Encafuado na Cela F, no rés-do-chão do edifício anexo
às instalações da PIDE, à Rua do Heroísmo no Porto, desde logo me apercebi
da dimensão do rombo que a repressão policial nos dera. Como me apercebi
de que houvera infiltração de um informador (um “bufo”) e de quem ele era:
estavam presas caras que eu desconhecia, os documentos apreendidos eram
demasiado elucidativos, a atitude colaborante de alguns dos detidos fazia
que a polícia política não encontrasse dificuldades na desmontagem da
organização. A linha de comportamento a ter na PIDE não fora claramente
por nós definida. Apenas recusávamos adotar as medidas defensivas então
tomadas pela estrutura do PC cunhalista: a política de “não falar” nos
interrogatórios estava rechaçada e por motivos mais que óbvios – alguns
dos heroicos e exemplares comportamentos propalados, acabaram por se
revelar enganosa propaganda para não “desmoralizar militantes”, vide o
caso de Canais Rocha. Por vezes, levada ao extremo essa atitude, tinha
efeitos negativos – o que acontecera com José Rolim fora chocante: punido
por cortar a língua durante os interrogatórios na PIDE… para não falar!
Fazia-se tábua rasa de que os esbirros tinham métodos para sacar
declarações: à tortura, somava-se a chantagem e o pentotal (o temível
“soro da verdade”, que já fora utilizado). Fundamental, defendíamos nós:
que os segredos organizativos fossem eficazmente resguardados, que ninguém
fosse apanhado pela repressão em consequência direta das nossas detenções
- que se ludibriasse com falsas declarações os torcionários. Era a linha
defensiva anarquista e dos primeiros tempos do PC que devia presidir ao
nosso comportamento na PIDE. Nada estava firmemente estabelecido. Os
factos acabariam por dar alguma razão neste particular aos partidários de
Álvaro Cunhal.
A margem de manobra que nos era dada ficava por demais
limitada pelo estendal da documentação apreendida. Ela falava por si.
Apenas me restava assumir responsabilidades, mesmo do que as não tinha, na
esperança de que, com isso, estancasse o fio das investigações. Nessa
linha, “confessei” pertencer a cinco organizações ao mesmo tempo para
“justificar” o conhecimento de factos que constavam nos documentos
capturados. Os interrogatórios policiais transformaram-se num jogo do gato
e do rato, procurando driblar os interrogadores.
Tinha necessidade de contactar os companheiros, o que
era difícil na minha situação. Estava sem cinto, sem relógio, sem papel,
sem caneta, apreendidos pelos carcereiros. Ia identificando pelos passos
cada um dos detidos na escada da polícia, apercebendo-me da sua
localização. A minha mulher, a Dúlia, por exemplo, estava no mesmo
edifício de que eu, mas no piso de cima: tinha em comum a casa onde, uma
vez por semana, se banhava - ficava noutro edifício. Pus a imaginação a
funcionar: com toalhas de papel higiénico, espinhas de peixe e o café do
pequeno-almoço fiz material de escrita, que embrulhei em prata dos maços
de cigarros. Tentei encontrar um recanto da casa de banho que passasse
despercebido aos carcereiros – começou por ser uma perna oca das cadeiras,
acabou por ser o ralo do chuveiro. Funcionou, após experiências goradas. O
isolamento a que a PIDE me condenara minorou.
Como Dúlia estava em adiantado estado de gravidez,
consegui convencer a polícia que nos permitisse um “tête-a-tête”.
Tinha um pretexto: precisava de combinar com ela um contacto com a minha
sogra a fim de tratar de toda a documentação para um casamento oficial. De
resto, essa era, desde o princípio, a minha intenção. Para os
pides, o facto de a assumir
seria algo que eles, hipocritamente, não deveriam contrariar. O meu
encontro com Dúlia, apesar de estreitamente vigiada pelos polícias,
permitiu que lhe sussurrasse formas de contacto através da casa de banho.
E tudo esteve bem até que, por ser excessiva a carga de recados escritos e
deixados no chuveiro, acumulados dentro de um pedaço de chumbo da bisnaga
de dentífrico, rebentasse devido à pressão da água, precisamente quando um
agente policial utilizava o duche. Houve ranger de dentes…
A polícia apercebia-se de que, através de batidas nas
paredes, eu procurava comunicar com os reclusos nas celas contíguas.
Tentou apanhar-me, mas quase sempre detetei-lhes o faro: por exemplo,
quando na cela G introduziram um agente que me quis puxar pela
língua...Foi por demais óbvia a intenção para que eu me deixasse iludir.
Os processos de comunicação possível eram, aliás, um modo de passar o
tempo, tal como a desesperada procura de possibilidades de fuga: não me
podia esquecer que da PIDE do Porto fugiram Silva Marques (então,
funcionário do PC que fora preso) e Palma Inácio (contumaz resistente, que
comandou também o assalto ao Banco de Portugal na Figueira da Foz).
Portanto, estava feita a prova de que a delegação da PIDE no Porto (da
qual eu dizia que se entrava pela Rua do Heroísmo e se saía pelo cemitério
do Prado do Repouso) não fora construída à prova de fugas. Os meus olhos
vasculhavam e procuravam adivinhar as evasões possíveis.
Os interrogatórios policiais também “matavam o tempo”
da reclusão: os pides não
desarmavam. Vieram agentes de Lisboa – o inspetor Cunha, fumando o seu
charuto, divertiu-se quando o temível Tinoco me interrogou. Deslocara-se
propositadamente da capital: “como ´que você soube…?”. Não me recordo do
assunto, mas lembro-me da minha resposta: “foi aquele lá de cima!”.
“Aquele lá de cima, mas quem?”, insistia Tinoco. “Aquele lá de cima. Se
você acredita que ele faz filhos, eu acredito que ele faz revoluções”.
Tinoco ficou furioso. Cunha riu.
Impossibilitado de ler (não tinha acesso a jornais nem
a livros), recuperei práticas que há meses perdera. Mentalmente,
arquitetei alguns poemas. Recordo “Cela F” – começava assim:
“A porta da cela tem um nome e uma letra.
Há dentro da cela um púcaro e uma mesa.
Dentro da cela há um homem que passeia.
Está escrito no púcaro PIDE e tristeza”
E o poema, em duas estrofes, acabava: “um guerrilheiro
canta A Internacional”.
As diligências da PIDE deixavam-me entender que ela
procurava alguma coisa mais, não sabia eu o quê. Soube que a secreta
espanhola viera igualmente ao Porto, para tentar catar na documentação
capturada indícios que lhe interessassem. Um dia, no corredor de acesso á
sala de interrogatórios, colocaram-me encostado a uma parede, entre pides
e emigrantes clandestinos detidos, para que alguém me identificasse como
“Afonso Vieira Dias”… Nunca ocultara que fosse tratado com esse nome. Mas
a diligência permitiu que reconhecesse militantes detetados pela polícia
política que, embora “queimados”, tinham escapado à captura. Cansado da
tortura do sono (perdi a noção exata dos dias e noites a que a ela me
submeteram), resolvi agredir o agente Fins – “remédio santo”, pancadaria
em resposta até ao knock out,
atiraram-me para a enfermaria e acabaram o interrogatório. Percebi que
devia ter tido essa reação há mais tempo… Escapei assim à “estátua”,
tortura em que o preso era impedido de se sentar.
Começara o processo do meu casamento oficial. Dúlia
saíra da prisão para ir ter o nosso filho, cujo nome já fora por nós
escolhido – Ernesto, em homenagem a Guevara, e Bento, invocando o mítico
Bento Gonçalves (ex-secretário geral do PCP) e o amigo Bento Vintém,
detido antes de mim. Nos seus primeiros anos, Dúlia e eu tratávamo-lo por
Che Bento, nome que irritava os carcereiros. Nasceu em Vila Nova de Gaia,
em casa de uma amiga. Quisemos o matrimónio a 1 de maio, tanto pelo
significado da data como por ser aniversário do dia em que nos
conhecêramos. A PIDE opôs-se: formalizámos o casamento para o dia
seguinte, 2 de maio, cerimónia numa sala da polícia política, a presença
dos pais de Dúlia e os meus. Ernesto nasceria semanas depois. A mulher
regressou à cadeia e nela esperou o julgamento no Tribunal de S. João
Novo…
Encerrados os interrogatórios, fui reunido aos demais
detidos do meu processo numa camarata situada ao fundo das instalações
pidescas. Entretanto, durante a sua saída da cadeia e numa ida ao mercado
do Bulhão, Dúlia protestara veementemente contra a violência policial
cometida sobre uma vendedeira: presa em consequência, as vendedeiras
juntaram-se em solidariedade e os jornais noticiaram o incidente - a
“senhora engenheira” (assim a trataram) protestara contra a barbaridade,
surgira movimento contestatário. Nunca cheguei a ler a local: a censura da
cadeia, socorrendo-se da tesoura, suprimiu-a do jornal. Apenas dela tive
conhecimento oralmente, numa visita que recebi.
Com a minha prisão, as relações com o meu pai pareciam
melhorar. Enganei-me. Sem ter consciência do significado do lugar onde me
encontrava, numa das suas visitas que me fez ao Porto, meu pai saiu-se com
a afirmação desajustada ao ambiente, refletindo a mentalidade que eu
considerava “burguesa” mas correspondia ao que ele então pensava (tempos
mais tarde, dar-lhe-ia razão, ainda que a considerasse inapropriada para
as circunstâncias): “vocês, comunistas, falam muito da liberdade, mas
querem acabar com a liberdade dos outros”. Exaltei-me, recusei receber
mais visitas suas - não mais me procurou na cadeia.
Durante alguns poucos dias pude ter o meu filho junto a
mim na camarata comum com os outros detidos. Nela fomos lendo as notícias
do que acontecia no mundo: com o fim dos interrogatórios, chegavam
revistas espanholas e francesas que narravam os acontecimentos do maio de
1968 em Paris, entre nós apaixonadamente debatidos. O maio gaulês era uma
verdadeira revolução cultural e fazia prova de que estava esgotada a
superestrutura moral e cultural daquele século vinte, tal como então a
conhecíamos. A juventude já não a suportava, varria o
gaullismo mas não exterminava os
“gauleiter”. As forças do
bloqueio, fossem elas quais fossem, não poderiam estancar as forças
emergentes: a força mental mostrava ser superior à força das armas. Era
certo que a revolução do maio francês nada tinha a ver diretamente com a
chinesa “revolução cultural” – esta, compreendi-o mais tarde, poderia
evitar a deriva burocrática que precipitara o estalinismo e que, de algum
modo, Liu Shao-chi representava. Eram as “massas” em movimento contra o
“aparelho”, evitando essa espécie de “Termidor burocrático” que começava a
desenhar-se na China Popular – invocando Staline, Mao afogava Staline no
que resumíamos numa frase: “a China vai de Mao a Piao”. Mas, nesse
momento, tais questões eram por mim somente intuídas.
E chegaram as notícias da queda da cadeira de Salazar e
da sua substituição, na chefia do governo corporativista, por Marcelo
Caetano. Abriam-se janelas de esperança de que alguma coisa iria mudar.
Caetano, porém, já fazia uma grave cedência à partida: consentia na farsa
da manutenção de Salazar como primeiro-ministro, alimentada por Américo
Thomaz e pelo gangue dos “irredutíveis salazaristas”. Mas as esperanças
que irrompiam adormeciam os “velhos” republicanos, entre os quais estava o
então meu advogado, figura oposicionista, grada nos meios nortenhos.
Aparentemente, cabia-lhe razão: constava que Salazar, nos últimos dias do
seu consulado, tencionara transferir para o Tarrafal de Cabo Verde os
presos políticos portugueses, pelo menos era esse o boato que chegara à
cadeia. O “marcelismo” desfazia essa ameaça. As ilusões de um episódico
abrandamento do regime e as teses dos advogados vingaram, afastando a
ideia de uma afirmação de fé militante no julgamento que se preparava -
decisão coletiva dos detidos, tomada num conciliábulo havido entre nós.
Estaríamos de corpo presente na sala do Tribunal, abdicando de toda e
qualquer declaração: seríamos “bem-comportados”. Com esta decisão, fomos
seis a julgamento. Fui condenado a três anos e meio de prisão maior com
“medidas de segurança”, Pedroso da Mota a dois anos, Lamego a ano e meio,
os restantes (Dúlia incluída) a penas suspensas. De acordo com as
acusações de que era alvo, em condições normais da ditadura seria
condenado a oito anos de reclusão, mais “medidas”: o regime aparentava
“benignidade”… Nestas condições, Pedroso da Mota cumpriu pena no Porto,
Lamego e eu fomos trasladados para o Forte de Peniche. Simão, que estivera
detido e connosco fora a julgamento, teve um desastre de automóvel que o
vitimou – fora à fronteira de Espanha transportar um foragido à polícia e,
no regresso, sofreu um despiste. Foi um fogoso companheiro.
Em Peniche não havia lugares vagos nas celas individuas
(Pavilhão B), Lamego e eu ficámos inicialmente instalados na mesma sala do
Pavilhão A: treze em cada uma. Éramos os únicos sem ligação ao PC,
tratados como “amigos”. Nas salas do segundo piso, estavam alguns presos
nos processos da FAP, mas nunca nos cruzámos com eles. Com fama de
“trotskista”, todos inicialmente me hostilizaram. Levou tempo a
desfazer-me desse labéu. Recordo um dos reclusos com quem tive relações
mais estreitas – Baridó. Vidreiro da Marinha Grande, participara no
levantamento daquela vila em 1934, na criação do seu “soviete”, estivera
desterrado no campo prisional do Tarrafal, em Cabo Verde: significava, no
meu imaginário, os momentos áureos do PC.
Pouco depois, quando houve vaga, fui transferido para
as celas individuais e perdi os contactos com Lamego. Convivia agora com
dirigentes do partido cunhalista: António Dias Lourenço, Domingos
Abrantes, Blanqui Teixeira, Ilídio Esteves, José Magro, Guilherme José de
Carvalho, Pires Jorge, Joaquim Fogaça, Rogério de Carvalho, Veiga de
Oliveira… No pátio do recreio, acompanhava Fogaça (que passava os seus
longos anos de cadeia com minuciosos estudos sobre a História de
Portugal), para dele ouvir o historial partidário. Pertencera ao
Secretariado do Partido, com Bento Gonçalves e José de Sousa, presos em
1935 durante um encontro clandestino diante da Maternidade Alfredo da
Costa, em Lisboa. O “camarada Ramiro” (seu pseudónimo) estivera no
Tarrafal, comprometido com a chamada “política nova”, de regresso a
Portugal liderou o partido na fase do “desvio de direita” do princípio dos
anos 50, voltara a ser preso e fora expulso do PC, acusado de
homossexualidade. Era casado com outro mito do partido: Cândida Ventura.
Fogaça narrava-me a história que vivera. Chegado à
cela, passava ao papel o que escutara com o cuidado de codificar o escrito
para que os guardas prisionais não percebessem o que estava escrito.
Recordo que “pai” era o PC, “queb” (de quebrado) significava partido. E
assim por diante. As narrativas de Fogaça inquietavam o “comité Carrilho”,
célula organizada do PC dentro do Forte de Peniche – destacaram Rogério de
Carvalho (que tinha fama de KGB) para vigiar as nossas conversas. Expulso
da organização partidária, “Ramiro” devia-lhe (apesar) obediência – regras
da “disciplina”. No entanto, continuou a sua explanação comigo que
cuidadosamente eu anotava. Mais tarde, quando me juntei a Francisco
Martins Rodrigues, passei-lhe toda essa resenha, depois discutida no
coletivo dos presos e confiada a Fernando Rosas (foi a base para a
História do PC por si redigida).
Estava de fascina à cozinha do piso do terceiro piso,
quando (não me recordam os motivos) fui castigado pelos guardas a seis
dias de cela disciplinar. Encerrado na cela, sem direito a recreio e
visitas, ao terceiro dia, quase à hora do almoço, ouvi pela janela de
grades o Francisco Martins Rodrigues gritar “ninguém come, ninguém come”.
Eram os presos da FAP em greve da fome. Fiz o que devia, sem sequer saber
os porquês do protesto: se presos estavam em greve de fome, deveria ser
solidário. Contrariamente a nós, os acusados de serem do PC não aderiram à
greve: para mim, eram “rachados”. Ouvidos os gritos que chegavam do 2º
piso, e dado que era o preso mais novo, cheio de força e no meio da
correnteza de celas, passei a servir de altifalante – passaram a ribombar
os nossos gritos na vila de Peniche. Ameaçaram-me: ou comia ou era
entubado.
A situação complicava-se. Estava de castigo quando a
greve se iniciara, não conhecia as suas razões, não sabia o que fora
combinado, se acaso o fora. Agravantes: o preso da cela ao lado, Ângelo
Veloso (“funcionário” do PC) furava a greve, não me podia com ele
aconselhar. Na outra cela, ficava o Filipe Viegas Aleixo, da LUAR (detido
quando integrava um comando que, em Trás-os-Montes, se internava com armas
para iniciar a luta armada em Portugal; fora, com Henrique Galvão, um dos
assaltantes do paquete “Santa Maria”), que era muito velho e surdo –
trabalhara a vigiar uma betoneira. Batendo na parede, em código, tentei
saber o que estava combinado. Escusado! Quando acabei de bater,
respondeu-me Viegas do mesmo modo: “bate mais alto, que não oiço”. Comecei
a esmurrar a parede, o resultado foi o mesmo.
Sem instruções, resolvi resistir. Fui o primeiro a ser
atacado pela brigada prisional, nem sequer tinha o exemplo de outros por
que me orientasse. Era o que tinha maior fôlego (uma das consequências de
ser então o prisioneiro mais novo em todo o Forte), impunha-se para os
guardas que fosse rapidamente silenciado. Com os colchões do leito a
barricarem-me a porta da cela, peguei no recipiente de barro para
conservar água e atirei-o à cabeça dos guardas, seguindo-se o tampo do
balde dos dejetos noturnos. Sem mais “munições” para arremessar, a cela
foi invadida por três guardas, a cabeça projetada contra os gradões da
janela, derrubado pelo guarda Moreira que, repetidamente, me bateu com a
cabeça no chão e rasgou-me as calças. Fazia gestos para não me deixar
entubar, convencido de que o tubo de soro me seria introduzido pela boca –
não fazia a mínima ideia de como se faria o entubamento. Quando os guardas
e o médico Viegas, que colaborou na operação, saíram de cima de mim, corri
para o balde, levei os dedos à goela e vomitei.
Em consequência da greve da fome, os carcereiros
separaram os presos: os grevistas, considerados “mal comportados”,
“terroristas”, foram transferidos para o terceiro andar; os “bem
comportados” (que tratámos por “revisas”) para o segundo. Ficámos assim no
terceiro piso o Sebastião Capilé, o Viegas Aleixo, o Francisco Martins
Rodrigues, o Pulido Valente (quando regressou do Hospital Prisional da
Caxias), Saúl Nunes, ainda o Alexandre Alhinho de Oliveira, o Fernando
Brederode Santos (presos em Lisboa, dias antes de mim), o Lucas e o
Henrique Neto (do MPLA), o Saldanha Sanches (que rompera com o PC), os
irmãos d’Espiney (Rui, Sérgio e Zé Luís), o Domingos Arouca (FRELIMO),
Vítor Santos e Orlando Santos (democratas), o Manuel Serra (católico de
esquerda, que participara no falhado golpe militar de Beja) e eu. A nós se
juntaram depois o Fernando Rosas (MRPP), os presos da ARCO (Ação
Revolucionária Comunista), Ferreira Neto e Joaquim Pinto de Andrade. Pinto
de Andrade, então Presidente Honorário do MPLA, que, a seu pedido, fora
transferido para o nosso piso, afirmaria à sua mulher, Vitória, na
primeira visita que dela recebeu: “agora sei o que é uma cadeia para
homens…”.
Denunciei as sevícias (de que fora alvo) na primeira
visita que recebi da Dúlia. A visita foi-me interrompida pelo guarda e
suspensas todas as visitas que dela, quase todas as semanas, recebia no
parlatório, sentado atrás de uma placa de vidro. Dúlia enviou-me a mãe:
fiz-lhe, em voz alta, a mesma denúncia. Repetiram-se as consequências:
visita interrompida. Veio o advogado, então o Sebastião Lima Rego. Igual
denúncia, igual reação. Escrevi para casa: “Agora, enviem o papagaio”! Os
protestos choviam sobre a Direção dos Serviços Prisionais, no Ministério
do Interior, a Amnistia Internacional chegou a propor-me para “preso
político do ano”, o que não aceitei erradamente convencido de que a
Amnistia Internacional era emanação da CIA – em meu lugar, foi escolhido
um preso do PC, António Graça.
O regime teve que ceder e as suspensões foram
levantadas. Para nós, presos que nos pretendíamos coerentes, Peniche –
mais do que um lugar de castigo – era um local de luta, a nossa
“universidade”: não daríamos aos carcereiros nada que os congratulasse
como “vitória”. Recusávamos pedir a liberdade condicional quando
entrávamos em situação das chamadas “medidas de segurança”, celebrávamos
as datas revolucionárias (melhor roupa e alimentação no 18 de janeiro,
data da insurreição da Marinha Grande; no início da insurreição em Angola;
no primeiro de maio; na data da revolução cubana; 1 de outubro, data da
libertação da China; na da revolução russa, 7 de novembro), acabámos por
recusar mesmo as episódicas transferências para o Hospital Prisional de
Caxias no suposto que sugerir doença (que obrigasse a internamento)
significaria evidenciar que a repressão tivera êxito. Recusámos também ter
mais de três refeições de bacalhau por semana – os Serviços Prisionais
tinham um acordo com Henrique Tenreiro (fascista e armador de
bacalhoeiros) pelo que era raro o dia em que não houvesse “fiel amigo” na
ementa. Decidimos pôr cobro à praga: foi numa altura em que quase bastava
formular uma reivindicação para os guardas cederem.
Todas as questões eram discutidas em coletivo dos
encarcerados e decididas por maioria. Os que professavam o
marxismo-leninismo reuniam-se uma vez por semana para o balanço crítico
das notícias e, também semanalmente, discutíamos questões de doutrina
política e história do movimento operário – conseguíramos introduzir
clandestinamente na prisão textos de Karl Marx, Lenine, Staline e Mao
Tse-tung. A leitura ocupava a outra parte do tempo – podíamos ter na cela
sete livros ao mesmo tempo e podíamos receber publicações da biblioteca
prisional (evitávamos referenciar qualquer leitura para evitar que a
censura introduzisse mais títulos no
índex por reconhecimento de algum título do agrado dos presos).
Eram-nos vedadas estatísticas, o que me obrigou a matricular em Geografia,
cujo curso implicava o seu estudo. Saldanha Sanches abastecia-me de livros
de Teoria Económica e de História, uma vez que o seu curso permitia
recebê-los.
O culto dos conflitos com os guardas prisionais
transformara-se num desporto:
estávamos em luta contra o regime prisional, procurando melhorá-lo
diariamente em nosso favor; os “revisas” eram com ele complacentes,
teríamos que ser radicais. Durante anos, o pêcêpista
“Avante” denunciara as arbitrariedades do “fascista Poupa”, o mais
execrado e facínora dos carcereiros. Exigimos que fosse afastado do
convívio com os presos e, sempre, que ele entrava ao serviço no pavilhão
prisional, quase havia uma insurreição. Os presos do PC passaram a
tratá-lo por “amigo Poupa” e a com ele ostensivamente confraternizarem.
O regime prisional melhorou de facto muito no último
ano em que estive em Peniche, o que não evitou que fosse o penúltimo preso
castigado a sete dias de “segredo”, assim chamávamos a cela de isolamento
(foi a minha última greve da fome) – Saldanha Sanches foi o derradeiro que
lá esteve. Uma vez, os do PC protestaram quando introduziram candeeiros
nas nossas celas. Tiveram resposta do diretor da cadeia: “sabíamos que, se
os terroristas não os recebessem, protestariam. Com vocês é diferente.
Aceitam tudo”. Foi o seu epitáfio.
A melhoria do regime prisional, à custa de mais quatro
greves da fome em que participei e os cunhalistas sempre furaram, foi
acompanhada pela renovação dos guardas e pelo regime de celas com porta
aberta, passando nós a por elas transitar. O seu chefe, Ramos, participara
nos pelotões de fuzilamento dos franquistas na Guerra Civil de Espanha
(integrava os reforços que Salazar enviara a seu amigo Francisco Franco) e
foi substituído. O diretor, reconhecidamente mentecapto, foi substituído
primeiro pelo médico Viegas e depois por um técnico prisional. Viegas
começara como dentista e subiu a clínico quando o anterior hipócrates, das
Caldas da Rainha (fazia o serviço na Cadeia duas vezes por semana), a isso
renunciou. Viegas tinha doze dioptrias e, às apalpadelas, tratava da saúde
bocal dos prisioneiros: certa feita, Saldanha Sanches desmaiou na cadeira
do dentista, quando este lhe espetou a agulha da seringa na gengiva;
quanto a mim, arrancou-me alguns dentes e sempre recusei a implantação de
postiços. “Sou uma vítima do fascismo” e abria a boca para o mostrar.
Quando se fez médico da cadeia, as suas “boutades” ficaram famosas. Dizia ter remédio para tudo com o
receituário que recolhia num livro espanhol que tinha em casa, o
Cervantes. Resultado, um dia quase enlouqueceu o economato: o Francisco
Martins Rodrigues sofria de ureia no sangue, os guardas percorreram todas
as vendagens até Torres Vedras para infrutiferamente acharem os “plátanos”
que ele receitara. Viegas não sabia que “plátano” era o nome que os
espanhóis davam à banana.
Em novembro de 1972, vivia eu o meu quinto ano de
prisão (recordo que fui condenado a três anos e meio de prisão maior, mais
medidas de segurança que, se o regime quisesse, poderiam ser verdadeira
“prisão perpétua”), quando Marcelo Caetano resolveu abolir essas medidas –
demagogicamente, o “marcelismo” queria aparentar “rosto humano”. Com essa
decisão, os pides tiveram que me
libertar: apenas de quinze em quinze dias seria forçado a, por lei, me
apresentar às instalações da PIDE e não podia ausentar-me de Lisboa. O
guarda Moreira – que me tinha espancado na primeira greve de fome – estava
nesse dia na chefia do pavilhão, chamou-me, anunciou que eu iria ser
libertado, pediu-me desculpa pelo havido e sugeriu-me que deixaria passar
nas minhas malas tudo o que eu quisesse, era ele mesmo me faria a revista.
Pensei maduramente no convite… e aceitei. Resultou: consegui passar para o
exterior diversos documentos. A firmeza dos prisioneiros acaba sempre por
despertar o respeito dos carcereiros.
Quando ia já no portão de saída do Forte de Peniche,
quiseram que pagasse 2$50 de portagem. Recusei: “não paguei para ser
preso, não pagarei para ser libertado. Façam como quiserem”. E voltei para
a cela. Já noite fechada, foram-me buscar e colocaram-me em liberdade
vigiada. Dúlia e José Alecrim (o ex-“camarada Rosário” do PCP), já
exasperados, esperavam-me para me levarem para Lisboa, onde fiquei
acoitado na casa do eng. Acácio Barradas, ex-militante da FAP. Fomos
soltos treze com o fim das medidas de segurança. Apenas dois se recusaram
a pagar a portagem de Peniche. Fui um deles.
Nuno Rebocho
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