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NUNO REBOCHO |
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Uma aventura na Baixa
da Banheira: como, por malandrice do Manuel da Fonseca, falei em público
pela primeira vez
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Era fim de tarde de algum dia de 1963 (estes
pormenores não se decoram com precisão, embora perdurem nas memórias): o
Manuel da Fonseca despontou na Leitaria Passo, ao lisboeta Rossio, e -
como quem não tinha segundas intenções – convidou o grupo para assistir a
um colóquio no Ginásio Clube da Baixa da Banheira, na Outra Banda. De uma
assentada, anuímos ao convite e lá fomos: o Manuel da Fonseca, o Armando
Ventura Ferreira, o Carreira Bom e eu.
Desconhecia a Baixa da Banheira, nunca fora ao
Ginásio (onde, desde então, comecei a ser visita assídua, algumas vezes na
companhia do Adriano Correia de Oliveira). Estava completamente virgem
nessas andanças. Seria algo novo nas nossas tertúlias, para mais o Manel
ofereceu-se para nos custear as nossas viagens, quer a do Carreira Bom
quer a minha, sempre na tesura. E como a cavalo dado não se olha o dente,
nem sequer pensámos duas vezes no que fazíamos. O problema começou a
colocar-se durante a passagem de barco para o Barreiro, quando o Manuel da
Fonseca nos avisou: “Preparem-se, porque o orador deste colóquio será o
Nuno”.
Fiquei gago, assustado, a tremer que nem varas
verdes. Eu nunca falara em público, ficava condenado a uma estreia e logo
de improviso. Não escolhera tema, não tinha assunto, não tinha nada. E já
não podia voltar atrás. Comecei a pensar como descalçar a bota. Soube que
a Baixa da Banheira era aldeia que albergava muitos alentejanos e, por
conseguinte, resolvi tomar como referência um Alentejo aonde nunca me
deslocara, mas conhecia dos livros e das mitologias políticas. Combinei
com o Carreira Bom orientar-me pela sua fácies: ele que me fizesse sinal
como estava a desenvencilhar-me da tarefa.
Perdoei a partida que o Manuel da Fonseca me criara.
Fomos recebidos no Ginásio pelo Joaquim Ortiz, que era na época o seu
principal dirigente e com quem o Manel arquitetou toda a armadilha. Com as
pernas em tremeliques, vadeei a sala apinhada de gente, polícia fardada
espalhada pelo anfiteatro, um autarca ao serviço do regime salazarista e o
Manel a gozar. Olhei para o Carreira Bom, como tramara. Depois de tossicar
para libertar os gorgomilos, comecei a debitar o discurso: falei, falei,
falei sobre o meu Alentejo imaginário, enquanto o Carreira se desmontava
em sorrisos.
Com isto, nem sequer reparei que o presidente da
Junta de Freguesia entretanto se afundava na lividez, que a
pidalhada se enfurecia e que os
fardados se agitavam. Uma salva de palmas final mandou para segundo plano
a fúria salazarenta dos donos do regime político, enquanto se preparava a
minha fuga às possíveis más-consequências do descaso. E foi, com o
artifício das algazarras a encobrirem, que batemos em retirada até a um
jantar oferecido em casa de alguém, a Mira. O Carreira Bom estava feliz, o
Armando delirava, o Manel gozava o prato.
Desse modo, granjeei um grupo de amigos na Baixa da
Banheira e me iniciei nas aventuras dos púlpitos, fundamentais para a
minha formação, pintalgada de loucuras várias e atrevimentos dos quais só
aos poucos fui medindo os melindres e as incidências.
Nuno Rebocho
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Nuno Rebocho - Nascido em 1945, em Queluz (Portugal), viveu em Moçambique desde os três meses de idade até 1962. Jornalista, poeta e andarilho – bastou-lhe ter estado preso por cinco anos na Cadeia do Forte de Peniche (por cinco anos, motivos políticos), para recusar ser animal sedentário. Viveu a imprensa regional (Notícias da Amadora, Jornal de Sintra, Aponte, A Nossa Terra, Jornal da Costa do Sol, Comércio do Funchal, entre outros), foi redactor da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, das revistas O Tempo e O Modo e Vida Mundial, em diferentes diários e semanários, e é chefe de redacção da Antena 2 da RDP. Colaborador de Acontece en Sorocaba (Brasil) e Liberal (Cabo Verde). Autor de “Breviário de João Crisóstomo”, “Uagudugu”, “Memórias de Paisagem”, “Invasão do Corpo”, “Manifesto (Pu)lítico”, “Santo Apollinaire, meu santo”, “A Nau da India”, “A Arte de Matar”, “Cantos Cantábricos”, “Poemas do Calendário”, “Manual de Boas Maneiras”, “A Arte das Putas” (poesia), “Estórias de Gente” (crónicas), “O 18 de Janeiro de 1934”, “A Frente Popular Antifascista em Portugal”, “A Companhia dos Braçais do Bacalhau” (investigação histórica), está representado em diversas antologias e colectâneas em Portugal, Espanha e Brasil. Tem colaborado em catálogos para exposições de artes plásticas: Ramón Catalan, Deolinda, Carlos Eirão, Alfredo Luz, Edgardo Xavier, João Alfaro, Maria José Vieira, Ricardo Gigante, Ana Horta, Isabel Teixeira de Sousa, Nuno Medeiros, Viana Baptista, Teresa Ribeiro, Rico Sequeira, João Ribeiro, José Manuel Man... Comissariou a Bienal do Mediterrâneo, Dubrovnik (Croácia), em 1999. |
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