NUNO REBOCHO
A casa de Mário Elias

A casa de Mário Elias tinha compartimento único: a imobiliária de hoje apresentá-la-ia como “tê zero com quitchinete”. Sem casa de banho. Quem necessitasse, aconchegava-se na savana que florestava o isolamento. Uma bacia esmaltada, um balde com água, um pequeno arame suportado por dois varais onde se descobriam toalhas, acudiam à higiene mais primária. 

Era um barraco com oito metros de comprimento por cinco de largo. Mais coisa, menos coisa. Na lomba lisboeta que sovacava o Hospital de Santa Maria para o braço do Rego, alguns casebres dali adejavam sobre Entrecampos quando o século arrotava a meio do repasto e esperava a chegada de tijolos, do cimento e do betão que depois substituíram o madeirame e o caruncho. Por então, Lisboa ainda mostrava borbulhas a marcar-lhe o rosto: pequenos bairros de lata, como se dizia. Ali era a casa de Elias, a distância pouca de um espaço de tábuas rotas onde ciganos exibiam, a entradas pagas, cenas de sexo ao vivo e clandestino dentro da quieta melancolia de uma capital católica, apostólica e romana – sobretudo farisaica.

A casa de Elias tinha compartimento único: a imobiliária de hoje apresentá-la-ia como “tê zero com quitchinete”. Sem casa de banho. Quem necessitasse, aconchegava-se na savana que florestava o isolamento. Uma bacia esmaltada, um balde com água, um pequeno arame suportado por dois varais onde se descobriam toalhas, acudiam à higiene mais primária. Também no exterior, mas no outro flanco, debaixo de toldo, Elias arrumava cinzéis e buris, navalhas, a prensa e a mesita sobre a qual exorcizava xilogravuras e linóleos.

Baixo e entroncado, fardado de nódoas que bordavam a camisa encardida e as calças esgarçadas, Elias alimentava-se da arte – aquela que a veneta aprouvesse e quando, depois vendida na romagem por cafés e cervejarias. A pecúnia, quase bastante quanto as neves de Lisboa, seguia para o farnel, para um ou outro livro (poesia ou Poe), os cigarrinhos e garrafões de vinho tinto. Que de mais não necessitava quem não cortava cabelo nem rapava a barba: as exigências maiores vinham do papel para escrever, de lápis e esferográficas, de apetrechos para o labor à luz do sol. Porque a noite descobria-se no tacto, no recato da vela ou na chama do petróleo em ocasiões de luxos. Assim sobreviviam Elias e a companheira. E albergavam quem pedisse pernoita: a porta estava sempre aberta.

“Ainda és roubado, com essa mania de deixares tudo às escâncaras”, alertou-o LH. Elias arreganhou os desdentes: “Estás a ouvir esta, Mariana?” – o gargalho dirigia-se à mulher. “Este maduro cuida que sejamos roubados. Mas quem rouba o que não há, quem rouba quem não tem, hem?”. LH viera ali resguardar-se do sereno e partilharia a larga enxerga estendida no chão térreo com outros de noite madrasta. Hugo, Mendes, Cipriano já lá estavam e ratavam nos pratos de alumínio o que restava da jardineira. Eram quatro, mais os anfitriões. A conversa rolava à espera que a lua pesasse sobre as pálpebras para meter o sono olhos dentro. “Já estás decidido? Vais mesmo baldar-te à guerra?”, inquiriu Elias. LH e Hugo, em idade de sortes, refratavam e sofriam por tanto a falta de emprego. Cipriano, tísico, e o maneta Mendes dispensavam-se de magalar pelos matos de África. Quanto a Elias: “quero lá saber das guerras, pá. Eu sou anarquista. A-nar-quis-ta, pá!”. E com este interruptor costumeiro, Elias apagou as estrelas e deitou-se, agarrado à mulher, sobre o colchão encostado à pequena estante de traves e tijolos que habitava o canto da barraca.

Os hóspedes, os quatro, atamancaram-se para os roncos, na companhia de três galinhas, dois gatos, um cão. E um corvo.

 
Nuno Rebocho - Nascido em 1945, em Queluz (Portugal), viveu em Moçambique desde os três meses de idade até 1962. Jornalista, poeta e andarilho – bastou-lhe ter estado preso por cinco anos na Cadeia do Forte de Peniche (por cinco anos, motivos políticos), para recusar ser animal sedentário. Viveu a imprensa regional (Notícias da Amadora, Jornal de Sintra, Aponte, A Nossa Terra, Jornal da Costa do Sol, Comércio do Funchal, entre outros), foi redactor da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, das revistas O Tempo e O Modo e Vida Mundial, em diferentes diários e semanários, e é chefe de redacção da Antena 2 da RDP. Colaborador de Acontece en Sorocaba (Brasil) e Liberal (Cabo Verde). Autor de “Breviário de João Crisóstomo”, “Uagudugu”, “Memórias de Paisagem”, “Invasão do Corpo”, “Manifesto (Pu)lítico”, “Santo Apollinaire, meu santo”, “A Nau da India”, “A Arte de Matar”, “Cantos Cantábricos”, “Poemas do Calendário”, “Manual de Boas Maneiras”, “A Arte das Putas” (poesia), “Estórias de Gente” (crónicas), “O 18 de Janeiro de 1934”, “A Frente Popular Antifascista em Portugal”, “A Companhia dos Braçais do Bacalhau” (investigação histórica), está representado em diversas antologias e colectâneas em Portugal, Espanha e Brasil. Tem colaborado em catálogos para exposições de artes plásticas: Ramón Catalan, Deolinda, Carlos Eirão, Alfredo Luz, Edgardo Xavier, João Alfaro, Maria José Vieira, Ricardo Gigante, Ana Horta, Isabel Teixeira de Sousa, Nuno Medeiros, Viana Baptista, Teresa Ribeiro, Rico Sequeira, João Ribeiro, José Manuel Man... Comissariou a Bienal do Mediterrâneo, Dubrovnik (Croácia), em 1999.