Quase tudo o que sou, o devo aos grandes mestres que me
formataram quer em Moçambique quer em Portugal e, também, aos companheiros
de estrada que me deram a mão nos tropeços da vida. Não os esqueço deles,
são parte de mim. Demasiados, infelizmente, são os que já mergulharam no
oceano comum da morte. E, se à vida teimosamente me agarro, há nisso um
sentimento de dever em levar o mais longe possível, dentro das minhas
limitadas capacidades, a bandeira que a dado momento eles empunharam.
Afinal, serei o fruto que geraram, apenas estive, nos momentos certos e
nos lugares certos sem fugir ao que era chamado a cumprir. Virtude não
houve, somente acaso.
Contrastaram os mestres que sempre evoco (e de se lhes tirar o
chapéu eles foram!) com a misérrima coleção que por aí se arrasta a
atormentar os jovens, protegidos pela contratação coletiva fomentadora de
mediocracias. Todavia, ensinar, educar, é mais do que um mister gerido por
normas sindicais (que substancialmente fogem ao essencial) – é sobretudo
uma devoção, um dever cívico e cultural, uma missão. Os professores, que
me orientaram, mandariam bugiar os atuais apóstolos sindicais – “vocês não
sabem do que estão a falar”, apontariam. E, decididamente, pouco sabem.
Não refiro os docentes que tive numa passagem esporádica por
Lisboa, frequentando o 1º ano do Liceu Camões: somente me lembro da
professora Caimoto, a de Português, do professor de Francês que se
suicidou (enforcou-se) em plena sala de aulas, e do professor Brederode, o
de Canto Coral. Dos colegas, a miudagem que comigo andava, também quase
nada recordo – só me vêm à memória os nomes do Gama, do Pablo, do Taclim
Talhé e do Sebastião “Pernas Tortas” (Sebastião Lima Rego, que chegou a
ser meu advogado quando, anos depois, estive preso em Peniche).
Na ex-Lourenço Marques, para onde logo regressei, deparei com
extraordinários mestres, como o foram Cansado Gonçalves, Lacerda e
Cardigos dos Reis. Cansado Gonçalves, o
Tirilicas, foi o farol: atirado
para Moçambique por determinação de Salazar, com os chamados
grilistas, foi dirigente
comunista (da ala que se opunha a Álvaro Cunhal – sabem que houve nos anos
40, Guerra Civil de Espanha, dois Partidos Comunistas em Portugal? O dos
grilistas – referência a Velez
Grilo, seu secretário-geral – e os
regressados do Tarrafal, cada qual publicando o seu “Avante!” e
distinguindo-se pela colocação da foice e do martelo). Baleado e preso,
quando libertado foi desterrado. Tive a felicidade de ser seu discípulo em
África. A verdadeira história do PC, conheci-a depois, tanto pela muita
documentação que haveria de passar-me pelas mãos, como contada nas
prisões, esmiuçada por Júlio Fogaça, António Dias Lourenço, Francisco
Martins Rodrigues e outros.
A primeira aula de História que recebi do
Tirilicas agarrou-me para
sempre, entusiasmou-me, deslumbrou-me, foi revelação: ditou-nos o resumo
da evolução do mundo e da humanidade, reduzindo-a a uma escala comparativa
de 24 horas. Por influência dele, ultrapassei os débeis manuais impingidos
no ensino, também papagueados nos territórios sob dominação colonial
portuguesa, para estudar através de descomplexados livros franceses – como
os de Jacques Pirene, de Mallet et Isaac, de Bonier.
Tirilicas irritava-se comigo:
“se ao menos estudasses, com a capacidade de raciocínio que tens, podias
ir longe…”. Mas preferia dedicar-me à quase clandestina leitura de
romances, escondidos debaixo dos livros de estudo, e à prática de desporto
do que aos canhenhos do liceu. A literatura começara já a seduzir-me,
quiçá acicatado pelo meu companheiro no liceu em Lourenço Marques, o Luís
Bernardo Honwana, que a todos surpreendeu com o seu “Nós matámos o cão
tinhoso”.
A História competia com o que, por intermédio de Mário
Albuquerque e Nelson Serra, meus companheiros de liceu, nesses anos me
atraía – o basquetebol. Fui sofrível jogador: a seleção de Lourenço
Marques, no que aos juniores respeita, era a equipa do liceu que, por
acaso, também era a do Sporting de Lourenço Marques. E, perdoe-se a
vaidade, do melhor que, na bola ao cesto, havia no que então se chamava
Portugal, como mais tarde ficou provado nos Campeonatos Nacionais. Os
médicos aconselhavam-me a que praticasse desporto intensivamente para
resolver um problema detetado numa das passagens por Lisboa que fiz: o meu
corpo estava a se feminizar. Fui operado, circunciso, tinha apenas nove
anos de idade – o médico disse, na altura, que a “anomalia” era mais
frequente do que se pensava, mas o facto para sempre me marcou de
complexos nunca conseguidos de superar. Por isso, joguei basquete e hóquei
em patins, alinhei nos juniores do SNECI (o Sindicato) até que o
treinador, Amadeu Bouçós, campeão do mundo, num treino me levou a disso
desistir –forte bolada atingiu-me em sítio impróprio. Ficou no meu lugar o
Zé Manel Suspiro, amigo meu desde que, em Portugal, nas Caldas da Rainha,
eu aprendera a andar em bicicleta.
Por esta altura, meu pai empurrou-me para angustiante crise
religiosa. Eu fora fervoroso católico e, impressionado pelas cenas do
filme “Marcelino, Pão e Vinho”, quisera mesmo cursar o seminário.
Influenciado, porém, pela Igreja Nazarena (vizinha da casa paterna na
chamada Avenida General Roçadas), o pai renunciou ao espiritismo que
advogava e ingressou no credo evangélico – forçou-me a acompanhá-lo.
Resisti quanto pude, mas debalde. O pastor Dias cuidou de mim – à custa da
escola dominical e dos cânticos religiosos (de resto, o coral da Igreja
passou a ser dirigido por meu pai), tornei-me crente ao ponto de seguir
para Bremersdorp, na Suazilândia, para frequentar o seu seminário. O
problema é que, entretanto, meu pai rompeu com os nazarenos, entrou em
conflito com o pastor, mandou-me regressar da Suazilândia e impôs que
abandonasse esta crença: obviamente me opus. Dormia com a Bíblia oferecida
pela mulher do pastor debaixo do travesseiro e todas as noites mentalmente
reclamava a ajuda divina – “meu Deus, dá-me um sinal”. Começaram então a
aparecer manchas de sangue nas bíblicas páginas e a convicção reforçou-se.
Infelizmente, cedo se veio a detetar que a cama estava infestada de
piolhos. Acabou o milagre! Como a pré-JOC procurava guarda-redes e eu
tinha vocação para o lugar, o futebol protegeu-me: perdeu-se um nazareno,
ganhou-se um keepper.
Em Lourenço Marques, hóspede dos meus pais (e depois na Matola
para onde mudámos), encontrara um amigo muito especial – o “tio” Pereira,
velho colono que vivera largos anos no norte da colónia, sempre vestido de
caqui, fumava e lia desalmadamente romances atrás de romances. Todas as
semanas trazia para casa resmas de livros (não sei onde os ia buscar) que
me emprestava. Lia-os às escondidas, escondia-as por debaixo dos livros de
estudo, devorava-os, fingindo que estudava. Entre tanta livralhada que me
povoava os sonhos, tinha lá tempo (e interesse) para estudar! “Tio”
Pereira era exímio em contar histórias, porventura por si vividas, de
cenas que vivenciara no Rovuma - fora dos “Alunos de Apolo”, em Lisboa,
“rei” do tango nas “soirées” de então, separado de uma chinesa com quem
casara. Quase sempre acompanhou meus pais em Lourenço Marques, fazia parte
da família. Connosco, na sorrelfa (não fossem ouvidos indiscretos
escutar-nos), ouvia as emissões em português da Rádio Brazzaville,
mantendo o ambiente de “conspirativite” que se ia forjando – vivia-se,
nesse tempo, em Moçambique um forte oposicionismo que não coincidia com a
“verdade oficial”, politicamente correta, do regime salazarista.
Certo republicanismo que em Moçambique imperava entre a
comunidade de origem portuguesa, fosse ela “branca
de primeira” (a diretamente europeia) ou “de segunda” (a já lá nascida),
não atenuava o vigoroso racismo, mascarado de
apartheid que, por influência
sul-africana, então vingava: por exemplo, só podiam andar nas ruas depois
das oito da noite, sem salvo-conduto, os nativos africanos negros; os
negros “não-assimilados” não
podiam frequentar cafés, ir ao cinema para os
brancos e os “assimilados”
temiam passar por vergonhas; havia um cinema só para os
negros; os autocarros (machibombos)
eram divididos ao meio – a frente para os
brancos, a parte de trás para os
negros; era praticada
discriminação salarial – um branco
ganhava muito mais do que um negro
com a mesma categoria profissional, senão mesmo com maiores habilitações.
Ainda hoje me lembro de uma das histórias que “tio” Pereira
narrava, passada nos anos 30 do século passado, nas “terras do sem fim”,
lá para o Niassa: quando um administrador de posto, naturalmente
branco, queria encontrar outro
branco, também administrador de
posto (outros não havia), tinha que palmilhar quilómetros. Ia em liteira,
levado aos ombros por dois pretos,
antecedido por um batedor que ia à atalaia descobrir os perigos no
caminho. Certa vez, um batedor encarou um leão numa clareira e logo tratou
de disso alertar o administrador. Este pôs a cabeça de fora da cabina da
liteira, olhou para o leão à distância, olhou para o batedor e deu a
precavida ordem: “vai dizer ao leão que o senhor administrador quer
passar”. O batedor olhou para o leão, olhou para o administrador de posto
e optou por quem afinal tinha menos medo - foi ter com o leão e,
desbarretando-se, anunciou: “senhor leão, senhor administrador quer
passar”. Ou porque não tinha fome, ou por qualquer outra razão, o leão
bocejou, levantou-se e retirou-se. Desde então, esse administrador foi
considerado um “deus” no Rovuma – até os leões dele tinham medo… Foi assim
o colonialismo português em Moçambique!
Outro dos professores em Lourenço Marques, Cardigos dos Reis,
escancarou-me a Geografia, despertou-me a curiosidade de conhecer o mundo,
oportunidade que anos mais tarde viria a ter como jornalista. Foi ele um
dos mestres que mais me encantaram em Moçambique. Vim a estar, sem o
saber, em casa de seu filho na ilha do Corvo, nos Açores – médico, dono do
único automóvel existente na minúscula ilha, envolvido no primeiro
acidente de viação ali ocorrido (embate entre o seu carro e um
motocultivador), foi Presidente da Câmara local. Por correspondência,
recordámos depois os longínquos tempos de Moçambique e o papel que o pai
desempenhou na minha instrução.
Quanto ao Professor Lacerda, esse, quis empurrar-nos para o
estudo da Ciência. No meu caso, pouco ou nada conseguiu. Fora lente da
Universidade de Coimbra, afastado e deportado numa das purgas
corporativistas que se abateram sobre a universidade coimbrã e que
caraterizaram o longo consulado ditatorial de Oliveira Salazar.
Xilinguini
(assim se referia em shangana a
cidade de Lourenço Marques – Maputo era uma reserva de elefantes a cerca
de uns 50 kms) -, além de me ter gerado a buliçosa crise religiosa, deu-me
professores fundamentais para a minha formação e colegas que acompanharam
muitos anos da minha vida, como foi o caso de Alexandre Alhinho de
Oliveira, confrade de turma (quinto ano do liceu), meu conselheiro nos
primeiros anos já em Lisboa, companheiro de prisão em Peniche e meu
“inimigo” aquando do “caso República”, de que foi o
revolucionário chefe de redação.
Recordo alguns outros colegas em Moçambique: em Lourenço
Marques e na Matola, os manos
Viegas – o mais novo foi hoquista, morreu em combate para as bandas de
Tete, nos inícios da guerra colonial. O Mickey, o Zinho, o Carlos Nuno
Pinto Coelho (o Kanu) que, reencontrado nos anos 70, jornalista do “Jornal
Novo”, me estendeu a mão para que me fizesse periodista profissional – ia
a sua casa em Somershield e pedalávamos até à praia da Polana catrapiscar
as bifas (sul-africanas). Na Beira, o Ivo Maier – indiano (monhé
lhes chamávamos), morava comigo no Maquinino, meu companheiro no Liceu da
Manga com quem compartilhava a burra
(a bicicleta), excelente pintor, pela arte pictórica me interessou: fiz-me
um apaixonado por Gauguin, apaixonavam-me livros sobre o pintor e ajudei-o
a realizar no liceu sessões sobre o pintor francês.
No quinto ano do liceu, em Lourenço Marques, o “azar bateu-me
à porta” – paguei o preço do meu desleixo e desapego pelos estudos. Na
frequência, fui reprovado nas disciplinas de Ciências (Desenho e
Matemática) e passei nas de Letras. Afixadas as pautas para exames,
registou-se um lapso: inesperadamente, surgi proposto a ambos os conjuntos
de disciplinas. Calei-me bem calado, fiz as provas escritas, fiquei
aprovado. Já estava nas orais, quando a minha professora de Física deu
pelo erro. Foi uma situação complicada – tecnicamente, teriam que me
colocar no sexto ano; isso acarretaria processos disciplinares contra
funcionários e, evidentemente, represálias no ano letivo seguinte. Meu pai
ficou na dúvida sobre o que fazer e optou por que renunciasse à passagem.
Soubéssemos nós que, muito em breve, o progenitor seria recambiado para o
norte, teria aceitado o desafio de saltar para o sexto ano.
Aconteceu que, comprometido com o movimento pela
“independência branca” de Moçambique – que o Governador Sarmento Rodrigues
habilmente fingia apoiar -, meu pai acabou por ser transferido para a
Beira, havendo quem fosse “comprado” e promovido a deputado do regime em
Portugal. Em consequência, acabei o ano letivo em Lourenço Marques e
depois voei para a cidade do Chiveve. Demorei uns meses na capital
moçambicana, entregue aos cuidados da minha avó Dalila,
mulher e peras. Em processo de
separação do companheiro, saiu da casa onde morávamos na Munhuana e
mudámo-nos para Vila Carneiro, espécie de pátio onde se abrigavam os
poucos colonos pobres, por mim já conhecidos das Lagoas. Envergonhava-me
da transferência, trocava as voltas aos meus colegas para que ninguém
soubesse de fora para ali atirado e a tanto
descera. Ninguém veio a sabê-lo.
Na Beira, caí nas graças do reitor do “Pedro de Anaia”,
Brilhante Paiva, cujo filho era meu colega e amigo. Apesar das suas
posições ideológicas – apoiava o fascismo e o regime colonialista -,
revelou-se mestre empenhado e cuidadoso, que me defendeu contra as
“fúrias” do professor de História, de alcunha “Bolinhas” (não me recordo
do seu nome verdadeiro) que, por infelicidade minha, abominava Cansado
Gonçalves. Sob influência de Brilhante Paiva, comecei a frequentar a
biblioteca liceal e o Núcleo de Arte da Beira, onde travei conhecimento
com poetas como Rui de Noronha e Rui Knopfli (que, anos mais tarde, já
jornalista feito, reencontrei a trabalhar na embaixada portuguesa em
Londres - recordámos os “velhos tempos”). Por influência do reitor do
“Pedro de Anaia”, encetei efémera colaboração com a página juvenil do
“Notícias da Beira”, “Limiar”, que Nuno Bermudes animava.
Empregado como contramarca dos Caminhos de Ferro da Beira,
cujos proventos complementavam os auferidos na sua atividade musical, o
meu pai foi confrontado com um facto (abafado pela censura) que alertou a
família: o desaparecimento no cais do porto de um vagão carregado de
armamento. “Vai começar aqui, em Moçambique, o problema que existe em
Angola”, previu ele. A guerrilha, a luta pela independência iria irromper.
E meu pai decidiu que regressássemos a Portugal para acabar o sétimo ano
do liceu, o que permitiria que me adaptasse ao péssimo ambiente português
- ainda não existia universidade em Moçambique (coisas da vida, li mais
tarde no currículo de um diretor que ele estudara Direito em 1963 na
Universidade de Moçambique, só criada em 1964 – a confusa situação criada
com a descolonização permitiu tudo, até que um vendedor de publicidade em
Luanda se passeasse em Lisboa como “doutor” e diretor de uma revista e um
colega meu, de Angola, não sabendo conduzir, apareceu em Lisboa com uma
carta de condução de pesados).
Em Lisboa, ingressei no Liceu Camões: turmas
danadas, foram meus colegas o
inseparável Vítor Meira, o Adriano Jordão, o Veiga Testos, o Aragão, o
Boavida, o Rosa Lã, o Nandim de Carvalho, o Quintanillha, o José Manuel
Pereira, o Mira Amaral (estava noutra turma) – gente que se fez famosa.
Sob disciplina rígida, quase militar, governada pelo reitor
Cabeça de Martelo, Sérvulo
Correia de seu nome, o Camões deu-me professores que foram referência - o
de Literatura, Mário Dionísio, foi um deles. Com Vergílio Ferreira, o de
Latim, e Bénard da Costa, o de Filosofia, constituíram um trio que me
empurrou a assistir às suas aulas, apesar de, a meu pedido, me marcarem
faltas de comparência - como o dinheiro das propinas me fazia falta e para
ir a exames apenas bastava passar a uma disciplina (tinha para isso a
desprezível OPAN, Organização Política e Administrativa da Nação, que
acontecia uma hora por semana), quis “chumbar” por faltas para as não
pagar. Os professores, cumplicemente, compreenderam e aceitaram o jogo.
Entretanto, viera para Portugal com “carta de recomendação” –
Cansado Gonçalves aconselhara os seus
meninos a integrarem, quando
chegassem a Lisboa, a Casa de Estudantes do Império que era uma espécie de
voz da resistência ao que o bafio salazarista impingia à juventude vinda
de África. A CEI definia-se pelo escol que estava na sua origem – Amílcar
Cabral, Agostinho Neto, nomes que se identificavam com a luta contra o
colonialismo português. Com o meu colega de turma Vítor Meira, tornámo-nos
assíduos da Casa do Arco do Cego. Crescia o furor dos apaniguados do
regime e tivemos conhecimento de que os fascistas se preparavam para a
atacar. Organizámos a espera – estreita escadaria acima, até ao segundo
andar, lance a lance, encheu-se de rapaziada que quis organizar a
festança. Os “gorilas” da Procuradoria-Geral Ultramarina e da Frente
de Estudantes Nacionalistas, a caterva fascista e colonialista, cuidando
apanharem-nos desprevenidos, depararam com a surpresa de monumental
pancadaria. Chamámos-lhe o “baile dos Centuriões”. Dois anos depois o
fascismo desforrou-se: a PIDE, a tenebrosa polícia política do regime,
encerrou a Casa que ficou na História.
Devo referir que Mário Dionísio ensinou-me, sobretudo, métodos
de estudo: o recurso aos resumos, as fichas de leitura, os resumos
ideológicos. A literatura portuguesa afirmou-se-me com ele em todo o seu
esplendor. Tomei conhecimento dos clássicos. Desgostava-me, no entanto, o
conflito latente de Dionísio com Vergílio Ferreira - reflexos de um
contencioso nunca sanado entre neo-realismo e existencialismo - e que
desconfiasse das minhas constantes evocações de Cansado Gonçalves (só anos
depois apurei as razões políticas que presidiam ao seu rancor. Enfim,
coisas do comunismo…). Vergílio Ferreira, professor meticuloso, ainda que
havendo a animosidade com Dionísio, explicava-nos a importância do latim
para o conhecimento da língua portuguesa e dos seus segredos e
preocupava-se que fossemos bons alunos de literatura. Leria mais tarde
sofregamente as suas “Alegria Breve” e “A Manhã Submersa”, romances que me
encantaram.
Bénard da Costa serviu-se da Filosofia para nos fazer pensar.
Três anos mais tarde, seria meu diretor na revista “O Tempo e o Modo”,
onde fui redator do “noticiário crítico”, dirigido por Vasco Pulido
Valente e pela sua aerofagia. “O Tempo e o Modo” vestia o formato do
“Temps Modernes”, que o inspirava. Próximo da Opus Dei (a sua redação nada
queria saber disso), Bénard empurrou-a para as ideias saídas do “maio de
68”, acabando por ser agarrada pelo MRPP, que por completo a desvirtuou. O
“noticiário crítico” da primeira fase da revista teve equipa de luxo –
Luís Filipe Salgado de Matos, Jaime Gama, Sérgio Pereira da Silva, Alberto
Costa, Frei Domingos, José Antunes
Ribeiro, entre outros. Nos
colaboradores, estavam Vítor Wengorovius (mais tarde meu advogado, quando
estive preso em Peniche), o arq. Nuno Portas e os apelidados de “católicos
de esquerda”. No elenco diretivo da
revista, estavam além de Magrocal
(alcunha de Bénard), Alçada Batista e Pedro Tamen.
Quando foram publicados na revista os meus primeiros textos,
passeava ufano com a revista debaixo do braço. Tempos de brasa…
Nuno Rebocho
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