – não passou de intenção!
África não me era uma
novidade: vivera a juventude em Moçambique, com passagens pela Suazilândia
e África do Sul. Conhecia S. Tomé e Príncipe e Angola (frequentei parte do
1º ano do Liceu em Luanda). Estivera em Marrocos com Cartaxo e Trindade,
ajudei na geminação de Sintra com El Jedida. Andara pela Guiné-Bissau com
Alpoim Calvão (a esquerda portuguesa apontava-o como criminoso de guerra,
responsável pelo ataque português a Conakry. Nino Vieira, Presidente
guineense, convidou-o a visitar Bissau – fui o jornalista que o
acompanhou. Com ele fui a Nhacra, Farim, Bolama, Guilege e Bubaque. Entre
as demagogias e a dura realidade dos factos, muitos mundos há).
Cabo Verde ficava como uma alternativa de fuga. Com a
miragem da serigrafia (que teve a colaboração do meu filho mais novo,
Bruno) veio o convite para trabalhar na propaganda da candidatura de
Nasolino Santos à presidência da Câmara da Praia. Garantiram-me (Lourenço
Lopes) que havia condições de vitória e, mal cheguei à Praia, a quinze
dias das eleições, tive reunião com Carlos Veiga – total confiança nos
resultados eleitorais. O que vi no terreno alertou-me: acompanhei a
campanha em Achada de S. Filipe e fiquei assutado. Fiz uma pequena
sondagem pelo telefone para medir a popularidade do candidato entre o
eleitorado feminino (a maioria da população praiense) e percebi que,
provavelmente, apenas a sua mulher, Salomé, nele votasse. O mal não estava
no candidato, Nasolino, até um indivíduo interessante, mas nas condições
da candidatura e no excesso de confiança do então partido governamental, o
Movimento para a Democracia: os erros políticos do Primeiro-Ministro,
Gualberto do Rosário, tinham sido mais do que muitos, talvez em parte
fomentados pela entourage
embalada por “facilitismos” dos marqueteiros brasileiros de que se rodeara
e em quem depositava excessiva confiança. O seu gabinete, de resto,
completamente minado pelo adversário – os chamados “submarinos”.
A derrota era
inevitável. Por mais que fosse um veterano das campanhas eleitorais
portuguesas, não podia forjar o impossível. Descobria em Cabo Verde o mais
raso maneirismo político que ofendia os mais simples pressupostos
democráticos. Altas horas da noite, fora encontrar escondido na serigrafia
de Marcos Rodrigues (em Ponta Belém), e à revelia deste, o principal
adversário de Nasolino (Felisberto Vieira, Filú), a preparar os seus
cartazes: expliquei-lhe pacientemente e com frontalidade o que neles era
correto e era errado. Com espanto meu, ouvi na televisão cabo-verdiana o
mesmo Filú anunciar que documentos da campanha de Nasolino eram da autoria
de portugueses. Enganava-se. Os documentos que apresentou na tv eram os
únicos que, desde a minha chegada, não eram da autoria de um português – a
demagogia de faca na liga em nada ficava a dever à demagogia que vira em
Portugal. Tinham maus mestres!!!
Aconteceu que, nesses
dias, fui a Assomada (a uma dezena de quilómetros da Praia) e vi o
inqualificável – um carro de som da campanha eleitoral do MpD aparecia em
algum local, logo outro aparecia (do PAICV) a sobrepor-se ao som do rival.
Nunca isto vira noutro país que se considerasse democrático. O
“boca-de-urna”, a compra de votos ou de consciências eram prática comum.
Como evitar tais atropelos? Não sabia o que fazer…
Regressado a Lisboa,
recebi segundo convite do Marcos Rodrigues: propunham-me que voltasse a
Cabo Verde para dar formação a assessores do Governo de Gualberto.
Aceitei. E convidei para participarem como formadores o Braga-Amaral (que
conhecera na Régua, através do meu amigo Jorge Velhote) e a Maria de
Lourdes Pelicano. Problemas de cumprimento de horários (que não está nos
hábitos dos cabo-verdianos) e das competências dadas aos assessores foram
os problemas maiores que encontrei. Um dos assessores, o Miky Cabral,
queixou-se: “os ministros nunca aceitariam as minhas opiniões!”. Ou seja,
cada governante considerava-se um predestinado a quem um assessor ficava
dispensado… de assessorar.
A situação agravou-se
com os atrasos de pagamentos. O Ministro da Cultura, Arq. António Jorge
Delgado, procurando uma solução para o problema, propôs-me que escrevesse
uma história dos judeus em Cabo Verde, ideia que desapareceu de cena e
rapidamente percebi porquê – grande parte da nomenclatura Verdiana era, e
é, de origem judaica. Logo depois atitou-me para uma assessoria ao então
presidente da Inforpress, Apolinário das Neves, de quem me tornei amigo.
Na altura, o jornal “Horizonte” dependia da Inforpress.
Uma das minhas tarefas era o de ser seu
copy-desk. Tornei-me amigo de
Fernando Monteiro, diretor do jornal, e consegui a aproximação entre o
administrador Apolinário e o Fernando – as suas relações enfermavam da
falta de diálogo. O Ministro Delgado sugeriu-me a criação de uma nova
publicação, “O Independente”, convidei a Rossana de Almeida para o
dirigir. O projeto não passou de projeto.
Voltei a Portugal.
Pouco tempo depois, o Apolinário (o Governo mudara do MpD para o PAICV)
convidou-me para uma nova aventura: o lançamento de um semanário privado,
claramente de oposição ao Executivo. Seria o “Expresso das Ilhas”. Assumi
do desafio. Conseguiria pô-lo à venda em três meses. Convidámos para
diretor o Fernando Monteiro, escolhemos uma redação (o Vává, o António
Monteiro, a Helga, a Kátia, o Lúcio Rodrigues, o Txota …), fui mesmo morar
para a sua redação no bairro da Terra Branca. O jornal fez-se dentro dos
prazos previstos, o administrador José Tomás Veiga deu uma festa - chefiei
a sua redação nos primeiros seis meses, após o que regressei a Portugal,
onde metera licença sem vencimento ainda na RDP. Aproveitei para escrever
um conjunto de crónicas publicadas no jornal que, mais tarde,
reuni numa coletânea ainda não editada – “Quebra-Canela, aventuras e
desventuras de um portuga nas ilhas do Cabo Verde” (retrato do que foi a
Praia nos anos 90).
Nessa altura, gozando de alguma popularidade,
comprazia-me em responder à provocação com provocação – em não a deixar
sem troco. A concorrente “A Semana”, afim do PAICV, quis denegrir-me e,
para tentar escandalizar os leitores, vendeu a mentira de que eu auferia
no “Expresso” algo como trezentos contos mensais (um exagero para Cabo
Verde). Quando isso li na publicação que, deste modo, se comportava como
um pasquim, apresentei-me na sua redação – engasguei a diretora quando lhe
disse que vinha receber o dinheiro devido: eu ganhava 100 contos no meu
jornal, eles noticiavam que afinal recebia 300, portanto teriam de desviar
200 para si. Eu queria o dinheiro de volta. “A Semana” tinha que mo pagar.
Foi remédio santo: deixaram-me em paz.
Fiquei como correspondente em Lisboa do “Expresso das
Ilhas”, cargo a que renunciei quando o Apolinário foi afastado da sua
administração. Escrevi a Ulisses Correia e Silva, nomeado administrador da
Media Capital, mostrando o meu desagrado: “vocês, cabo-verdianos, herdaram
o pior dos portugueses – afastam quem trabalha e se bate pelas coisas, e
promovem os amigos, mesmo que sejam incompetentes”, expus na carta que lhe
enviei.
Estava ainda na RDP quando Apolinário de novo me
contactou: era mais uma campanha eleitoral em Cabo Verde que se preparava.
Eu ficara escaldado com a experiência havida na candidatura de Nasolino. O
MpD enfermava, congenitamente, do resultado de como emergira na cena
política – originariamente, fora uma frente de tendências unidas na luta
contra o totalitarismo e o partido único. Convertera-se num partido. A
luta interna das diversas tendências funcionara como força centrífuga para
a sua automatização, de acordo com o velho princípio estalinista de que “o
partido fortifica-se, depurando-se”. A subida ao Poder da tendência
“rabentola” (fundamentalista, radical, reivindicando-se de uma pretensa
ortodoxia), liderada por Gualberto do Rosário, obrigara que o grupo
reunido em torno de Eurico da Fonseca (onde se encostavam os chamados
trotskistas cabo-verdianos) e o grupo em torno de Jacinto Santos
debandassem e formassem novos partidos. Herdeiro do partido único e cada
vez mais distanciado da sua matriz ideológica, cada vez mais funcionando
com um conglomerado de interesses, estava o PAICV, agora regressado ao
Poder com um simulacro de neoliberalismo - de facto, o seu estatismo
centralizador, tingido de discurso liberalizante, permitia os mais
diversos maneirismos táticos, ao sabor das circunstâncias.
Desta feita, tratava-se de candidatar Ulisses Correia e
Silva à presidência da Câmara da Praia em confronto com Felisberto Vieira,
Filú. A disputa prometia, desde que a campanha fosse seriamente preparada.
Pensei duas vezes, sugeri que na campanha participasse o Braga Amaral (bom
técnico de imagem), o que foi aceite. Pela terceira vez, regressava a Cabo
Verde. Pôde congeminar-se uma campanha bem estruturada, com uma linha
política oleada, com cautelosas medidas defensivas contra o que chamei de
“esperteza crioula”: concebi a sua palavra de ordem (linha de força para o
ambicioso programa – “Praia tem solução”), dei colaboração no “Jornal de
Cabo Verde” (o que me deu proteção) de que, mais tarde, fui chefe de
redação. Era propriedade do Apolinário e dirigido por Daniel Medina.
Foi campanha vencedora, contra as
artimanhas de Filú e as expectativas de José Maria Neves (PAICV), que
rendera Gualberto na governação das ilhas. Cidade da Praia perderia em
oito anos os seus arremedos pretensamente africanistas
para se modernizar e ganhar novo fôlego. Foi mudança profunda. Com a
candidatura de Ulisses criavam-se condições para o paulatino reagrupamento
de tendências no seio do MpD – era o
rassemblement. Primeiro foi o retorno do grupo de Eurico da Fonseca,
depois de o de Jacinto Santos. Aos poucos, devolvia-se o MpD às suas
caraterísticas originais, para tanto chamando de novo Carlos Veiga
à sua liderança. Ele seria candidato do MpD à Presidência da República.
Preparou-se a campanha, chamando de novo o Braga Amaral
e trazendo de Portugal o José Leite, que me ajudara nas campanhas da
Aliança Democrática e velho conhecimento dos tempos de “O Diabo”,
“Estética” e “Ideal”. Leite trouxe atrelado, para surpresa nossa, um seu
conhecimento de Lisboa: Alte Pinho. Juntou-se-lhes a Inês Ramos,
designer de excelente qualidade.
Logo inicialmente se cometeu um grave erro, aceitando a palavra de ordem
proposta pelo Amaral – “Mesti muda” (expressão crioula que significa “é
preciso mudar”). Os argumentos contrários avocados não vingaram: o
eleitorado é resistente a “mudanças”, prefere a “estabilidade”, seja ela o
que seja. Por outro lado, sendo o MpD o maior partido autárquico
(maioritário na generalidade das Câmaras), e sucedendo-se de imediato às
eleições presidenciais as autárquicas, avançar com o “Mesti muda” seria
fornecer ao adversário uma arma que ele poderia depois arremessar-nos.
De nada valeram os argumentos contra. Amaral impôs os
seus pontos de vista contra tudo e todos, socorrendo-se de duplicidades:
apresentava ao comando político as suas ideias como sendo nossas, e
apresentando-as a nós como sendo do comando político. Sobre ocupados com
um novo jornal de campanha (“Já”) e com um jornal digital diário
(“Liberal”), não estávamos - Apolinário e eu - em condições para
centrarmos totalmente as nossas atenções na candidatura de Carlos Veiga.
Demais, Apolinário estava assoberbado com a realização de sucessivas
sondagens. Em retrospetiva, fica fácil entender que o caminho deveria ter
sido outro: nas anteriores presidenciais, só por judicialmente reconhecida
fraude eleitoral Veiga a perdera para Pedro Pires – como muito mais tarde
foi reconhecido por insuspeito tribunal, mais de metade dos poucos votos
com que Pires foi dado como vencedor ou eram de falecidos ou manuseados em
duplicado! Uma indecorosa burla à moda dos “coronéis” brasileiros. Os
autores da burla foram condenados à cadeia, mas Pires (imperturbável)
manteve-se na Presidência. O anedotário da vigarice política motivou mesmo
o meu romance – “A segunda vida de Djon de Nha Bia”: história de um morto
ressuscitado, em pleno caixão, pelo governador a fim de poder ir votar.
Foge para se escapar à tirania desse governador. É uma história crioula
que se estriba em factos ocorridos.
Perdida a eleição presidencial, os jornais ficavam
pendentes da capacidade de investimento havida. A situação era
periclitante. A crise económica batia à porta: tive que abandonar a casa
em que vivia no Palmarejo, abrigar-me na vivenda de Apolinário em Achada
de S. Filipe, na Praia. Fomos contratados para um efémero apoio à
candidatura autárquica de Scapa (Spencer Lima) na Câmara da ilha do Sal
(PAICV) – sendo conhecidas as nossas identificações com o MpD, tal apoio
não poderia ser assumido, além de que (como as sondagens o indicavam) a
candidatura não tinha qualquer hipótese de vitória.
Comprometida (por falta de suporte financeiro) a
sobrevivência de “Liberal”, por sugestão de Apolinário propus-me como
assessor da Câmara Municipal de Ribeira Grande de Santiago. Fui aceite.
Com o Vince e a sua mulher alugámos casa na Várzea da Companhia, passei a
diariamente me deslocar a Cidade Velha. Porque tinha bons contactos em
Portugal, desloquei-me por várias vezes à Europa. Por sugestão do chefe de
Gabinete do Presidente da Câmara, Orlando Santos, intervim nos processos
de geminação de Cidade Velha com Câmaras portuguesas.
Posteriormente, colaborei na reedição de “Liberal”. Com
o falecimento de Orlando Santos, intercedi para Apolinário das Neves
ganhar o cargo de Diretor de Gabinete do Presidente da Câmara de Ribeira
Grande de Santiago. Um AVC limitou-me imenso: fui internado na Praia,
fiquei coxo, desloquei-me a Portugal onde fui hospitalizado em Alcoitão.
Apesar disso, fiz uma última campanha eleitoral: integrei a “task force”
para a reeleição de Manuel de Pina à presidência da Câmara. Em Cabo Verde,
participara em cinco eleições – em duas ganhara e em três perdera.
No ínterim, continuei a escrever: um livro de poesia,
“Canto Finissecular”, a edição digital de “A Ilha de Amianto” (poemas
escritos na Córsega), uma plaquete de poesia (“A Papaia”), um outro livro
de poesia no prelo, “Rotxa scribida” (homenagem a Cabo Verde), diversa
investigação histórica em edições digitais (“Os Quilombos em África”, em
colaboração com um professor universitário brasileiro Ademir de Barros; “A
Irmandade dos Homens Pretos”; “A Tabanka do Salineiro”; “A Companhia do
Grão Pará”; “Francis Drake, os corsários e a crise dinástica de 1560”).
Ainda, em colaboração com João Lopes Filho, “O Sermão de António Vieira
dito na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, Cidade Velha” – aguarda
edição. Na gaveta ficou o original de um romance (“Quem pode ganhar esta
guerra?”) e um livro de crónicas (“Estrada da Beira”). Além de diversa
publicação avulsa, participação em diversas antologias – “Do Amor”,
“Portuguesia” (Brasil) e poemas da lusofonia, editada em Buenos Aires
(Argentina) – e colaboração com Júlio Silvão no filme-documentário sobre
Eugénio Tavares (prémio do CPLP DOC). Não foi mau.
Nuno Rebocho
|