Muito tarde me apercebi do vazio provocado pelas mortes de
familiares. Tinha eu oito anos quando minha mãe faleceu: um problema,
suponho que em consequência do parto de que nasci – má-formação cardíaca
obrigou minha mãe viesse a Portugal para tentar salvá-la, já que nada foi
possível na África do Sul. Nada a fazer: uma ambulância foi buscá-la a
casa, na Avenida D. Rodrigo da Cunha (a Alvalade) para levá-la de
emergência para o Hospital. Brincava na rua, a mãe chamou-me para se
despedir de mim quando a transportavam na maca. Assustei-me e fugi - a
imagem que dela conservo foi o derradeiro aceno longínquo. E invoco-a
quando o medo me atazana.
O avô paterno, Camilo, violinista e compositor, sucumbiu
tuberculoso em Lisboa, estava eu ausente em Moçambique. Criança ainda,
convivi com ele durante breve passagem por Portugal: guardo dele memória
reinadia e divertida, confirmada pelas referências que dele obtive.
Atirado para a falência pela censura salazarista (era empresário do teatro
Maria Vitória, no Parque Mayer, empenhou-se num custoso veau-de-ville,
proibido pela Ditadura em vésperas de estreia). Em consequência, para
suportar a casa, o pai (Artur) foi tocar para bordo dos paquetes – anos da
Grande Guerra.
Da avó Palmira restam imagens soltas, embora vincadas: faleceu
durante a minha ausência em Lourenço Marques. A avó materna, Dalila,
extraordinária mulher, acabou em Cascais. Deixara de ter notícias suas em
fins de 60, supunha-a morta quando soube que viera de Moçambique para
Lisboa. Viera na enxurrada dos “retornados” fugidos à vitória de Samora –
descobri-a num asilo em Arroios. Fui buscá-la e levei-a para minha casa,
em Alcabideche. Teve uma síncope, estava eu de serviço no jornal “A
Tarde”. Transportada de urgência para o hospital, faleceu poucas horas
depois.
Meu pai - pianista, maestro e compositor -, estive dele
próximo nos seus últimos anos, apesar do nosso difícil relacionamento. Foi
chocante assistir à sua decadência: uma vez, estava em sua casa, na
Reboleira, vi-o chegar-se ao piano para dedilhar um bolero que dedicara a
minha madrasta, Irene: as mãos não lhe obedeciam e as lágrimas
escorregavam-lhe pela cara. Perdoei-lhe os maus momentos, procurei
compreender os desentendimentos havidos, alguns deles graves. Nunca me
saiu da memória quando acorreu a manifestação em apoio a Pinheiro de
Azevedo, em 1976: contestada pelo PC, foi atacada à bomba. Ficou célebre o
seu apelo à calma – “é só fumaça!”. Dúlia e eu, quando tal vimos na
televisão, preparámo-nos para acorrer à Praça do Comércio. Meu pai
atirou-me: “ainda te hei-de ver com a cruz suástica às costas”. Anos mais
tarde, quando parti para trabalhar na Guarda, fui dele me despedir: “Vais
para a Guarda com essa idade?”. Expliquei-lhe: “Não é essa Guarda em que
está a pensar. Não é Guarda Republicana, é a Guarda cidade!”.
Estávamos finalmente amigos quando morreu, levado por
complicações de fígado. Senti-lhe a falta física, apesar de nunca me ter
visivelmente apoiado ao longo da vida. Por exemplo - quando quis
ensinar-me piano, batia-me sempre que me enganava nas notas. Detestei o
instrumento (se bem que sempre tenha sido melómano). Todavia, ensinou
devotadamente a neta – a minha filha Susana -, iniciando-a no piano. Nos
dias de hoje, sinto-me um pouco como o meu pai. Afinal, temos muito em
comum – na maneira de ser, nos nossos traços físicos, nos isolamentos.
Dói-me a sua falta.
O ambiente que se vivia em casa dos meus pais moldou-me. A
convivência com músicos, atores e cançonetistas predispôs-me para o mundo
artístico. O clima conspirativo na casa paterna moldava as noites. Lembro
que nos reuníamos em volta do aparelho de telefonia para escutar as
emissões em português (clandestinas) de Rádio Brazzaville e, mais tarde, a
Rádio Argel – Voz da Liberdade. Em Lourenço Marques, seguimos –
emocionados - o assalto de Henrique Galvão ao paquete “Santo Maria”. Na
Matola, com o petromax aceso e rádio de pilhas ligado, ouvíamos
atentamente as anunciadas esperanças de um mundo novo. Foram noites que me
prepararam para, em Lisboa, uma década depois, receber os noticiários da
Rádio Pequim e Rádio Tirana.
O caldo cultural em que mergulhei desde miúdo, os contributos
que os bons mestres que o acaso me propiciou, a roda de amigos e
conhecidos que ocupou o meu universo e as peripécias que os incidentes
acarretaram, foram as razões de uma vivência que (reconheço) tem sido
variegada e rica. Mas tenho a consciência de que apenas fui, e sou, a
resultante de linhas de força que as circunstâncias geraram. Delas não me
ufano: permitiram-me entender mentiras e mitos fabricados pelas demagogias
e propagandas que vestiram situações de que os acasos me fizeram
protagonista (será que o acaso não é, afinal, simples fator da lei das
probabilidades?).
Desde pequeno acumularam-se as razões que me empurraram para
um distanciamento da família. A parte materna e camponesa (fundamental
para o suporte da casa paterna) não era patina que abrilhantasse
genealogias – honrava apenas os ouropéis ideológicos que despontaram em
mim em alguns momentos. Da parte paterna fizeram o favor de me arredarem:
quando vim a Portugal na idade de oito anos (para o falecimento de minha
mãe), a avó Palmira Carrington quis que eu conhecesse tios e primos.
Levou-me à Figueira da Foz: com certa surpresa, descobri que tinham
posses, eram donos de bacalhoeiros. Receberam-nos pela porta dos
serviçais, a da cozinha. Mais tarde, percebi porquê: minha avó, que tocava
violoncelo (fatalidade da educação nas famílias desafogadas),
apaixonara-se e fugira com o músico que a instruía e com quem casou. Um
escândalo!: Nos princípios do século XX, na sociedade padreca existente em
Portugal, músico era pessoal menor que apenas servia para aliviar os
tempos de lazer dos abastados. Por isso, quando - depois das mudanças
políticas de 1974 – um dos meus primos Carrington, então militante do MDP,
foi nomeado presidente da Câmara de Coimbra e me escreveu a dar-se a
conhecer (eu aparentava pertencer às novas “fidalguias” ideológicas
emergentes na nova situação política), respondi-lhe que tanto era seu
primo antes como depois do 25 de abril - dispensava interesses familiares.
Tal não significa que não tenha orgulho da sua história.
Afinal, sou tataraneto de um dos matadores dos lentes de Coimbra no séc.
XIX - para escapar à repressão absolutista, fugiu para Inglaterra. Mais
tarde, foi um dos “desembarcados do Mindelo”. Combateu no cerco do Porto
e, como um dos comandantes do “rei libertador”, foi nomeado visconde de
Santo António (“foge vão que ainda te fazem barão”!). O amor à liberdade
estará na minha genética, o que por si só não me esquenta nem me
arrefenta. Cada pessoa vale por si mesma, por aquilo de que é capaz e
aquilo que faz, não pela sua parentela – por demais conheci quem
pretendesse ocultar a sua nulidade com os tafetás do parentesco, para
sucumbir a tal farisaísmo. Conheci um deputado do CDS, eleito por Aveiro,
que se dizia meu primo: bem sabia que ele o era, embora não exatamente da
maneira que ele o supunha: investiguei a história familiar, vasculhei
livros, papéis e memórias, ninguém ma ensinou. Não quero que meus filhos e
netos passem pelo mesmo. Conheçam a sua ascendência, fazendo depois dela o
que quiserem e de que forem capazes.
Não cuidei da evolução dos meus filhos, coisa que hoje me
penaliza: as circunstâncias da vida aparentemente o justificavam. E,
talvez erradamente, proibia-me de os condicionas, De facto, fui um pai
ausente. Tive a sorte de Dúlia (e a minha sogra Etelvina, extraordinária
mulher que sempre me acompanhou) de deles atentamente cuidarem. Cometi
largos erros, especialmente com o filho mais velho, Ernesto: castigando-o
de um deslize, estive sem lhe falar durante dois anos. O corte de relações
forçou a um distanciamento que tentáramos anular. Vejo entre nós quase que
a reprodução dos desentendimentos havidos entre mim e o meu pai (ainda que
por motivos bem diferentes; e, apesar da suspensão de relações, nunca lhe
faltaram os apoios possíveis).
Verifico que a descendência herdou grande parte do meu
tradicional menosprezo pelas ligações familiares. Sinto hoje a falta de um
arrimo, de uma âncora a que me amarre – coisas da velhice! Afinal, um
homem não é uma ilha (ainda que, por vezes se pressinta como tal). O meu
projetado regresso a Portugal visa, sobretudo, recuperar os elos
familiares perdidos ou adiados.
Procurei sempre nortear-me pela minha própria cabeça, cumprir
os valores que a cada momento tive por certos, abdicando de vantagens
pessoais que viessem em detrimento dos valores que defendia. Poder-se-á
afirmar que perdi oportunidades para “subir na vida”, mas disso não me
arrependo nem um milímetro. Uma noite, em reunião dos TSD (Trabalhadores
Sociais-Democratas), cuidando que me atingia, Celeste Chatillon, pediu a
palavra para desferir o ataque: “Há nesta sala uma pessoa a quem o partido
(o PSD) deve muito. É o Nuno Rebocho. Mas quero explicar-lhe porque nunca
o premiámos: sempre que pensávamos que ele estava de um lado, já ele
estava do outro”. Levantei-me, atravessei a sala e dei-lhe um abraço,
dizendo: “A senhora acaba de me fazer o maior elogio que, alguma vez, me
fizeram”. Do espanto dela, depreendi que a desgraçada senhora não
percebera nem a minha resposta nem o significado da sua própria afirmação.
Passando em revista as sete décadas que levo vividas, três
aspetos nelas predominaram: a atividade jornalística, o apaixonado
interesse pelas questões políticas e igual sedução pelos valores
culturais. Por vezes, confundiram-se estas componentes,
interpenetraram-se. Estiveram sempre presentes no meu modo de pensar e
sentir, levando-me a abominar os pontos de vista política que desprezavam
os culturais: apenas as conceções politiqueiras que menosprezam o humano,
desqualificam a cultura. É esta questão que distingue os políticos com
projeto dos demagogos, oportunistas e vendedores de ilusões.
Nos largos anos em que estive isolado em Cabo Verde tentei
encontrar companhia, para além das amizades muitas que ganhei – junto de
jornalistas, políticos e escritores. Relacionei-me com uma moça, Sandra:
uma relação difícil, à qual inicialmente ofereci resistência. A ela se
opunham distanciamentos que eu considerava insuperáveis – desde logo, a
idade (bastante mais nova do que eu: 40 anos). E também a língua (se bem
que hoje fale e leia fluentemente o crioulo), a cultura, a formação e a
família (conheço os seus pais e ela conhece a minha irmã e Dúlia). Enfim,
cumpri o meu dever: paguei-lhe um curso (é psicóloga) e abri-lhe caminho
para um emprego. Caraterísticas que todavia nunca consegui corrigir-lhe
(sobretudo, a sua foguense
teimosia e a falta de interesse pelas questões culturais), esfriaram o
relacionamento e fizeram-me desistir de sonhos que cheguei a acalentar.
Restou a amizade e o apoio, que lhes agradeço, em particular após a minha
doença. Fiz o que pude. Quando me ausentar para
Portugal terá instrumentos para, em melhores condições, resolver os seus
próprios problemas.
Sandra foi a minha última aventura de um percurso femeeiro,
talvez marcado pelos complexos que vieram da minha juventude, da
deformação nela havida e obrigou a intervenção cirúrgica. Vivi anos de
indefetível puritanismo, compensados com largos anos de desnorteamento
moral. Conservei, contudo, a amizade com as mulheres que passaram e
tiveram lugar na minha vida: foram importantes, cada qual à sua maneira.
Estou-lhes profundamente grato. Foram paixões momentâneas que, tão cedo
como bateram à porta, saíram pela janela mais próxima. Com duas exceções:
a de Lurdes Pelicano (importantíssima pelo que me deu de consciência moral
e de frontalidade, por quem estive realmente enamorado e enfrentei
momentos muito felizes) e a de Dúlia Maia, a grande paixão de minha vida,
a minha companheira, da qual infelizmente acabei por estar afastado longos
e longos anos, em nome de uma liberdade recíproca que se quis inteira.
A minha partida para Cabo Verde implicou que deixasse em
Portugal, para além dos apetrechos de pesca (com que me entretinha
principalmente aos fins de semana, sobretudo na captura de mariscos), as
veleidades em artes plásticas. Por influência de Hugo Beja e João Prates,
começara a escrevinhar catálogos para exposições: Ramón Catalán, Deolinda,
Carlos Eirão, Alfredo Luz, Edgardo Xavier, João Alfaro, Maria João Vieira,
Ricardo Gigante, Ana Horta, Isabel Teixeira de Sousa, Nuno Medeiros, Viana
Batista (para mim uma surpresa; enquanto Ministro, nunca o pressentira
pintor…) Teresa Ribeiro, Rico Sequeira… O interesse pelas artes plásticas
levou-me a ensaiar a pintura (sem outro sucesso do que as que resultaram
dos efeitos terapêuticos), a ser nomeado consultor da Fundação João Prates
e comissário da Bienal do Mediterrâneo em Dubrovnik (Croácia). A
deslocação de automóvel, com Dúlia, a Dubrovnik, percorrendo o sul da
Europa e a costa da Dalmácia, desde Veneza e Trieste, é uma das memórias
que guardo.
Para Cabo Verde, Cidade Velha (Património da Humanidade),
transportei a minha pinacoteca pessoal que ofereci à respetiva Câmara. Os
livros que recebi (e fui lendo) durante o meu refúgio cabo-verdiano (a que
chamo “exílio”), ofereci-os à Biblioteca Municipal de Ribeira Grande de
Santiago. Tive igualmente a oportunidade de participar, graças ao meu
amigo Mário Máximo, na Bienal das Culturas Lusófonas de Odivelas - a
primeira ainda durante a minha estada em Portugal, as três seguintes já
depois da minha deslocação para Cabo Verde. Acompanhei dois CINEPORT, o
primeiro em Lagos (onde, em colaboração com a Biblioteca lacobrigense,
organizei sessões de literatura lusófona. com Olinda Beja, Luís Carlos
Patraquim, Toni Tcheka, José Luís Hopffer e
Luís Cardoso).
Enfim, olhando pelo retrovisor, estarei cansado da viagem. Mas
respiro fundo. Sem disso me vangloriar, confesso: vivi. Agora, é tempo de
dar a vez aos mais jovens.
Nuno Rebocho
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Nuno Rebocho - Nascido em 1945, em Queluz (Portugal), viveu em Moçambique desde os três meses de idade até 1962. Jornalista, poeta e andarilho – bastou-lhe ter estado preso por cinco anos na Cadeia do Forte de Peniche (por cinco anos, motivos políticos), para recusar ser animal sedentário. Viveu a imprensa regional (Notícias da Amadora, Jornal de Sintra, Aponte, A Nossa Terra, Jornal da Costa do Sol, Comércio do Funchal, entre outros), foi redactor da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, das revistas O Tempo e O Modo e Vida Mundial, em diferentes diários e semanários, e é chefe de redacção da Antena 2 da RDP. Colaborador de Acontece en Sorocaba (Brasil) e Liberal (Cabo Verde). Autor de “Breviário de João Crisóstomo”, “Uagudugu”, “Memórias de Paisagem”, “Invasão do Corpo”, “Manifesto (Pu)lítico”, “Santo Apollinaire, meu santo”, “A Nau da India”, “A Arte de Matar”, “Cantos Cantábricos”, “Poemas do Calendário”, “Manual de Boas Maneiras”, “A Arte das Putas” (poesia), “Estórias de Gente” (crónicas), “O 18 de Janeiro de 1934”, “A Frente Popular Antifascista em Portugal”, “A Companhia dos Braçais do Bacalhau” (investigação histórica), está representado em diversas antologias e colectâneas em Portugal, Espanha e Brasil. Tem colaborado em catálogos para exposições de artes plásticas: Ramón Catalan, Deolinda, Carlos Eirão, Alfredo Luz, Edgardo Xavier, João Alfaro, Maria José Vieira, Ricardo Gigante, Ana Horta, Isabel Teixeira de Sousa, Nuno Medeiros, Viana Baptista, Teresa Ribeiro, Rico Sequeira, João Ribeiro, José Manuel Man... Comissariou a Bienal do Mediterrâneo, Dubrovnik (Croácia), em 1999. |