Carreira Bom era um contista interessante, ainda
que de sua autoria apenas sejam (mal) conhecidos dois pequenos livros de
textinhos, o primeiro dos quais, “Subgente”, apadrinhado por Urbano
Tavares Rodrigues, recebeu prefácio que, para sua desgraça, foi da minha
lavra. Se a memória me não falha, corria o ano de 1964.
O João chegara a Lisboa, vindo do Alentejo – era
de Aldeia Nova de S. Bento -, no dealbar da década de 60 do passado
século. O curso comercial que frequentara pouco mais lhe dava do que para
ser escriturário. Subgente era a que habitava o escritório onde
trabalhava, cujo ambiente -abafado, mesquinho e “pequenino” no Portugal
salazarista e padreca desse tempo - sufocava a juventude que, como a
nossa, aspirava vendavais e tormentas. Quase pela mesma altura, talvez um
ou dois anos antes, arribara eu a Lisboa vindo de Moçambique, inquieto com
o arrastar bafiento que me impunham.
Naturalmente, éramos atraídos pelas labaredas que
irrompiam das tertúlias, tanto mais que começávamos a escrevinhar – ele,
nas saudosas páginas no “Juvenil” do República, vigiada por Costa Dias, eu
no outro “Juvenil”, o do “Diário de Lisboa”, sob a batuta de Mário
Castrim. Para a leitaria “Passo”, no Rossio lisboeta, convergimos num
convívio que, em breve, se estenderia aos serões de Natália Correia: a sua
casa, num terceiro andar por cima de uma leitaria, fez-se também animada
tertúlia onde o inesperado tantas vezes assentava arraiais. Lembro uma
noite em que Natália nos arrastou para Alfama, até ao fado cantado à porta
fechada, clandestino e subversivo. Às tantas, um “marialva” intrometeu-se,
o que a irritou: “António - assim se chamava seu primo -, vá bater naquele
homem!”. E. António, franzino mas empertigadote, repuxou os colarinhos e
avançou: “Vou já, Natália. Vou já”. Acabou-se numa cena de pancadaria no
Chafariz d’el Rei.
Dórdio Guimarães, o inevitável, espadeirava,
imitado por Tereshkova. Ary dos Santos (José Carlos) saltou para uma mesa
e alapou-se aos cabelos de um dos desafiadores. Ao cabo de uns safanões,
arranhões e nódoas negras, tudo se converteu em convívio de inimigos
reconciliados emborcando alguns copos, o
tintol da praxe. Era o insólito
que divertia as noites de Natália, por vezes arriscando circunstâncias
perigosas como, quando sobressaltada por um esquisito ruído na porta de
acesso às escadas de sua casa, a poeta foi ver o que se passava – era um
“pide” que ali escutava. Não foi de modas: à vassourada, expulsou o
safardana degraus abaixo, até à rua.
Para Carreira Bom e para mim, os serões de Natália
eram um excelente momento. Sem eira, nem beira, aproveitávamos para nos
refastelar nos sofás, petiscar e esconjurar fomes acumuladas, e para
dormitar um pouco. Respirávamos fundo, atenções em riste, quanto nas
reuniões se discutia, esbarrondava e muito. A tertúlia de Natália e o
“Passo” serviam de escolas de aprendizado, completadas pela safra colhida
nas passagens por livrarias onde, mancomunado com o Hugo Beja e graças a
uma muito larga gabardina que eu adquirira por baixíssimo preço na “roupa
americana”, rapinava nas estantes.
Do “Passo” chegavam as
académicas praxes: aconteceu
certo dia que, combinado com o Armando Ventura Ferreira, o Manel da
Fonseca nos convidou para irmos a uma conferência na Margem Sul, no
Ginásio da Baixa da Banheira. Já no
cacilheiro, viagens pagas pelo Manel, fomos alertados que o orador
seria eu. Entrei em pânico – era a primeira vez que falaria em público,
não tinha tema preparado, nem podia voltar atrás: não tinha dinheiro e o
Tejo era largo demais para o atravessar a nado. A sorte é que o Carreira
Bom vinha connosco, divertido com a tramoia.
Tive uma ideia - ele era alentejano. Alentejo
seria, pois, o tema de que falaria. Combinei com ele: olharia para a sua
cara, por ela me orientaria, acenar-me-ia se o que despejasse me saísse
bem. A desgraça foi que, após o jantar oferecido, dissertei sobre a
miséria, a fome, o desemprego habituais na região e o Carreira Bom (o
Joãozinho como lhe chamávamos) bem conhecia. Sentado ao meu lado, o
fascista presidente da Junta de Freguesia bufava, a Guarda Republicana
estava inquieta e no final, se não nos esgueirássemos, aproveitando a
confusão criada, seríamos presos.
De resto, chatear os burgueses (expressão da época) era desporto que usávamos
praticar, o bom do Bom e eu: aos fins de tarde, simulando ser
manos, íamos a um conhecido café
na lisboeta Praça de Londres e, na sua esplanada, abancávamos. Incumbia-me
de desempenhar o papel de bêbado, depois de bochechar alguma horrível
aguardente que me desse o bafo, e ele a de condoído irmão que,
desesperadamente, me tentava debelar. Insultava os demais frequentadores
ali sentados, o Joãozinho “acalmava-me” com mais uma
sandwich, eu insistia, ele
“acalmava-me” (“o que o pai dirá da cena que estás a fazer?”), escândalo
instalado até que algum empregado de mesa nos expulsasse, obviamente sem
pagar a conta.
Eram “divertidas” estas incursões que, todavia,
ficaram perturbadas por gentileza do Urbano Tavares Rodrigues ao Carreira
Bom. O autor de “Bastardos do Sol”
condoera-se com a falta de relacionamentos do aprendiz de intelectual na
Lisboa de então e decidiu dar-lhe um cartão-de-visita, apresentando-o como
seu filho natural. Com esse
“abre-te sésamo”, o mancebo frequentava a casa de certas senhoras que, à
pala de demonstrarem literatices, semeavam favores e prazeres. Era eu um
dos poucos que, sob segredo, conhecia tamanha safadeza que o desviou por
algum tempo.
Certo dia, o Carreira trocou a carreira de
escriturário pela de candidato ao jornalismo. Admitido no velho “Século”,
entrou - cheio de sonhos - a estagiar na sua redação, tendo que arrostar o
praxismo. Contou-me depois o Fernando Madureira que, certa feita, os
veteranos combinaram pilhéria – fazerem-lhe chegar pelo telefone a falsa
notícia de um incêndio florestal nalgum ponto do país. Recebida a
indicação por um alegado informador, o chefe de redação (ao corrente do
que se urdira) deu-lhe a ordem de avançar com o texto – “então, de que
está à espera?”. Felicidade: pela vez primeira, Carreira Bom trocava a
tarefa de colar telexes por rabiscar matéria própria. Começou a dedilhar a
máquina de escrever, as chamadas de telefone choviam, o estagiário
atendia, “informadores” davam conta de mais incêndios florestais noutros
pontos do país, Carreira Bom suava e escrevia, andava numa roda-viva,
escrevia, escrevia, Portugal ardia numa antecipação do que anos mais tarde
se tornaria infeliz constante estival. Resultado, o caixote do lixo
encheu-se com laudas e laudas de falsas labaredas fabricadas com a
brincadeira arquitetada.
Apenas reencontrei o Carreira Bom quando,
suprimidas as “medidas de segurança”, fui libertado dos anos de cadeia a
que o Estado Novo me condenara. Estávamos em princípios de 1973. Perdera o
rasto do meu companheiro de juventude com quem aventuras tantas convivi.
Foi em casa de Ricardo França Jardim, nas reuniões da redação do jornal
cor-de-rosa, o “Comércio do Funchal”, que com ele deparei – reuniões de
discussões e planificações bravas, acaloradas, frenéticas, quase
clandestinas, de um extraordinário grupo: Jardim, Ançã Regala, Joaquim
Leal, Luís Angélica, José Manuel Barroso, José Freire Antunes, Silva
Marques (que, loureado pelo seu passado de funcionário clandestino do
Partido Comunista e por uma corajosa fuga das prisões da PIDE no Porto,
escrevia desde Paris), Serafim Lobato, Vitor Catanho, Marques de Almeida,
Luís Feronha, Carreira Bom, Ferro Rodrigues (mais tarde dirigente do PS e
Presidente da Assembleia da República), Carlos Marinheiro e eu
acompanhávamos Vicente Jorge Silva e Liberato Fernandes que, desde o
Funchal, apontavam o norte. Tornara-me especialista em driblar o terrível
lápis azul da censura, recorrendo a metáforas e perífrases, jogando com a
estupidez dos censores e socorrendo-me de um pseudónimo que teve alguma
fama – L.H. Afonso Manta. O subterfúgio resultara da junção de nomes de
marginais “pescados” dos jornais e que o tipógrafo tresleu – substituiu
Marta por Manta e Manta ficou.
Na prática, a redação
funchalina, ali reunida em
Benfica até altas horas da noite, era um “saco de gatos”. Juntava ultra
esquerdistas como eu (que os restantes procuravam afanosamente situar),
militantes da URML, as fações do MRPP e do PCP-ml, e os teoricamente sem
partido. Fundamentalmente, insuflado pelos ideais saídos do maio de 68, o
CF incubou todo o movimento de abril de 1974, mesmo nos seus excessos e na
resistência a tais excessos. A sua verdadeira história está por escrever.
Ainda.
Percebendo o que se movimentava em jogo de
sombras, uma noite fingi dormitar, enquanto as tendências invocavam uma
falsa anuência minha (espécie de guru com passado prisional) para defender
as respetivas teses, o que serviu para depois os desorientar e conseguir
vingar o meu ponto de vista –
habilidades que aprendera na cadeia.
A censura, por motivo da sua tacanhez, era um
“tigre de papel” com que eu aprendera a lidar na prisão de Peniche. Era
ignara – por exemplo, recordo que naquela prisão política nos foi proibido
um livro sobre a conquista de Lisboa aos mouros, que Blanqui Teixeira
queria ler, por “falar de guerras”, ou um manual sobre cimento armado
encomendado por Veiga de Oliveira, um engenheiro civil, porque… o cimento
era armado! A incultura dos censores facilitava brincadeiras como estas:
se nos era interditado escrever sobre Lenine, citávamos o autor de
“Materialismo e Empiriocriticismo”; se nos era vedado referir Trotzki,
referíamos Bronstein; para citar Marx, aludíamos ao teórico do
materialismo dialético. Com tais bengalas, conseguimos que minha mulher, Dúlia Mais, sob o pseudónimo
de Luísa Pimentel, publicasse uma reportagem sobre a greve da fábrica Tomé
Feteira, em Vieira de Leiria – êxito não repetido porque o Boletim da
Associação de Estudantes de Economia de Lisboa o reproduziu, “traduzindo”
as metáforas para que todos as entendessem!
De qualquer modo, havia que tornear a censura e a
imprensa regional era o seu elo mais fraco – surgiram assim o “Jornal do
Centro” e o “Margem Sul” que, a par do “Jornal do Fundão”, do “Notícias da
Amadora” e outros, se tornaram centros da resistência ao Regime. Com
grande parte deles colaborei, à semelhança dos que intentavam suplantar a
vigilância do “lápis azul”. Era o que chamávamos “atacar a cidade pelos
campos”, evocando a máxima maoísta.
A verdade é que o “Comércio do Funchal”, semanário
religiosamente lido pela juventude cada vez mais contestatária do Portugal
marcelista, foi o berço de muita coisa que aconteceu após o golpe militar
de 25 de abril, de muitos dos seus desvarios transportados pela força da
juventude, pelo irrealismo dos posicionamentos ideológicos e por quanto o
imobilismo corporativista despertara nas amplas camadas por ele atiradas
para o radicalismo. Mas foi, também, uma escola para exercício de
comportamentos, com os seus defeitos e virtudes.
Pouco depois do golpe de Estado, Carreira Bom
ingressou no “Expresso”, de Pinto Balsemão/Marcelo Rebelo de Sousa: as
suas crónicas na Revista do semanário, escritas sob pseudónimo mas
reconhecíveis pelo estilo, rapidamente ganharam celebridade, tornando-se
leitura obrigatória dos fins-de-semana. Carreira Bom estava na sua melhor
forma e fez-se um comentador mordaz dos acontecimentos, na esteira de um
Eça de “Uma Campanha Alegre”. Na altura, os seus textos, como os de Rebelo
de Sousa, foram excelsos trechos do jornalismo português.
Até que Carreira Bom entrou em choque com Pinto
Balsemão e foi despedido. Aconteceu depois do dono do semanário ser
Primeiro-Ministro. Não me recordo das causas do dissídio. A consequência
foi que, tendo que refazer o seu percurso, Carreira Bom criou empresas de
consultoria e assessoria e, com o Carlos Marinheiro e o José Mário Silva,
deu corpo ao projeto do Ciberdúvidas – nos primórdios da Internet entre
nós, surgia assim um programa sobre como escrever em português escorreito,
ultrapassando alguns extremos de Joaquim Lagoeiro e outros puristas.
Lembrou-se de me convidar para colaborar na aventura, o que fiz. Nasceu o
projeto que, anos volvidos, desembocaria no atual “Cuidado com a Língua”.
O arranque do Ciberdúvidas determinou o
falecimento de Carreira Bom. Morreu, como sempre viveu – pisando o risco
das conveniências. Sucumbiu quando, no seu escritório, exercitava amor com
uma parceira que nem era a mulher com quem casara. Não interessam
pormenores, a não ser que do facto resultou escândalo… Mas foi uma “morte
santa”.
Marinheiro e Zé Mário ainda tentaram fazer
sobreviver o projeto, ajudei no que pude e enquanto pude. Porém, outras
tarefas já se perfilavam e não podia delas me descartar. Tive pena.
Nuno Rebocho
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Nuno Rebocho - Nascido em 1945, em Queluz (Portugal), viveu em Moçambique desde os três meses de idade até 1962. Jornalista, poeta e andarilho – bastou-lhe ter estado preso por cinco anos na Cadeia do Forte de Peniche (por cinco anos, motivos políticos), para recusar ser animal sedentário. Viveu a imprensa regional (Notícias da Amadora, Jornal de Sintra, Aponte, A Nossa Terra, Jornal da Costa do Sol, Comércio do Funchal, entre outros), foi redactor da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, das revistas O Tempo e O Modo e Vida Mundial, em diferentes diários e semanários, e é chefe de redacção da Antena 2 da RDP. Colaborador de Acontece en Sorocaba (Brasil) e Liberal (Cabo Verde). Autor de “Breviário de João Crisóstomo”, “Uagudugu”, “Memórias de Paisagem”, “Invasão do Corpo”, “Manifesto (Pu)lítico”, “Santo Apollinaire, meu santo”, “A Nau da India”, “A Arte de Matar”, “Cantos Cantábricos”, “Poemas do Calendário”, “Manual de Boas Maneiras”, “A Arte das Putas” (poesia), “Estórias de Gente” (crónicas), “O 18 de Janeiro de 1934”, “A Frente Popular Antifascista em Portugal”, “A Companhia dos Braçais do Bacalhau” (investigação histórica), está representado em diversas antologias e colectâneas em Portugal, Espanha e Brasil. Tem colaborado em catálogos para exposições de artes plásticas: Ramón Catalan, Deolinda, Carlos Eirão, Alfredo Luz, Edgardo Xavier, João Alfaro, Maria José Vieira, Ricardo Gigante, Ana Horta, Isabel Teixeira de Sousa, Nuno Medeiros, Viana Baptista, Teresa Ribeiro, Rico Sequeira, João Ribeiro, José Manuel Man... Comissariou a Bienal do Mediterrâneo, Dubrovnik (Croácia), em 1999. |