O meu ingresso no jornalismo
foi, afinal, opção por maneira diferente de “fazer política” – aos poucos,
distanciando-me de teses que, antes, me tinham sido caras, cada vez mais
me ia afincando aos valores democráticos. Os textos da minha lavra
norteavam-se, nesse período, pela leitura das coisas que as circunstâncias
me davam, sem me preocupar com o que a generalidade das pessoas fingia
pensar. Desafiava o “politicamente correto”, não tinha pejo em dizer
abertamente a todos o que pensava. Estava em contracorrente. Sabia-o. E
não me assustava com isso.
Era “vício” que me vinha de trás. Nunca fui
estalinista: conhecia bem as teses de Trotsky, embora com elas não me
identificasse, o que de algum modo me resguardou de acusações feitas.
Considerava que Trotsky tivera razão ao assumir a crítica a Estaline,
ainda que entendesse que a sua análise do estalinismo poderia e deveria
ser mais incisiva – na minha opinião, o estalinismo não fora apenas uma
deriva burocrática do marxismo. Nada teve a ver com o marxismo, como o
entendiam a pretendida “democracia proletária” advogada por Rosa
Luxemburgo ou mesmo por António Gramsci. Estrategicamente defendendo o
estalinismo, Mao Tse-tung objetivamente repudiou-o: a essência camponesa
do maoísmo, que se aproximava mais do histórico pensamento dos clássicos
da cultura chinesa do que do marxismo, levou-o a objetivamente confrontar
o estalinismo, com o qual de resto tivera graves desentendimentos. Em
suma, o maoísmo fora razão para de todo me afastar do estalinismo.
Curiosamente, Francisco Martins Rodrigues (o “camarada Campos” dos seus
tempos do PCP, quando foi um dos participantes da célebre fuga do Forte de
Peniche que o PC passou a omitir) seria levado, no fim do seu percurso, a
aproximar-se das teses de Trotsky, embora disso não tivesse consciência.
A cuidadosa leitura dos teóricos marxistas foi
calçadeira que me empurrou o pé para o sapato democrático e os
“reformadores” seriam a porta por onde entrei na causa da democracia que
ainda crismava de “burguesa”. A defesa dos interesses dos trabalhadores,
marcante do sindicalismo, chamou-me para os arraiais do sindicalismo
democrático: a liberdade, que o seu pluralismo pressupunha, teria que
necessariamente ser bandeira. A evidência das conclusões a que chegava não
se coadunava com o “politicamente correto”, não perseguia interesses
pessoais, como prova a continuidade dos pseudónimos com que então
assinava, caso de Afonso Manta. De resto, o vivo conhecimento de míticas
figuras vindas, é certo que de outiva (via emissões em português da Rádio
Tirana), do imaginário colhido da vivência maoísta, como os “heróis” da
brasileira guerrilha de Araguaia (João Amazonas e Diogo Arruda, líderes do
Partido Comunista do Brasil que conheci na Lisboa nos anos 70), por
completo estraçalhou as ilusões que ainda tinha. Apenas não conheci
pessoalmente Alípio de Freitas, pelo que perduraram algum tempo as ideias
feitas da saga das Ligas Camponeses brasileiras.
A rotura com a política ativa e militante, assumida ao
longo dos anos 70, devolveu-me entretanto às lides literárias. Voltei a
escrever, a publicar, a ler muito, a ter uma intervenção cultural – factos
que se conjugaram com a atividade jornalística. Muito contribuíram para
isso as relações com editores – como o Rafael Nunes, o Bento Vintém e o
Manuel Geraldo. As ligações com o Vintém vinham dos anos 70. Depois da
nossa prisão, o Bento fora para Itália onde se empregou na editora Einaudi
e aí promoveu o Comité Marxista Leninista de Portugal (vulgo, “O
Bolchevista” e “Proletário Vermelho”). Em Milão, relacionou-se com o
revolucionarimo europeu (por exemplo, na casa de Petra Kraus, onde o filho
de Vintém aprendera a jogar pingue-pongue com o célebre “terrorista”
“Carlos”). De regresso a Portugal depois de abril de 74, fundou a livraria
Outubro, em Alvalade, e a editora Pentaedro. Colaborei com elas. Na
Pentaedro publiquei livros e a Dúlia foi sua responsável editorial.
Manuel Geraldo foi amizade dos anos 80. Embora
militante do PCP, algo que nos distanciava, era um democrata esclarecido.
Ativista da Casa do Alentejo, responsável pela sua revista (onde passei a
inserir textos), foi o editor de “Margem” que publicou as minhas “Memórias
de Paisagem”, livro de poemas. Por intermédio dele, tornei-me muito amigo
do diretor da Casa do Alentejo e editor do “Almanaque Alentejano”, o Luís
Jordão. Anti-cunhalista convicto, grande parte das minhas amizades
gravitavam todavia na órbita do PC. “Não têm lepra”, defendia eu. E eles
sempre respeitaram os meus pontos de vista.
Neste ambiente, aderi, enquanto “renovador”, à Aliança
Democrática - reunida em volta de Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da
Costa (dirigente fundamental do CDS) e Gonçalo Ribeiro Teles - e ingressei
como redator num semanário que tinha por objetivo apoiar essa coligação
política – o “Dez de Junho”. Nele tive por companheiros, entre outros, o
João Salvado, o Santos Jorge e o Luís Filipe Sarmento que, mais tarde, me
surpreenderia enquanto escritor. Ativista da AD, fui para o terreno de
campanha numa região que bem conhecia - toda a zona a sul do Tejo. Era
área difícil, de forte predominância do PC. Recordo a agitação no distrito
de Portalegre, onde me tornei amigo de Chico Moura, de Francisco Luís
Caldeira e de Malato Correia, colaborei com Casqueiro e reencontrei um bom
amigo dos anos 60, o Nicolau Saião (pseudónimo de Francisco Garção), então
responsável pela Casa José Régio. Saião poetava e pintava e em muito
contribuiu para que regressasse às lides literárias de que me tinha
distanciado.
O regressado ativismo político deu-me experiências de
que não me orgulho e passei a repudiar quando tomei consciência dos seus
desaconselháveis efeitos. Por exemplo: certa noite de campanha, em 1979,
cheguei a Alter Pedroso (no Alto Alentejo) para acompanhar sessão de
esclarecimentos na Casa do Povo, que estava quase vazia. “Onde estão as
pessoas?”, indaguei. Esclareceram-me que a taberna estava cheia de gente.
Perguntei quem tinha dinheiro e quanto estavam dispostos a gastar, entrei
na taberna e ofereci uma “rodada” geral de vinho tinto. Depois, outra e
outra. Vendo que as gentes ficavam animadas, convidei-as a acompanhar-me
até à Casa do Povo, onde a sessão se fez.
Ingressei no Ministério dos Transportes e Comunicações,
para onde fui acidentalmente empurrado pelo Ângelo Correia: fora
jornalista parlamentar durante uns meses (altura em que Medeiros Ferreira
me convenceu a aderir aos “reformadores”) e Ângelo, depois Ministro do
Governo da Aliança Democrática, convidou-me para assessorar o Ministro
Viana Batista. Vim a perceber que Ângelo Correia queria ter aí uma
“antena” e um “informador”, o que taxativamente recusei. Nessa altura,
como “reformador”, estava na órbita da AD. Com um posto no Ministério,
passei a colaborar nas campanhas da coligação, onde de resto participava o
Fonseca Bastos. Francisco Sá Carneiro, por razões que desconheço, gostava
do meu trabalho, mas insistia com ele: “Doutor, deve ser um militante do
seu partido a acompanhá-lo. Eu não sou social-democrata”. Respondia-me: “É
em si que tenho confiança”.
Encalhei na campanha eleitoral à Presidência da
República do general Soares Carneiro, candidato da AD e tímida figura que
pouco tinha a ver com a imagem que dele fizeram. O primeiro contacto que
com ele tive foi em Pombal: fui obrigado a fugir dos seus gestos
automáticos no almoço aí havido. Estendia a mão e cumprimentava: “muito
prazer, general Soares Carneiro”. Três vezes lhe apertei a mão e, por fim,
esgueirei-me para longe do seu círculo para evitar novamente o
cumprimentar. À força de acompanhar Sá Carneiro, acabei por dele me
aproximar com uma ficha de inscrição no PSD: “doutor, assine a minha
matrícula no seu partido. Sinto-me mal por o acompanhar sem dele ser
militante”. Foi assim que, em 1979, ingressei no PSD. Embora me rotulem
como social-democrata “histórico”, não o sou. Nunca com ele tive contactos
antes do 25 de abril: fora um dos que recusei avistar-me com o deputado da
chamada “ala liberal”, quando este se encontrou com presos políticos do
Forte de Peniche.
Formara-se o novo Governo da Aliança Democrática
(segundo Executivo de Sá Carneiro), fundira-se o Ministério dos
Transportes e o da Habitação, sob a égide de Viana Batista, e passei de
assessor a adjunto do Ministro. Mudei de gabinete, da Rua da Prata para a
Praça do Comércio. Foi o cabo dos trabalhos! Como estava no Gabinete do
Ministro e era seu adjunto, passaram a tratar-me por “doutor”, coisa que
me incomodou. Tive que explicar aos funcionários: “Por favor, não me
tratem por doutor, porque não o sou”. Pior a emenda que o soneto - no dia
seguinte, passaram a chamar-me “engenheiro”. Voltei a explicar-lhes: “Não
me chamem engenheiro, que também o não sou”. Por exclusão de partes,
concluíram que seria arquiteto. Disse “basta”. “Já percebi. Como sou
Adjunto do Ministro, precisam de me dar algum título… Pois bem, como nunca
fui tropa, podem chamar-me por major”. Anos mais tarde, quando ia ao
Ministério da Habitação, Obras Públicas e Transportes ainda me tratavam
por “senhor major”.
A equipa do Ministério era coesa. Tinha a confiança do
Ministro e dos Secretários de Estado, principalmente de Miguel Anacoreta
Correia, Silva Domingos e Abílio Rodrigues. O Chefe de Gabinete do
Ministro, Lopo de Carvalho, formava um seguríssimo tandem comigo. O elo
mais fraco deste conjunto, o Duarte Lima (então secretário do Ministro),
foi afastado: funcionava como “testa de ferro” de Ângelo Correia – com a
minha recusa, Ângelo “deitara-lhe a fateixa”, aproveitando-se ele para
“amarinhar” no seio do PSD: primeiro atraído para adjunto de Ângelo
Correia, depois atirado para deputado “laranja” e seu líder parlamentar.
Ainda hoje o lembro, como secretário de Viana Batista, a servilmente
ajudar o Ministro a vestir a gabardina.
Nos primeiros tempos no Ministério, Duarte Lima e eu
fomos amigos. Devo-lhe até um especial favor: o meu pai, maestro e
pianista, estava sem trabalho. Duarte Lima conseguiu colocá-lo a tocar
piano no restaurante de Fernando Barata à estação ferroviária do Rossio. O
que levou à queda de Duarte Lima no Ministério de Viana Batista foi a
perda de confiança por parte do Ministro. Não era que fosse difícil lidar
com Viana Batista: dava-me “carta-branca”, ouvia-me. Recordo que, num dos
momentos difíceis que vivemos, a greve dos maquinistas da CP, Lopo de
Carvalho entrou no meu gabinete e entregou-me um texto com o que o
Ministro pretendia ler, ao fim dessa tarde, perante os écrans da RTP: “É
um enorme erro”, disse-me. Lendo o texto, concordei. “É preciso alertar o
Ministro”, preveni. “Mas quem será capaz de lhe dizer isso?”. “Se o
engenheiro não é capaz de o fazer, vou eu”, avancei para o Gabinete do
Ministro e declarei-lhe: “Parece que o senhor Ministro pretende fazer
estas declarações na televisão. É um disparate!”. Viana Batista mediu-me
de alto abaixo e apontou-me a porta do seu Gabinete: “Rua!”. Mas, quando
partiu para a televisão, procurou-me: “O que é que propõe que eu diga na
RTP?”. Expliquei-lhe o meu ponto de vista. “Acompanhe-me até ao Lumiar.
Vamos conversando no automóvel”. No caminho, fui o industriando sobre a
melhor atitude a tomar. Situações como esta deram-me alguma fama como
expert da propaganda.
O último dia de campanha de Soares Carneiro ocorreu a 4
de dezembro (de 1980) no distrito de Setúbal, devendo acabar à noite na
Praça do Bocage. Foi uma jornada difícil, as provocações e confrontos a se
sucederem, como aconteceu em Almada, de onde tivemos de fugir. A deputada
pelo círculo, Helena Roseta, deveria nos acompanhar mas, contrária à
candidatura, não compareceu. A meio da tarde, houve intervalo na campanha
para reunião no Hotel Penta, em Lisboa, na qual Sá Carneiro foi incisivo e
deixou recado, dirigindo-se em especial a Roseta e Lucas Pires: “Depois
das eleições, ajustaremos contas com os que estão a sabotar a campanha”.
Finda a reunião, regressámos a Setúbal, onde jantámos, e Sá Carneiro
dirigiu-se ao aeroporto de onde partia o voo da TAP para o Porto, onde
discursaria no comício de encerramento da campanha.
Jantávamos num restaurante em Setúbal, enquanto nos
preparámos para o comício da noite. Enquanto conversava, olhei para o
exterior e vi Nuno Gonçalves e António Tânger aos murros no teto do seu
automóvel: “É mais uma provocação, de certeza”, deduzi e corri em seu
socorro. Quando lá cheguei, estavam lavados em lágrimas: “Acabámos de ser
informados via rádio. O avião de Sá Carneiro caiu e ele morreu”. Era
necessário avisar de imediato o general. A chorar, dirigi-me para o
restaurante, abrindo alas por entre elementos da Associação de Ex-Comandos
– “um comando não chora”, repreenderam-me. “General”, disse eu, “Sá
Carneiro morreu. O avião caiu. Acabámos de receber a notícia”. “Com uma
história dessas não se brinca”, admoesto. A seu lado, o seu mandatário,
Carlos Macedo, foi chamado de urgência ao telefone. Regressou também de
lágrimas nos olhos: “Infelizmente, é verdade. Acabam de me comunicar pelo
telefone. Sá Carneiro morreu”.
Silêncio pesado. O que fazer? Decidiu-se manter o
comício e anunciar à multidão a tragédia, encaminhando-nos depois para a
residência oficial do Primeiro-Ministro, em S. Bento, para reunião com
Freitas do Amaral e os altos comandos da AD. Seguíamos para o comício,
chegou telefonema da Roseta: não começássemos sem ela ter chegado. O seu
comportamento revoltou-me. Comentei para os que me rodeavam: “durante o
dia, enquanto andámos a levar porrada, borrifou-se para a campanha. Agora,
oportunisticamente, quer mostrar as suas lágrimas em público e resolve
aparecer”. Quando chegou ao palco montado na Praça do Bocage, abraçou-me e
lamentou-se: “Grande perda!”. Virei-lhe as costas: “não falo a traidores”.
Cortámos relações. Fora minha diretora no “Jornal Novo”, eramos amigos,
acabava ali o companheirismo.
Quando acabou o comício feito quase às escuras em sinal
de luto, discursos muito curtos, rumámos nos automóveis a ´grande
velocidade para Lisboa, com os batedores da Polícia de Trânsito a abrirem
caminho. Atravessámos a ponte 25 de abril desrespeitando as regras e
chegámos a S. Bento. O palacete estava invadido de gente, entre ela o meu
amigo Carlos Amorim. Recebi de imediato instruções de Freitas do Amaral e
de Ângelo Correia: “Segues para a sede de campanha, na Avenida da
República, e anuncias que não se tratou de um atentado, que foi um
acidente. Às pessoas que te perguntarem, respondes que nos juntamos amanhã
no Mosteiro dos Jerónimos para rezar pelos nossos mortos”. Ao contrário do
que nos fora dito esse tarde, não fora só Sá Carneiro que morrera: tinham
sido todos quantos se transportavam no Cessna, onde não estava previsto
que Sá Carneiro viajasse – ele comprara bilhete na TAP.
Não estranhei as instruções. Conhecia demasiado bem o
avião e o piloto Albuquerque para ter dúvidas quanto à viabilidade de um
acidente. Duas noites antes, estivera no comício de Soares Carneiro/Sá
Carneiro em Faro e, quando soube da falta de lugares no Cessna que se
deslocara para nos transportar, dirigimo-nos ao aeroporto da capital
algarvia (Mário David e eu) para tentar resolver o assunto – Albuquerque,
diante de três cervejas já bebidas, contou-nos que houvera dificuldades
para descolar de Lisboa, que o avião não pegava, etc. À boa maneira dos
pilotos regressados de Angola, não se importava em violar regras… Ouvindo
isto, renunciei ao meu lugar no avião e preferi regressar a Lisboa no
automóvel dos seguranças - foi a chamada “noite dos OVNI”: noticiou-se
terem sido vistos em vários pontos de Portugal. No alto da Serra do
Caldeirão, deparámos com uma luz intensa surgida do nada e o motor do
automóvel foi-se abaixo. Nunca percebi o que se passou. À chegada à sede
de campanha, por volta das quatro da madrugada, estavam a nela entrar
alguns dos transportados no Cessna. Também tivera dificuldades para
levantar voo.
A noite da tragédia foi difícil: a sede da candidatura
foi atacada e apedrejada pelo MRPP. Tive, de à pressa, de montar barricada
de defesa, chefiá-la e, com a ajuda da polícia, rechaçar os atacantes. Não
pus em causa as indicações recebidas: corriam rumores de que se preparava
uma “caça às bruxas”, inculpando os eanistas, os socialistas e comunistas
de responsáveis pelo possível atentado que vitimou Sá Carneiro e Amaro da
Costa; Lisboa era um barril de pólvora que qualquer fagulha faria
explodir. Indignei-me tão só que não houvesse coragem para assumir
responsabilidades sobre a autoria de quem mandara avisar que a situação
não resultava de um atentado.
Foi decidido inquirir-se as causas da queda do Cessna:
abriram-se dois inquéritos, um técnico e outro policial. O técnico
correria no âmbito do Ministério da Habitação, Obras Públicas e
Transportes, de que eu era adjunto; o policial, no quadro do Ministério da
Justiça e da Reforma Administrativa, de Menéres Pimentel, onde Dúlia
coadjuvava. Acordou-se que, concluídos os relatórios, eles seriam
divulgados ao mesmo tempo. Enquanto decorriam os inquéritos, reforçou-se a
convicção de que fora um acidente que esteve ma origem da queda do avião,
tese acerrimamente contrariada por Augusto Cid, António Penaguião e
aqueles a quem eu chamava “viúvos de Sá Carneiro”.
As justificações técnicas pareciam plausíveis e, demais
sabia eu, Augusto Cid era parente de Viana Batista que, a dado momento,
nos revelou que Cid lhe sugerira calar-se em troca de dinheiro. Não tenho
nada que suporte esta afirmação e até admito que Cid tenha feito tal
proposta para verificar a consistência das convicções do Ministro. Meneres
Pimentel roeu, entretanto, a corda: o relatório policial não foi revelado
ao mesmo tempo que o relatório técnico e Viana Batista ficou,
contrariamente ao acordado, exposto sozinho aos ataques recebidos. Quando
o relatório foi divulgado, chamei ao meu Gabinete o Rebordão, diretor
adjunto de “O Diabo”, e entreguei-lho em mão, sem me passar pela mente o
que se preparava. Os ataques disparados pareciam sem consistência e
enfermavam de suspeitas que os punham em causa. Anos mais tarde, uma
confissão (feita já extemporaneamente, portanto sem consequências legais)
terá confirmado que houve mesmo atentado. Segundo se revela nesse
depoimento, e sendo ele verdadeiro – visaria Amaro da Costa e as
investigações por este mandadas fazer, enquanto Ministro da Defesa, a
negociatas com armamentos cometidas no âmbito das guerras coloniais –
terão de ficar envolvidos o insuspeito Penaguião e um sector da
extremíssima direita. Haverá muita coisa a explicar como, por exemplo: a
razão por que foi publicada a carta de Mário Soares desaconselharia o voto
em Ramalho Eanes que deveria ser divulgada no dia seguinte ao da morte de
Sá Carneiro e para a qual eu deveria estar preparado para ajudar a ser
conhecida em tempo de reflexão – indicações de Ângelo Correia.
Com o falecimento de Sá Carneiro, sucederam-se os
problemas da sua sucessão na liderança do Governo. Naturalmente, apoiei
Pinto Balsemão e, em consequência, a ala mais democrática do PSD à qual se
opunham Freitas do Amaral e as “viúvas”, assumidos como absolutos e únicos
“sá-carneiristas”. Fiquei desconfiado da real posição de António Capucho
quando, numa reunião, tentou cativar-me, havendo já indícios de que
procurava gerar um corrente que lhe fosse favorável. No interim, o
Secretário de Estado para a Comunicação Social, José Alfaia, decidiu
encerrar a agência ANOP e, em seu lugar, fazer surgir a “Notícias de
Portugal”, alicerçada na iniciativa privada. Fui dos que não enxergavam
viabilidades de sobrevivência da agência noticiosa sem o apoio do Estado.
Surgiu poderosa oposição à extinção da ANOP, liderada sobretudo por Jaime
Antunes. Responsável pela secção da Comunicação da TESIRESD, aliei-me com
os socioprofissionais (objetivamente a direita do PSD) contra a política
de Alfaia e comprometi-me com esse movimento, tendo foros de escândalo
surgir na bancada da Imprensa na Assembleia da República com adesivo na
boca, em protesto público: um adjunto do Governo em protesto contra o
Governo! Decidi apresentar a minha demissão a Viana Batista. Porquê,
perguntou-me. Que estava contra o encerramento da ANOP, não podia aceitar
entraves para as atitudes que deveria tomar. Viana Batista refutou as
minhas razões: “Sou Ministro deste Governo e, não é segredo para ninguém,
há muitas coisas de que desacordo e a que me oponho”.
Mantive-me como adjunto até à queda do Governo, em
1983. Estava o Executivo já de malas aviadas, o Ministro quis colocar-me
na Rodoviária Nacional. “Na Rodoviária, por que carga de água? Nem sei
conduzir…”. Viana Batista sorriu-se: “É hábito colocar, em bons lugares, o
pessoal dos Ministérios, quando estes terminam”. Recusei. “Estava numa
empresa privada antes de vir para o Ministério. Sabia o que me aconteceria
quando deixasse este lugar no Ministério. Não quero nada em troca. Vou à
procura de trabalho”. Assim fiz. Estive durante três dias desempregado,
uma vez que, em “A Tarde”, a diretora, Margarida Borges de Carvalho, me
quis de volta. Fui chefe da sua secção de “Política”.
A luta de tendências dentro do PSD estava em ebulição,
com tremendas incidências no seio da TESIRESD, que se reunia na Fundação
Oliveira Martins – embora afirmando-se como uma tendência sindical e
para-sindical constituída por sociais-democratas, não estava subordinada
ao partido, fundamentando-se no princípio, estrenuamente defendido por
Nascimento Rodrigues, de que os partidos políticos não deveriam intervir
nos sindicatos. Os mais destacados sindicalistas sociais-democratas
militavam e eram dirigentes da TESIRESD - como Miguel Pacheco, António
Cabecinha, Jorge Paz Rodrigues, José Veludo, Carlos Cardoso e Cardoso
Martins -, sendo alguns deles deputados do PSD e parte deles, em
simultâneo, dirigentes da UGT. A Tendência fracionava-se por força das
pressões sobre: por um lado, a direita partidária centrada nos
socioprofissionais; por outro, a tentação socialista imperante na segunda
central sindical e liderada por Torres Couto para a desmembrar, acenando
com a promessa de cargos na central.
O último plenário da TESIRESD: a fação proponente de um
entendimento com os socialistas, liderada por Rui Oliveira e Costa e José
Veludo ia impor o seu pondo de vista, frente ao desacordo da maioria -
Oliveira e Costa (que alcunhei de “Cambalhotas”), erguendo os braços:
“Nada numa manga, nada na outra, já ganhámos”. Era a rotura consumada.
Importava tentar reanimar a TESIRESD, que por completo se rasgaria no seu
Congresso da Foz do Arelho. Tentaríamos juntar forças restantes, reerguer
as bandeiras e reestruturá-la. A última tentativa foi no Congresso de
Entre-os-Rios. Era, porém, remar contra a corrente. A TESIRESD estava já
morta, sem força, abandonada por muitos dos seus ideólogos, a própria
Fundação Oliveira Martins fechara portas. Escasseavam os meios para a
reerguer.
Na secção da Comunicação da defunta TESIRESD, Leonor Sá
Machado acertara comigo irmos, em conjunto com os socioprofissionais,
convidar Mota Pinto, dissidente do PSD e fundador da ASDI, para participar
em jornadas que iríamos promover. Com a incapacidade demonstrada por Pinto
Balsemão para se impor no partido, fazia-se necessário encontrar alguém
que fizesse ouvir a sua voz e tocasse a rebate. Na nossa opinião, Mota
Pinto seria essa figura, se regressasse ao partido. Estava retirado para
Coimbra: decidimos ajudar a catapultá-lo para a liderança do PSD. Mota
Pinto aceitou. No estado em que estava o partido era relativamente fácil
navegar entre águas. Com Américo Thomati, animámos a corrente
“motapintista” no PSD, encontrando fortes apoios em Calvão da Silva e Dias
Loureiro. No Congresso de Braga a corrente estava consolidada e
avançava-se para o que foi denominado de Bloco Central, coligação PS-PSD
no Governo.
O chefe de redação de “A Tarde”, Duarte de Figueiredo,
conversou com Proença de Carvalho e concluiu que seria de interesse
alertar a opinião pública contra os perigos de uma travagem do processo de
desmoronamento da Reforma Agrária. Já se conseguira a entrega de reservas
e de pequenas explorações de terras, o regresso de rendeiros e feitores,
já se estancara a marcha para norte da dita reforma (Rio Maior era a
fronteira) e o descalabro da economia agrícola: “É necessário mostrar que
a agitação no Alentejo”. “Mas, neste momento, não há nada no Alentejo”.
“Desenrasca-te…”, respondeu-me.
Era contra as “notícias por medida”. Mas assumi o
encargo. Com o motorista, zarpei para o Alentejo. Chegando a Ferreira, um
amigo local conhecido por “Preto”, chamou-me: “Os seareiros de Aldeia de
Ruins vão ocupar a UCP (Unidade Coletiva de Produção, espécie de kolkhoze)
Otelo Saraiva de Carvalho”. Temos notícia, concluí, rumei para Aldeia de
Ruins, falei com os seareiros e acompanhei-os na invasão da UCP. A Guarda
Republicana apareceu e deu ultimato para se retirarem. Senti-me mal. De
certo modo contribuíra para atirar os seareiros para esta aventura. Por
isso, resolvi responder ao tenente Ferro (que conhecia de Beja): “enquanto
houver aqui um ocupante, estarei cá”. Ninguém arredou pé. Quando os outros
jornalistas chegaram, tive a certeza de que a ocupação da UCP resultara.
Cumprira a missão que me fora pedida. Mas estava cansado desse tipo de
jornalismo.
Amigo meu, ex-deputado do PSD, decidiu criar um jornal
regional no Montijo, “A ponte”. Convidou-me para chefe de redação.
Aceitei: deslocava-me uma vez por semana ao Montijo, “A ponte” era
semanário. Chefiei um jornal de Turismo (“Turisjornal”), tornei-me redator
de uma revista especializada de pesca (“Pesca e Navegação”) propriedade de
um amigo meu, onde conheci um destacado ex-jornalista de Luanda, Saúl
Queirós. Foi então que conheci Luís Missionário na Comissão de Regulação
do Comércio de Bacalhau que me encomendou um trabalho sobre os antigos
“canastros” bacalhoeiros e a sua organização. Escrevi o livro (“A
Companhia dos Braçais do Bacalhau”), lançado a bordo do navio-hospital
“Gil Eanes”, apresentado pelo Secretário de Estado Carlos Pimenta.
Já não tinha a frescura da juventude, as pernas
mostravam-se incapazes para conseguir acompanhar a concorrência dos jovens
que chegavam ao jornalismo. Estava a necessitar da relativa segurança de
um contrato coletivo: começava a ser tempo de procurar um emprego público.
A oportunidade chegou: Calvão da Silva, Secretário de
Estado, pediu que lhe indicasse um nome do PSD para ser Diretor de
Informação da RDP. Inevitavelmente, indiquei João Marques de Almeida.
Estavam a ser criadas as condições para o meu ingresso na RDP.
Nuno Rebocho
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