O nome de Fernando Ribeiro
de Melo bateu-me à porta num célebre recital de poesia havido na
Sociedade Nacional de Belas Artes, juntamente com o de Norberto Barroca
e o do saudoso Diogo Ary dos Santos (para os que não o conheceram, muito
melhor diseur que o seu irmão, o célebre José Carlos Ary), no
qual o “valor” dos poemas e dos poetas era medido pelo tempo de aplausos
que, no final, recebiam do público. A ideia pouco ou nada de científico
teria porque não levava em conta a capacidade dos intérpretes nem a
“alma” que cada um deles metia nas peças que era chamado a dizer. Foi aí
que me deu que pensar no contributo que o dizedor tinha para o
poema, em detrimento do valor intrínseco que ressaltava de cada poesia e
de cada poeta. Isso ficou-me evidente quando, pela primeira vez, ouvi a
voz de José Régio ou de Miguel Torga (péssimos declamadores), conheci e
me tornei amigo de Eugénio de Andrade (como relator, um medíocre
recitativo) ou ouvi gravações de Carlos Drummond (mau, mau) e os
comparei com muito maus poemas ditos por João Villaret, em cuja
interpretação pareciam ganhar outro e melhor rosto.
Claro que, nesse
espectáculo, fiquei com má opinião do Fernando – era “maluco”. Não
percebia o significado profundo da operação, o que só mais tarde vi a
compreender. De resto, aprendi, por experiência própria, que ninguém se
deve fiar nas primeiras impressões, uma vez que dependem de muitos
factores, até mesmo subjectivos. E multiplicam-se os exemplos em que se
verificou, ao longo da minha vida, por razões diversas, a mudança de
opinião sobre alguém. Humildemente aprendi a nunca fazer de ninguém
juízos definitivos – o que hoje é, amanhã deixa-o de o ser.
Sinceramente, não me
recorda como o Fernando e eu caímos nas boas graças um do outro. Foi um
dia, não será importante – como quase sempre acontece – saber-se o como
e o porquê. O facto é que tal aconteceu e eu fui viver, durante uns
largos meses, para sua casa, situada num primeiro piso da Avenida
António Augusto de Aguiar, quase no cruzamento com a Avenida Fontes
Pereira de Melo. Saíamos à rua quase diariamente com um embrulho cheio
de garrafas despejadas, para as ir vender, em segunda mão, a uma
qualquer loja, a fim de recolhermos dinheiro com o qual pudéssemos pagar
o almoço (o dele, o de Antonieta, sua mulher, e o meu), o que quase
sempre acontecia num restaurante no Largo Camões, em Lisboa. E as noites
eram por nós passadas “chez” Natália Correia, com quem o Fernando acabou
por acordar um contrato para a produção de uma antologia da poesia
medieval portuguesa.
Nessa época eram enormes
os apertos em que, tanto o Fernando como eu, vivíamos. Filho de um
famoso advogado do Porto, o Fernando tinha fundamentadas ambições de ser
um homem livre e, pelo menos, abastado. Quanto a mim, em conflito com o
meu pai nos verdes anos, dera explicações e vivia aos caídos: chegara a
dormir em camaratas de Lisboa ou na “pensão da corda” (que era nos
Anjos, na parte de trás da sua igreja, onde, sentados no chão,
adormecíamos com a cabeça encostada a uma corda estendida) e até na
barraca do Mário Elias, perto do Hospital de Santa Maria, num quarto
diminuto no qual pernoitávamos o Mário, a mulher do Mário, o José
Mendes, o Hugo Beja, eu e… um corvo.
Portanto, foi um alívio, e
uma promoção, ir para casa do Ribeiro de Melo. Comecei a abraçar
projectos seus, pelos quais me batia com unhas e dentes. E foi por
proposta minha que nos abalançámos a criar a sua editora, Afrodite, cujo
primeiro livro, o “Kama Sutra”, editámos: a tradução do original, sem
nenhum cuidado, foi feita a quatro, pelo Fernando, por mim e por dois
amigos meus, que tinham sido meus colegas no Liceu Camões, entre eles o
Vítor Ribeiro. Acampávamos na tal casa do Fernando e, colaborando cada
qual com o seu naco, e para mais não havendo qualquer preocupação em
elaborar obra asseada, a coisa fez-se rapidamente. Mal concluído o “Kama
Sutra” (suponho que o primeiro que se publicou em Portugal e logo sob a
ditadura de Salazar, o que seria no mínimo subversivo), logo nasceu a
ideia de lançarmos um livro do Marquês de Sade e outro do Masoch.
O meu propósito era de
desafiar o regime, a miserável censura e execrada PIDE. As ideias do
Fernando eram outras: também seriam as minhas, mas sobretudo o que o
dominava era o desejo de enriquecer depressa e a todo o custo. E foi aí
que nos desentendemos forte e feio: o Fernando Ribeiro de Melo,
ostentação de riqueza súbita, comprou uma mesa de bilhar e um Taunus
descapotável, ao volante do qual morreu num desastre de automóvel.
Estávamos de relações cortadas.
Todos estes factos
recordámos há uns anos em minha casa, em Cascais, quando Antonieta me
visitou. Porque nos separámos, foi uma história em grande parte por mim
mal contada. Piedosamente, ocultei-lhe as divergências entre mim e o
Fernando. Limitei-me a lembrar-lhe o machismo de Ribeiro de Melo que
muito me ofendia e a confessar-lhe uma paixoneta que por ela tivera e,
pudicamente, queria ocultar dado que ele era esposa de um amigo meu, de
quem, para mais, estava grávida.
De acordo estávamos num
ponto: que era necessária a saudável “loucura”, como nós manifestávamos,
para ser capaz de arrostar o mundo e construir coisas inamigináveis. |
Nuno Rebocho - Nascido em 1945, em Queluz (Portugal), viveu em Moçambique desde os três meses de idade até 1962. Jornalista, poeta e andarilho – bastou-lhe ter estado preso por cinco anos na Cadeia do Forte de Peniche (por cinco anos, motivos políticos), para recusar ser animal sedentário. Viveu a imprensa regional (Notícias da Amadora, Jornal de Sintra, Aponte, A Nossa Terra, Jornal da Costa do Sol, Comércio do Funchal, entre outros), foi redactor da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, das revistas O Tempo e O Modo e Vida Mundial, em diferentes diários e semanários, e é chefe de redacção da Antena 2 da RDP. Colaborador de Acontece en Sorocaba (Brasil) e Liberal (Cabo Verde). Autor de “Breviário de João Crisóstomo”, “Uagudugu”, “Memórias de Paisagem”, “Invasão do Corpo”, “Manifesto (Pu)lítico”, “Santo Apollinaire, meu santo”, “A Nau da India”, “A Arte de Matar”, “Cantos Cantábricos”, “Poemas do Calendário”, “Manual de Boas Maneiras”, “A Arte das Putas” (poesia), “Estórias de Gente” (crónicas), “O 18 de Janeiro de 1934”, “A Frente Popular Antifascista em Portugal”, “A Companhia dos Braçais do Bacalhau” (investigação histórica), está representado em diversas antologias e colectâneas em Portugal, Espanha e Brasil. Tem colaborado em catálogos para exposições de artes plásticas: Ramón Catalan, Deolinda, Carlos Eirão, Alfredo Luz, Edgardo Xavier, João Alfaro, Maria José Vieira, Ricardo Gigante, Ana Horta, Isabel Teixeira de Sousa, Nuno Medeiros, Viana Baptista, Teresa Ribeiro, Rico Sequeira, João Ribeiro, José Manuel Man... Comissariou a Bienal do Mediterrâneo, Dubrovnik (Croácia), em 1999. |