NUNO REBOCHO
Arcas encoiradas – V
Meses de clandestinidade

Todo o Poder que contra si tenha, além da sempre natural contestação da juventude, a rebelião, a insurreição das camadas juvenis, é um regime condenado a ser derrubado – é inevitável. O Estado Novo de Oliveira Salazar, nos últimos anos da década de 60, estava já no estertor: a queda da cadeira, que o ditador sofreu em 1969, apenas foi o prelúdio da estrondosa queda do regime. Os jovens pressentiam que o corporativismo entrara em agonia, faltando o safanão que, finalmente, o atirasse para a cova funda.

O “espírito do tempo” (Zeitgeist) tornava evidente que o “pacifismo” preconizado pelo PC português, cunhalista e krutshevista, seria “responsabilizado” pela manutenção da ditadura, estendendo-se aos tradicionais costumes do republicanismo. A juventude, despertada pela aventura guevarista, sonhava com a luta armada, com a criação de um “foco” de resistência ao fascismo. As guerras coloniais, que utilizavam a carne de canhão, aceleravam a revolta juvenil – as deserções, as fugas para o estrangeiro (sobretudo para França), fizeram-se cada vez mais massivas. A tese pecepista - que os jovens deviam aceitar a mobilização e “trabalhar” nas fileiras – era crescentemente repudiada.

Naturalmente, a contestação do cunhalismo também me marcou. Aderira ao PCP em 1963 e, apesar da minha inicial ortodoxia, acabei por ser arrastado pela onda. Entrara em conflito com a família paterna: o meu pai encontrara, numa gaveta da casa na estrada de Benfica, os “Avante!” (jornais do PCP) que eu lá escondera e ameaçou-me da pior maneira - chamar a PIDE!!! Nada pior para um militante. Indignei-me. Atirei-lhe com um jarro à cabeça (que não acertou) e abandonei a casa paterna: aluguei um quarto. Sei hoje que a tirada de meu pai apenas foi uma tentativa para me retirar dos caminhos que eu escolhera. Mas a ameaça soara-me a “grito de guerra”.

Nos primeiros tempos, obedecendo às orientações do meu controleiro, o camarada “Carlos”, distribuía propaganda, recolhia fundos e cheguei mesmo a instigar os companheiros a uma greve na primeira empresa onde trabalhei (a Agria Werke Companhia, perto da Penitenciária de Lisboa) – foi a minha estreia nessas andanças. De resto, os responsáveis da Agria, alemães, reagiam mal à “insubmissão” que manifestava: um deles, de nome Adolf Szech, enrubescia quando entrava na empresa e, provocatoriamente, o saudava – “heil, Herr Adolf!”. Melhor relacionamento tinha outro alemão, de Munich, o Herr Fundus. Simpatia que se evaporou, quando uma tarde, vindo beber connosco uma cerveja, me assaltou a triste ideia de lhe oferecer tremoços. O homem ofendeu-se, pensando que o tratava como um porco. Percebi depois que, em certas regiões da Alemanha, os porcos eram alimentados com tremoçalhada.

Desse tempo de militância no PCP conservo memória das tarefas que deveria desempenhar na RIC (Reunião Inter Cultural) das Associações de Estudantes. Um dia, o controleiro incumbiu-me de me deslocar a Coimbra para encontro com um estudante africano, o primeiro cabo-verdiano que conheci, Manuel Faustino, e negociar com ele ação que se pretendia organizar. Que tivesse muito cuidado, alertou-me, ele era trotskista (algo que ganhava ares de pecaminoso, quase que a modos de perigosa lepra). Ri-me, quando muitos anos volvidos, já em Cabo Verde, com ele recordei os momentos vividos na “República Quimbo dos Sobas”.

A diligência no cumprimento das tarefas que me eram destinadas, fizeram que o PCP me convidasse para ir até Moscovo frequentar um “curso” para “funcionário”. Nessa época, após a “traição” de Dias Deus e semelhantes “acidentes”, esses cursos eram mal vistos entre nós, que lhes chamávamos “cursos de dicção – multiplicavam-se os casos de “funcionários”, vindos clandestinamente de Moscovo depois de os frequentarem, que desbocavam na PIDE quando presos, revelando os segredos da organização. Havia normas rigorosas: silêncio na PIDE, fossem quais fossem as torturas recebidas. Um pequeno e infeliz manual, cuja autoria era atribuída a Piteira Santos (“Se fores preso, camarada”) – aterrorizava, tanto ou mais do que a polícia política, os que o liam: “borram-se de medo”, criticava-se. O convite para a ida à capital soviética naturalmente se esfumou: o PC afastou-me por “esquerdismo” e “aventureirismo” por defender muitas das teses maoístas disseminadas em Portugal pelo Comité Marxista-Leninista Português e pela Frente de Ação Popular.

Fernando Madureira foi fundamental para essa rotura com o PCP. Foi a Jacinta Sarmento que mo apresentou e, de conversa em conversa, fui aderindo às ideias que ele me transmitia: o sonho da luta armada inquinava a juventude que rejeitava os conceitos “legalistas” preconizados por aqueles que considerávamos “revisionistas” e depois “social-fascistas”. A FAP e o Comité sucumbiram à repressão policial, os seus dirigentes foram presos (principalmente, os seus dirigentes – Francisco Martins Rodrigues, João Pulido Valente e Rui d’Espiney). As tentativas para reestruturar o CMLP foram fracassando: um após outro, os que o queriam relevantar tiveram que fugir para Paris: o Eduíno Vilar, o Hélder Costa e outros. Formavam-se núcleos que, sonhando com a guerrilha, liam e discutiam o “Luta Popular” (órgão do CMLP). O “Binómio” fora um deles. Entretanto, o PC, para travar a fuga da juventude, criou a ARA (Ação Revolucionária Armada), ainda que os golpes de mão urdidos não representassem a linha fundamental da sua ação. Na verdade, a razão estava no seu lado, quanto a isto: a luta armada pretendida seria, nas condições de então, um suicídio, ainda que nos anos 40, no Minho e na Beira Alta, tivessem havido casos de resistência armada, sem continuidade.

Madureira entusiasmava-me e à minha volta foi-se constituindo um novo grupo: Bento Vintém, Pacheco Pereira, Bonifácio Serra, Arnaldo de Matos, Joel Góis… Líamos textos, discutíamos, passávamos livros clandestinos. Cada qual, seguiu no futuro o seu caminho próprio. Ia formando núcleos, com base nos conhecimentos pessoais que fomentava – na Baixa da Banheira, em Queluz (incluindo Amadora e Carenque), por exemplo. No 1º de maio de 1966, com o Madureira procurámos desencadear no Rossio a habitual manifestação alusiva. Tivemos que desafiar a repressão policial, aproveitando a passagem de uma moça para aglutinar os muitos manifestantes que estavam dispersos: simulando ser “marialvas”, colocámo-nos na sua cola, elevando a voz – “ah, aaah, aaaaaah”. Atravessámos a Praça do Rossio para o lado do teatro D. Maria, sempre aos gritos atrás dela fomos juntando pessoas. A repressão, depois da surpresa inicial, entrou em ação. Um grupo de jovens, servindo de biombo, permitiu-nos a fuga.

Poucos dias depois reencontrei esses jovens. Integravam um núcleo constituído em Queluz, onde me cabia orientar um grupo de estudo do marxismo-leninismo, fugindo para isso até ao Monte Abraão, então ainda sem edifícios ali construídos. Resguardando-nos junto de uma anta, discutíamos e exercitávamos arremedos de guerrilha. Um dos jovens era a minha futura mulher, a Dúlia, nessa época aluna do 3º ano da Faculdade de Ciências. Estava debilitada com um namoro frustrado e frustrante e a sua situação facilitou a nossa aproximação, que contou com a cúmplice anuência da minha futura sogra.

Uma das preocupações que tínhamos: restabelecer contactos com os exilados em Paris, conseguir contrariar a tendência para a grupuscularização que começava a definir-se e unificar os ramos dispersos. Sucediam-se as tentativas de diálogo com os núcleos no exterior. Madureira e eu entendemos que razões defensivas aconselhavam que se fomentassem núcleos por regiões, com capacidade para se desenvolverem autonomamente. Nesse sentido, António Bento Vintém encarregar-se-ia da área de Santarém: vinha da Frente de Estudantes Nacionalistas, FEN, da qual se desvinculou quando percebeu o que era. Morava e trabalhava na capital ribatejana e, em sucessivas idas a casa dos meus tios que ali residiam, a “conspiração” aprofundou-se. Reuníamos em sua casa até que a sua irmã pôs em perigo a nossa atividade. Passámos a encontrar-nos num café (do mal o menos) sem que antes nos tivéssemos atrevido a perigosas experiências – foi o caso de tentarmos fabricar nitroglicerina. Morava num segundo andar, sofria de tiques nervosos que o obrigavam a saltar para trás: muito cuidadosa e lentamente, transportámos num prato as gotas fabricadas até uma oliveira em frente. Demorámos quase três horas a descer as escadas. De longe, disparámos uma fisga. A oliveira, onde pousámos o prato, ficou rachada ao meio.

Aprofundado o trabalho conspirativo, reuniu-se comigo numa pensão em Coimbra e preparámos a sua ida à capital francesa em busca dos contactos de que carecíamos. Ficou encarregado de falar com núcleos marxistas-leninistas ali existentes. Infelizmente, o Vintém preferiu, à revelia das instruções que levava, bater à porta da IV Internacional. Daí a fama de trotskista que sobre mim, durante algum, recaiu e se fez sentir na prisão de Peniche: é verdade que conhecia muitas das teses de Leão Trotsky, punha em causa muitas das definições de Staline (que considerava mesmo mecanicistas e antimarxistas), entendia que alguns dos princípios de Mao Tse-tung coincidiam com os de Trotsky (era o caso da maoísta “revolução ininterrupta” e a trotskista “revolução permanente”), mas contestava o grosso das suas teses. E fora contra as minhas indicações que Vintém contactara a IV Internacional.

Outra das diligências fracassadas foi o envio a Paris de um moço da Margem Sul, o Vital. Na “cidade das luzes”, encontrou-se com a recém-constituída LUAR (Liga Unitária de Ação Revolucionária). No seu regresso, Vital “trouxe” a reboque Luís Benvindo e Barracosa, que entraram clandestinamente em Portugal. Vital preparou-me um encontro com eles em Alhos Vedros, com o João Telmo a conduzir-me a essa reunião. Má escolha: com problemas físicos, dava demasiado nas vistas. No entanto, aceitei ir com ele ao encontro. Quando entrei na rua de terra batida onde se acoitavam, ouvi soar uma canção clandestina e proibida, de Luís Cília, então: “É sempre a mesma melodia/ Salazar e a sua democracia”. “Escolheram mal o sítio para se esconderem”, concluí eu. Todavia, o som vinha precisamente do prédio para onde me dirigia. Espantado, surpreendi-me com o som a vir precisamente do piso onde me acolhia: a janela da sala para a rua completamente escancarada, as vizinhas acantonadas em volta do gira-discos que tocava, tocava “É sempre a mesma melodia/ Salazar e a sua democracia…”.

Na cozinha, encontrei-me com o Vital, Benvindo e Barracosa. O Telmo ficou fora da reunião. Explicaram-me os objetivos por que se norteavam: excluía-se todo e qualquer princípio ideológico no pressuposto de que se impunha unir tudo o que era unível contra o fascismo. No fim, convidaram-me a participar no assalto a um banco, o que (na sua opinião) era exequível. Concluí que, apesar de ser acusado de aventureiro, eles ainda o eram mais. Porque neles não acreditei, recusei o convite. Telmo, que não soube da minha recusa, foi preso pouco depois. Vital, igualmente detido, morreu de doença renal sob prisão. Meses depois seria condenado em Tribunal Plenário de S. João Novo, no Porto, por, entre outras coisas, alegadamente participar no assalto ao Banco de Portugal na Figueira da Foz. Falsidade pidesca.

Por essa época, a zona de Lisboa sofreu terríveis enxurradas que muito martirizaram a periferia. Houve cheias que agravaram as condições de miséria a que o salazarismo condenara as populações. Seria urgente acudir-lhes: a censura impedia as notícias sobre a gravidade do que ocorria, o governo do Estado Novo fechava os olhos e tapava os ouvidos para não se incomodar com as dores das gentes que enfrentavam a intempérie. Os estudantes e as organizações revolucionárias de imediato se mobilizaram para ajudar os desalojados e aproveitar a ocasião para “descer às massas”. Terá começado aí, ou nesse sentido forte impulso terá sido dado, para o que depois se chamou de “massismo” – ou seja, privilegiar atos que tendiam a colocar as “massas” em ação no processo revolucionário. À maneira das seitas religiosas, com as quais se semelhavam mais do que parecia, cada grupo privilegiava um aspeto em particular do marxismo-leninismo. Recordo os jovens de Queluz que souberam então responder positivamente às exigências – o Franco, o Tó Caeiro (futuro jornalista da ANOP/Lusa/RTP, que trabalhou na China e Moçambique), o primo de Dúlia, o Tói.

Rapidamente, Dúlia tornou-se minha companheira. Assumi a ligação que começara, dei-a mesmo ao conhecimento da família materna, a que obviamente valorizava – camponesa, da Lourinhã, Campelos e Bombarral. Levei-a a conhecer meus tios e primos na Ribeira dos Palheiros-Casal das Campainhas, avisando-a do “cuidado” de não vestir calças. Supunha que, nesses anos, isso seria hostilizado pelos camponeses. Expliquei-lhe o meu ponto de vista, ao encontro de ideia de que haveria que “albardar o burro à voz do seu dono”. Surpresa foi que a minha prima andasse, de calças vestidas, na bicicleta que usava: embatuquei. Obviamente que Dúlia me gozou: os “camponeses” já não correspondiam à imagem que deles tinha. O mundo real diferia do que nos livros me ressaltava. Era um primeiro aviso.

Quando regressei da Ribeira dor Palheiros, os estudantes que encontrei no Instituto Superior Técnico de Lisboa ficaram boquiabertos: não estava detido pela PIDE? Tinham feito uma coleta para mim e enviado para Caxias a sua solidariedade… Agradeci e fiquei preocupado: se me davam apoio, a polícia política concluiria que haveria motivos para isso. Outras razões de suspeita havia, decorrentes do assalto ao Banco de Portugal, na Figueira da Foz - não eram só as informações que pudessem advir das detenções de João Telmo e de Vital. Um dos assaltantes ficara hospedado, sem eu o saber, na pensão que eu alugara na Rua do Norte, no Bairro Alto. A PIDE fora à pensão e, obviamente, anotara o meu nome. Os factos complicavam-se e a aritmética seria fácil de fazer: “dois e dois são quatro”!

De imediato, transferi-me de pensão com a Dúlia. Por razões financeiras, continuávamos no Bairro Alto. Ainda nesses tempos de namoro - em que muitas vezes, me deslocara a pé de Lisboa a Queluz – fôramos surpreendidos na estação de comboio no Rossio: a “moralidade” policial deteve-nos porque nos beijarmos em despedida, cada um para sua casa. Para a farda, o gesto atentava com os códigos - era a “moral” salazarenta, de sacristia, que imperava no Portugal onde a miséria, o desemprego, a fome (que a polícia política e a censura silenciavam) não era crime, mas uma realidade aceite e um beijo dava prisão.

Uma noite, vindos de táxi de uma reunião em casa de Madureira, em Alvalade, detetei a brigada da PIDE a chegar à pensão onde Dúlia e eu estávamos hospedados. Dei indicação ao motorista para não parar e seguir viagem. Restava-me debandar. Zarpar de imediato de Lisboa era o que as circunstâncias aconselhavam: estava fora de questão fugir de Portugal. “É no País que se luta, é nele que devo continuar”, assim pensava. Tinha contactos no Norte de Portugal, dados pelo Fernando Madureira. Para lá partimos, à boleia, no dia seguinte.

Logrou-se a possibilidade de nos acoitarmos em Esmoriz por alegadamente a residência que procurámos ter recebido outro foragido – anos mais tarde, já depois do 25 de abril, Hélder Costa negou-me que alguma vez estivera escondido em Esmoriz. Tivemos que prosseguir, portanto, a viagem até ao Porto, onde Fernando Morais nos acolheu. Era ex-operário da Cerâmica Valadares, a trabalhar numa associação portuense, vivia com a companheira, Elvira, que igualmente militou na estrutura que, de imediato, delineámos, o Movimento Marxista-Leninista Português, mMLP – não havia tempo a perder. Ficámos em sua casa na Rua do Campilho.

Aguardávamos que a semente germinasse noutras regiões do País e os diversos ramos se reunissem na mesma árvore. Eram esses os nossos conceitos, mais ou menos “espontaneístas”. Relacionámo-nos com o Pedroso da Mota (que já estivera preso por duas vezes, mas rompera com o PCP, aproximando-se das teses maoístas), ganhámos novos camaradas – Lamego, mecânico da empresa de telefones; um trabalhador da UNICEF do Porto; outro companheiro que comigo depois esteve preso no Porto (tinha corcunda, muito diligente que, uma vez libertado, morreu num acidente de automóvel quando regressava de conduzir à fonteira mais um camarada em fuga); um carteiro do Porto, ex-militante do PC, que veio a revelar-se “provocador” – foi o informador que esteve na origem das nossas detenções. Mudámo-nos para um quarto alugado na Rua do Benformoso, a S. João Novo, antes de nos transferirmos para uma casa em Oliveira do Douro, junto a Avintes: uma casa isolada numa horta.

Aí nos desenrascámos: as dificuldades eram muitas. Tanto a Dúlia como eu mal sabíamos cozinhar. Ainda hoje me divirto com isso – “houve um mal-entendido. Ela pensava que eu sabia cozinhar, eu estava convencido que era ela quem sabia cozinhar. Os primeiros tempos foram uma desgraça”. Numa parede da cozinha de Avintes deixei uma inscrição que depois foi “quebra-cabeças” para a PIDE – “Imaginação, Inspiração, Limão”. Eram regras culinárias, não mais do que isso.

Dúlia conseguira que a mãe lhe enviasse (à revelia do pai) algum dinheiro que juntava ao que ela, a “senhora engenheira” (como era tratada), auferia do emprego a que se candidatara na Rádio Placard, à pouca verba que me viera da elaboração de uma fotonovela que, sob nome suposto, Urbano Tavares Rodrigues me angariara na Agência Portuguesa de Revistas (e que nunca produzi), e ao pouco que me vinha da organização. Nestas condições, com os pseudónimos de “Abel” e “Afonso Vieira Dias”, ia persistentemente tecendo a estrutura do mMLP, estudando literatura marxista, redigindo os múltiplos documentos necessários (proclamações, manifestos, comunicados), doutrinando, estabelecendo contactos com estruturas estrangeiras (como a Frente de Libertação Popular de Espanha, FLIPO, o Partido Comunista Marxista-Leninista espanhol, com cuja secretária-geral me encontrei no Porto). 

A organização crescia a olhos vistos, fazia-se sentir, incomodava o PC…. e a PIDE. Descontentes com a linha partidária acudiram às nossas iniciativas – foi o caso de Virgínia Moura, uma “lenda” no Porto. Questões pessoais (de que não me arrependo) fizeram que cortasse relações com Madureira. Procurava conexões com a ação noutras regiões e, para isso, combinei uma reunião no Porto com Bento Vintém. Viria de comboio desde Santarém. Na companhia da Dúlia, esperei-o em vão na estação de Campanhã até altas horas da noite: fora capturado pela polícia política quando se preparava para vir ao meu encontro.

No regresso de autocarro para Oliveira do Douro, desconhecendo o que houvera com Vintém, senti que se passava algo de estranho. A prudência aconselhava que mudasse de “casa de recuo” (como nomeávamos as instalações de abrigo): mudámo-nos para a residência de um casal de camaradas em Santo Isidro, Santa Cruz do Bispo. Para saber de qualquer situação anómala em Oliveira do Douro, encarreguei (erradamente) que o carteiro recrutado – em quem depositava confiança – de vez em quando por lá passasse, a coberto da sua atividade profissional. Claro que, por óbvias razões, ele me sossegou…

O casal que nos deu guarida proporcionou-me o encontro com Alcino de Sousa: ex-militante do PC nos anos 50, fora detido em Peniche e rompera com os cunhalistas, aderindo às teses de Amadeo Bordiga – a sociedade sem classes que preconizávamos aproximava-se em linha reta, desprezando as incidências “revolucionárias”, de que pouco ou nada resultava. Para o leninismo, tratava-se de um convite ao “atentismo”. Alcino tornara-se administrador de uma fábrica têxtil, dirigente do Teatro Experimental do Porto, conservando um saudável espírito de rebelião: o diálogo com ele foi positivo e prometeu-me apoio.

Sinal de que a repressão apertava o cerco foi que Pedroso da Mota (o camarada “Pedro”) teve que fugir a uma tentativa de prisão e “mergulhou” na clandestinidade, refugiando-se também em Santa Cruz do Bispo. Não havia outra solução de imediato: era o urgente recurso que a segurança não aconselhava. Preocupado com a situação havida, dirigi-me a um encontro com um camarada na Senhora da Hora – para as deslocações ou ia de bicicleta ou caminhava a pé. Altas horas da noite, vim de Leixões para Santo Isidro, desconfiado da estranha movimentação de um automóvel que por mim passou por três vezes. Chegado a casa, decidi que no dia seguinte deveríamos todos mudar de instalação. Deitei-me, após uma breve conversa com o Pedroso da Mota. De madrugada, nesse 20 de dezembro de 1962, a casa foi assaltada pela Guarda Republicana e por uma brigada da PIDE. Estávamos presos: Dúlia, eu, Pedroso da Mota, o casal que nos acolhera, o Lamego, a Elvira, um conjunto de camaradas. Morais fugiu, fez-se clandestino e passou a França. O informador da PIDE, esse, ficou a salvo.

Nuno Rebocho

Nuno Rebocho - Nascido em 1945, em Queluz (Portugal), viveu em Moçambique desde os três meses de idade até 1962. Jornalista, poeta e andarilho – bastou-lhe ter estado preso por cinco anos na Cadeia do Forte de Peniche (por cinco anos, motivos políticos), para recusar ser animal sedentário. Viveu a imprensa regional (Notícias da Amadora, Jornal de Sintra, Aponte, A Nossa Terra, Jornal da Costa do Sol, Comércio do Funchal, entre outros), foi redactor da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, das revistas O Tempo e O Modo e Vida Mundial, em diferentes diários e semanários, e é chefe de redacção da Antena 2 da RDP. Colaborador de Acontece en Sorocaba (Brasil) e Liberal (Cabo Verde). Autor de “Breviário de João Crisóstomo”, “Uagudugu”, “Memórias de Paisagem”, “Invasão do Corpo”, “Manifesto (Pu)lítico”, “Santo Apollinaire, meu santo”, “A Nau da India”, “A Arte de Matar”, “Cantos Cantábricos”, “Poemas do Calendário”, “Manual de Boas Maneiras”, “A Arte das Putas” (poesia), “Estórias de Gente” (crónicas), “O 18 de Janeiro de 1934”, “A Frente Popular Antifascista em Portugal”, “A Companhia dos Braçais do Bacalhau” (investigação histórica), está representado em diversas antologias e colectâneas em Portugal, Espanha e Brasil. Tem colaborado em catálogos para exposições de artes plásticas: Ramón Catalan, Deolinda, Carlos Eirão, Alfredo Luz, Edgardo Xavier, João Alfaro, Maria José Vieira, Ricardo Gigante, Ana Horta, Isabel Teixeira de Sousa, Nuno Medeiros, Viana Baptista, Teresa Ribeiro, Rico Sequeira, João Ribeiro, José Manuel Man... Comissariou a Bienal do Mediterrâneo, Dubrovnik (Croácia), em 1999.