- António, vá bater naquele homem!
- Eu vou, eu vou!
Natália mandava. António
obedecia. Levantou-se e bufou para a casa de fados que lhe ficava por
detrás da grade onde se afincara pela noite de Alfama, puxou as abas do
casaco com convicção, esticou os colarinhos, arrebitou a gravata. E
avançou como touro desmamado, cabeça baixa, os pés a escovar o chão.
António era lingrinhas,
franzinote, sobrava-lhe o ser sobrinho de Natália; o adversário era
matulão, músculos de estivador. O resultado: o que podia ser - tareia
das grandes, atirada pela bisarma, apanhada pelo fotógrafo.
De um momento para o
outro, todo o largo de Alfama, Castelo à vista, redundou em campo de
batalha: Carreira Bom e José Carlos Ary dos Santos treparam para mesas
e, puxando os cabelos próprios, guinchavam; eu soqueava onde acertava e
em quem acertava, mais levando murros do que os desferindo; o mesmo se
passava com Dórdio Guimarães. Natália Correia, essa, ria-se. No fim,
todos se consideraram irmãos e terminaram a contenda com longos abraços
de amizade.
Assim encerrou uma noite
de fado clandestino, à porta fechada (obviamente), havida em 1965 em
Lisboa, em pleno Santo António. Já lá vão 47 anos.
Nós saíramos de casa de
Natália, no último andar do prédio da Smarta, e marcháramos em excursão
até Alfama – à frente o grupo de mulheres, liderado pela poetisa e por
Tereshkova, dispersamente e conversando entre si os homens, Dórdio e eu
atrasados, falando de coisas várias. O convite viera já a noite estava
avançada: chegara de surpresa, por inspiração de momento, aparentemente
sem nada reservado.
“Vamos aos fados!”. Lá
fomos. A cena de pancadaria fora um acrescento, não estava previsto,
resultara de piropos que o hercúleo faquista nos atirara, porventura
estranhado dos excursionistas peraltas por aquelas bandas. Eram assim as
noites em casa de Natália: nunca se sabia o que poderia acontecer,
raramente havia programa. Podia suceder, como se achou pelo menos uma
vez, a casa ter visita do “Noivo” – figura típica de Lisboa, vestido a
rigor e de flor na lapela. Dizia-se que endoidara porque a noiva faleceu
no dia do casamento... Desde então, vadiava por Lisboa, aos gritos e em
rompantes, quando a noite descaía a espalhar fantasmas.
Não havia como recusar um
quê a Natália, quando esta assim o pedia. Um convite seu era uma ordem:
sentada num sofá junto da lareira da sala grande, toda a casa
transformada em biblioteca, estantes e quadros pelas paredes, perna
traçada a evidenciar a esbelta coxa (Natália era um espanto de mulher,
dizia-se que, nos seus tempos de jovem, com Etelvina Lopes de Almeida e
Vera Lagoa, então as três de braço dado, desciam a rua do Chiado, era de
fazer parar o trânsito e pôr a cabeça à roda ao público macho da capital
portuguesa), cigarro e boquilha a preceito, num gesto largo e pomposo.
Enfim, uma rainha! Nós, os novatos como eu e Carreira Bom,
aproveitávamos o que podíamos: as sobras dos aperitivos e da ceia para
enganar a fome, os momentos em que a conversa arrefecia para pestanejar
o sono e afugentar noites mal dormidas. Como se afirmava: íamos à mama.
Que nunca vimos por lá
coisas que, ao contrário do que os sicofantas apregoavam, moralmente não
houvesse para ver. Até sorríamos dos dichotes: Dórdio sempre apaixonado
pela sua diva, a sua Cinthia; o “velho” (referíamo-nos ao marido de
Natália, rico, mas sempre tratado com muita deferência) recolhido ao seu
quarto e ao seu reumático. De um lado, pois, Dórdio, apaixonado
gato-sapato; do outro, o “velho”. Claro, a coisa acabou como devia
acabar – ao fim de anos e anos, na morte, natural, do “velho” e no,
também natural, casamento do obediente e apaixonado Dórdio e Natália, já
solteira e viúva rica, dona de um conhecido bar.
Discutia-se muita poesia.
Recitavam-se textos. Arquitectavam-se projectos. Fazia-se corte e
Natália imperava. Lembro-me de um brasileiro, homossexual, que passou
uma noite inteira a atazanar-me o juízo. De Tomás Ribas, a ufanar-se da
sua “Giovana”, romance que acabara de aparecer, editado pela inefável
“Início” do não menos inefável e rechonchudo Vergílio, que eu conhecera
numa “república” de estudantes ali para os lados da “Portugália de
cervejas”. De Josué da Silva, já um pouco alcoolizado, a desafiar
equilíbrios e a passar de uma janela a outra, pendurando-se do lado
exterior. De ideias insólitas que percorriam estes encontros. Anos mais
tarde, depois do 25 de Abril, ali se discutiu e planeou, com Francisco
Sá Carneiro, o fim do “República” ocupado e se apreciou muita política.
Recordo, com saudade, os
anos 60: as coisas insólitas que eu vi em casa de Natália, muito
isólitas mesmo. Como daquela vez em que fomos incomodados por um ruído
vindo da porta que dava para a escada: era um “pide” (reles polícia
política do salazarismo) que, levado pela profissão de biltre e pelo
vício de farejar, tentava escutar o que se passava dentro daquela
residência. Foi surpreendido no entreacto e levado à vassourada, escada
abaixo até à rua, pela iracunda Natália.
Ou a cena da manifestação
de estudantes na Feira do Livro (era então na Avenida da Liberdade, ao
pé do Tivoli), em protesto contra o encerramento da Associação de
Escritores, fechada por ter desafiado Salazar ao atribuir o Prémio ao
enclausurado Luandino Vieira: tornado militante do PCP há uns oito dias,
fui mandado pelo “camarada Carlos” para liderar esse protesto. Os
“escritores”, que deviam comparecer, segundo o combinado, não o fizeram
“para não dar azo a que os acoimassem de comunistas”… foi essa a
esfarrapada explicação dada. Só Natália Correia e o seu grupinho
compareceram e afrontaram o regime salazarista e connosco gritaram que
se queimasse o stand da Guimarães Editora que publicara livros de
Joaquim de Paço d’Arcos, que aplaudira o encerro fascista.
São factos que importa
hoje relembrar. Que nem sempre os chamados “reaccionários” o foram: tudo
depende de quem os acusa e das suas câmaras de ressonância. Mas que
fazem falta tais tertúlias onde a juventude prove o pão que o diabo
amassou e sonhe…, como a tertúlia que se fazia em casa de Natália, com o
seu grau de surpreendente e saudável loucura, a uma Lisboa adormecida
pelos televisores e pela crise, quem disso tem dúvidas?
Nuno Rebocho |
Nuno Rebocho - Nascido em 1945, em Queluz (Portugal), viveu em Moçambique desde os três meses de idade até 1962. Jornalista, poeta e andarilho – bastou-lhe ter estado preso por cinco anos na Cadeia do Forte de Peniche (por cinco anos, motivos políticos), para recusar ser animal sedentário. Viveu a imprensa regional (Notícias da Amadora, Jornal de Sintra, Aponte, A Nossa Terra, Jornal da Costa do Sol, Comércio do Funchal, entre outros), foi redactor da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, das revistas O Tempo e O Modo e Vida Mundial, em diferentes diários e semanários, e é chefe de redacção da Antena 2 da RDP. Colaborador de Acontece en Sorocaba (Brasil) e Liberal (Cabo Verde). Autor de “Breviário de João Crisóstomo”, “Uagudugu”, “Memórias de Paisagem”, “Invasão do Corpo”, “Manifesto (Pu)lítico”, “Santo Apollinaire, meu santo”, “A Nau da India”, “A Arte de Matar”, “Cantos Cantábricos”, “Poemas do Calendário”, “Manual de Boas Maneiras”, “A Arte das Putas” (poesia), “Estórias de Gente” (crónicas), “O 18 de Janeiro de 1934”, “A Frente Popular Antifascista em Portugal”, “A Companhia dos Braçais do Bacalhau” (investigação histórica), está representado em diversas antologias e colectâneas em Portugal, Espanha e Brasil. Tem colaborado em catálogos para exposições de artes plásticas: Ramón Catalan, Deolinda, Carlos Eirão, Alfredo Luz, Edgardo Xavier, João Alfaro, Maria José Vieira, Ricardo Gigante, Ana Horta, Isabel Teixeira de Sousa, Nuno Medeiros, Viana Baptista, Teresa Ribeiro, Rico Sequeira, João Ribeiro, José Manuel Man... Comissariou a Bienal do Mediterrâneo, Dubrovnik (Croácia), em 1999. |