Nuno Rebocho

Lembrando uma velha discussão com Mário Fonseca

Impõe-se reanalisar a importância objetiva e o lugar que Germano de Almeida tem na literatura contemporânea de Cabo Verde e, por extensão, de toda a lusofonia, fazendo-o de forma desapaixonada e não perturbada, marcada por valores que lhe deviam ser extrínsecos, como sejam os trazidos pelas máquinas publicitárias comercial e ideológica. Tido, pela maioria dos apressados leitores, desafeitos às realidades do arquipélago, como o seu maior romancista pósclaridoso, Germano de Almeida é, por outros, posto em causa, ao ponto de, desajustadamente, se lhe questionar o seu valor como romancista: lembro-me de um encontro, havido na cidade da Praia, em casa de Valentinous Velhinho, na presença de Jorge Velhote e de Aurelino Costa, com o já falecido poeta Mário Fonseca (e também com Jorge Carlos Fonseca, actual Presidente da República de Cabo Verde), com este a pôr em causa que Germano fosse considerado entendido como romancista ou se, simplesmente, seria um contador de histórias. Foi uma discussão dura.

Claro que a tese de Mário Fonseca transporta um pressuposto: o de que contar uma história não é escrever um romance ou que sequer o mimorize, como se isso pudesse, de alguma forma, lesar o valor do livro escrito. É entender que o conteúdo novelístico de um livro lhe retira ou acrescenta valor e pode fazer dele um não-romance, como se o romance não fosse em si mesmo, também, uma forma de narrar uma história. Pode defender-se, certo ou errado, que o escritor da ilha da Boavista mostra a esse respeito uma certa ligeireza ou, se se quiser, um certo facilitismo (que, afinal, são uma imagem de marca, o seu estilo). Mas chegar ao extremo de por isso o apoucar, é levar a paixão a um patamar não-lógico, próprio da natureza insular do cabo-verdiano.

O que se pode dizer é que o autor de “O Testamento de Senhor Nepumoceno” não ofusca, nem desvaloriza, a importância, na chamada literatura cabo-verdiana, de um Henrique Teixeira Lopes ou de um Pedro Duarte e que está por fazer a devida divulgação de “Mandina de João Tiene” (um romance de enorme valor que, só por si, dignifica toda uma literatura). Que está por reconhecer os valores emergentes, a nova geração, como Joaquim Arena. Que está por reler – com atenção – Fernando Monteiro, embora este (na minha modesta opinião) tenha valido imenso mais como cronista do que como novelista. E que está por reconhecer que os autores - como Isabel Barreno (“O Senhor das Ilhas”) ou como o autor de “Hora di Bai” (Manuel Ferreira) e outros, - são mais cabo-verdianos do que portugueses, polémica que nos tempos de hoje pouco sentido faz, dada a migração própria de muitos escritores. Com efeito, não traz relevância saber se Arena deva ser tomado por autor português, dado o facto (circunstancial) de ele estar radicado em Portugal, ou que se ponha em causa que Teixeira Lopes deva ser considerado cabo-verdiano por ter escrito grande parte da sua obra, ou mesmo ter falecido, em Portugal. É quase opinar que Daniel Filipe (“O Manuscrito na Garrafa”) não é português só porque nasceu em Cabo Verde…

É a ligação direta que um dado autor tiver com a história, a vivência, em suma, com a cultura de um país, que deve definir a sua “nacionalidade”, se é possível, hoje em dia, determiná-la: o lugar onde nasceu, ou aquele em que escreveu uma parte da sua obra, mesmo que significante, podem implicar o seu genoma artístico. Este é um fator que, no mundo global em que vivemos, é tanto relevante para a literatura, como para a música, o cinema, a escultura ou a pintura. As fronteiras geofísicas de uma maneira de arte, seja ele qual seja, não podem desarmonizar-se com as fronteiras da geocultura – esse será o preço de uma modernidade construída por uma evolução técnica e tecnológica onde o mundo vai ficando cada vez mais pequeno.

A velha polémica com Mário Fonseca valeu para recordar nomes da literatura de Cabo Verde, entenda-se o que se quiser por esse chavão o que se quiser. Escritor é aquele que escreve e romancista é o que escreve romances. Com ou sem conteúdo novelístico é questão de somenos: aí temos o surrealismo ou o “nouveau roman” a fazerem prova que o enredo é questão secundária, ainda que haja ou não enredos interessantes.

 

Nuno Rebocho

Nuno Rebocho - Nascido em 1945, em Queluz (Portugal), viveu em Moçambique desde os três meses de idade até 1962. Jornalista, poeta e andarilho – bastou-lhe ter estado preso por cinco anos na Cadeia do Forte de Peniche (por cinco anos, motivos políticos), para recusar ser animal sedentário. Viveu a imprensa regional (Notícias da Amadora, Jornal de Sintra, Aponte, A Nossa Terra, Jornal da Costa do Sol, Comércio do Funchal, entre outros), foi redactor da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, das revistas O Tempo e O Modo e Vida Mundial, em diferentes diários e semanários, e é chefe de redacção da Antena 2 da RDP. Colaborador de Acontece en Sorocaba (Brasil) e Liberal (Cabo Verde). Autor de “Breviário de João Crisóstomo”, “Uagudugu”, “Memórias de Paisagem”, “Invasão do Corpo”, “Manifesto (Pu)lítico”, “Santo Apollinaire, meu santo”, “A Nau da India”, “A Arte de Matar”, “Cantos Cantábricos”, “Poemas do Calendário”, “Manual de Boas Maneiras”, “A Arte das Putas” (poesia), “Estórias de Gente” (crónicas), “O 18 de Janeiro de 1934”, “A Frente Popular Antifascista em Portugal”, “A Companhia dos Braçais do Bacalhau” (investigação histórica), está representado em diversas antologias e colectâneas em Portugal, Espanha e Brasil. Tem colaborado em catálogos para exposições de artes plásticas: Ramón Catalan, Deolinda, Carlos Eirão, Alfredo Luz, Edgardo Xavier, João Alfaro, Maria José Vieira, Ricardo Gigante, Ana Horta, Isabel Teixeira de Sousa, Nuno Medeiros, Viana Baptista, Teresa Ribeiro, Rico Sequeira, João Ribeiro, José Manuel Man... Comissariou a Bienal do Mediterrâneo, Dubrovnik (Croácia), em 1999.