De algo existente partirá sempre o verbo. O longínquo começo do verbo, inidentificável seguramente será, faz-me imaginar um retrocesso radical e absoluto à origem das coisas, à origem de tudo, demanda um pouco pateta que conduz à aceitação da vaga ideia de verbo absoluto e original hipoteticamente contido no espírito que povoaria a matéria do espaço-tempo inicial. Matéria, espaço, tempo e espírito seriam indiscerníveis – se então possível fosse discernir – formariam um todo estático, o número 1. Não é muito diferente imaginar o início da congregação da matéria em cada ser humano que nasce, o início do verbo no indivíduo, mas neste caso aceita-se que haja um fluxo para as coisas que existem, que os homens provêm das misteriosas junções de matéria em eterno trânsito e que o verbo provém da imitação dos seus semelhantes, do mundo de outrora, para chegar a eles, entendê-los e, ancorados nesse entendimento e em cada momento, os indivíduos constituírem-se construindo-se. Nesta analogia universo – indivíduo, se 1 representasse o absoluto inicial, ∞ representaria o presente, traduzindo o sentido da multiplicidade infinita da existência material, temporal, espacial e espiritual que serve a acção dos homens.
Ao construir-se, o indivíduo constitui-se e, apesar de em cada momento ser possível por aproximação descrever o seu estado de constituição, aquilo que o caracteriza, nunca o indivíduo é definitivo, condição que prevalece desde que nasce até ao momento em que morre e deixa de ser. É da natureza humana existir na permanência do estado transitório do corpo e da psique. Não é concebível a afirmação da existência de pensamento ignorando o tempo e, consequentemente, o perene estado de mudança, simultaneamente cimento das ideias e alavanca primária do entendimento. O pensamento do indivíduo existe em constante oscilação reactiva a estímulos externos. Hesitação e temor da escolha paralisam por vezes a sua acção pois o percurso que se sente obrigado a trilhar, a ideia dessa obrigação como fantasma prospectivo do destino, pode vir a revelar-se inconveniente e inconsequente perante a preconcepção que faz do futuro.
Quando é sobretudo num mundo seu que o indivíduo age e solta o verbo, agindo para que o seu mundo tenda a manifestar-se a seus olhos, se nem sempre com beleza, pelo menos com esboçada estrutura estética e poesia, diz-se dele, no seu peculiar modo de estar, na sua atitude distintiva, que é artista. No entanto, da maioria dos seus gestos nada de relevante resulta. Multiplicando-se muitas vezes em vão, gestos e palavras espelham pensamento turvo e falsas intuições, isto é, embora possa manifestar-se em si plena de vigor, transbordante de energia, a acção origina sementes estéreis, objectos inconsequentes, enfim, lixo artístico que, dada a natureza “fetichista” da obra de arte, adquire por vezes um estranho valor intelectual, monetário e também artístico. A disponibilidade e a maturidade do artista são os factores cuja combinação ou é destrutiva, ou possibilita aos objectos resultantes da sua acção existirem como obras de arte. Quando a maturidade avança mais rápida que a sua disponibilidade para fazer arte, impondo a cada vez renovados padrões de exigência, o artista rejeita a obra antes de a completar. Na falta de discernimento para a rejeição, o mais provável é que da acção resultem obras frágeis.
Para além das relações tensas, equilíbrios e desequilíbrios entre disponibilidade e maturidade, é balançando entre o individualismo e a oportunidade que o artista por vezes falha – embora o individualismo seja o selo que valida o que ele é, ou que vai sendo, são a oportunidade externa às vicissitudes do indivíduo e a sua ausência que condicionam a escala e a pertinência da sua acção. Não é que o individualismo constitua uma alternativa oposta à actividade artística de grupo em plena comunhão social ou irmandade espiritual. Em arte, o individualismo não é, evidentemente, uma reacção ao estado das coisas; é, isso sim, consequência inevitável do decurso da vida como criador. A inquietação que a criação artística acarreta é sempre motivada por razões profundamente pessoais que embora possam derivar de e para interpretações que vão além da individualidade, são únicas e pertença daquele específico ser humano. Na actividade artística de grupo o contributo de cada indivíduo é, de algum modo e mesmo que no restrito respeito de directivas programáticas externas, reflexo individual que sempre se manifesta no seu modo de fazer. A obra de arte é, em parte, representação radical do próprio artista, não necessariamente em modo figurado de retrato ou auto-retrato, mas como se resultasse também de uma emanação que impregnasse a matéria que a constitui e define, do “ser do sujeito artista”, como uma fotografia idiossincrática do indivíduo que a criou (a ideia de obra criada sempre à imagem do seu criador). Esta característica é indissociável da obra de arte relevante, mesmo quando é da convicção do autor não deixar a sua mão visível na obra, atitude adoptada e defendida por vários movimentos e artistas plásticos durante os séculos XX e XXI.
Como ideia, a arte diz do tempo do criador e do tempo que molda a interpretação do mundo e cada indivíduo. Mesmo que o artista adie o verbo, a arte, que vacile, sempre se movimenta à superfície de cada uma das disciplinas artísticas que o extasiam. Durante anos ciranda ideias dispersas, vê fogos-fátuos, adia a obra colossal que lhe faz visitas breves, inquietando-o e excitando-lhe o intelecto. Alcança num vislumbre a sua totalidade, imagina os gestos largos, os pensamentos latos que se consubstanciariam na ideia emergente de obra, evidente na sua excelência. Esta aparição de obra magnífica, esta maravilha, rapidamente se torna refém e vítima da dúvida, do tempo, dos outros, e antes de se evidenciar como o colosso arrebatador e incontestável que o artista intuiu, capitula amiúde perante aquelas influências. A impressão de velocidade, esgotamento de recursos e efemeridade que o mundo actual reserva ao artista, agudiza ainda mais estas circunstâncias. À maturidade e à disponibilidade associam-se acção e influência externas e todas juntas formam a combinação de elementos que destrói ou impossibilita a conclusão – por vezes mesmo o início da exteriorização da sua existência no íntimo do artista – dessas hipóteses de obra. A maturidade caminha muitas vezes mais rápida que disponibilidade e oportunidade para fazer, impondo outros padrões de exigência estética e técnica, veiculando a inesgotável dúvida perante os padrões de exigência técnica e estética dos outros, imagine-os o artista superiores ou inferiores aos seus. Mesmo que os aborde apenas sob a perspectiva da diferença de carácter, com o tempo acaba inevitavelmente por os classificar por níveis de valor, não pela perseguição da glória pessoal (ser o melhor) mas porque é da natureza da arte ultrapassar-se reinventando-se em corpo e manifesto dentro de uma lógica de confronto entre continuidade e ruptura (o que não pressupõe necessariamente termos como progresso ou evolução). Só desse modo é possível ao artista interiorizar uma cronologia da arte com ênfase nas suas lógicas estéticas internas e não apenas no fenómeno histórico, sociológico e político.
Os diversos agentes da arte (artistas, críticos, mecenas, comerciantes e público) definem, num jogo de equilíbrios e desequilíbrios bastante complexo que envolve diversos factores que são, uns do interior das lógicas da arte, outros (que constituem a maioria) a elas exteriores, os diversos padrões de gosto que tornam as criações dos artistas aceitáveis, ou não, como ideia de arte “defensável” por um grupo de interesses. Das variações das interacções entre forma, conteúdo e método de elaboração se estabelecem os diversos padrões de gosto presentes nas diversas épocas e que espelham de modo mais ou menos directo a influência, por vezes tirania, dos grupos de interesse dominantes. O artista conhecedor das mais actuais tendências da arte deveria evitar mimá-las, evitar ser mais um de muitos. No tempo em que vivemos, com a fácil comunicação à escala global, esta acepção é ainda mais pertinente mas também muito mais complexa a sua persecução. Durante o século XX houve a tendência para que deixasse de ser considerado inovador o artista que inovava dentro de um sistema criativo existente, isto é, que se movia no conjunto de regras que definia uma “tradição” de fazer. O artista inovador passou a ser considerado aquele que inventava o seu sistema, ou seja, aquele que criava os próprios axiomas artísticos, deixando as regras de ser imposição externa para passarem a ser do interior de cada obra. Esta tendência tornou-se cada vez mais complexa e resultou na incrível disparidade de formas, estilos e conteúdos existentes na arte actual. Por um lado, assistimos a uma especulação formal prolífera que, há que referi-lo, é extremamente criativa e recebe aplausos fáceis, mas que se revela quase sempre desprovida de conteúdo. Por outro, presenciamos conteúdos aceites como “nobres”, mas cuja representação formal se nos apresenta gasta, por vezes enfadonha no seu disfarce de coerente e séria por insistir até à exaustão nos esquemas repetitivos e viciados de certa arte dita “conceptual”.
O artista actual é “mais artista” na sua permanente crise de criação face à contemporaneidade do que ao condescender na repetição de esquemas, vícios, lugares-comuns e, sobretudo, verdades alheias. As angústias criativas residem no dosear da vontade de fazer arte em face da disponibilidade e desperdício de tempo para definir e desenvolver a consciência de si, para que o seu ser se torne ou se descubra suficientemente forte para suplantar a vertigem do confronto com a contemporaneidade, instaurando novos padrões estéticos, para ir além dos padrões do gosto presente e dominante, ou seja, instaurando novas realidades artísticas efectivas. Assim sendo, a imersão na arte reserva muitas vezes ao artista o isolamento e a incompreensão, o fracasso público e pessoal. Ao artista resta hoje, e talvez sempre, ser obscuro, mergulhar profundamente em si, abraçar o individualismo como descoberta de um bem-estar irmão dos mistérios do seu universo. Impregnando-se de si deve evitar o maneirismo desenraizado. Ao isolar-se no seu individualismo, ao afundar-se, a pouco e pouco, na arte, o artista afasta-se dos grupos de interesse que definem os padrões de gosto que lhe podem trazer visibilidade no “mundo da arte”. Conclusão óbvia mas que atesta bem o dilema que atormenta o individualista – tornar-se invisível para chegar à arte mas necessitar de ser visível para fechar o ciclo criativo, divulgar a obra para que seja apreciada, vivida, depois de ter sido pensada, criada, executada (não necessariamente por esta ordem).
A arte só se manifesta verdadeiramente quando o sujeito que dela frui compreende que aquela experiência estética em concreto fez despertar uma profunda consciência da sua própria condição existencial; assim se fecha o ciclo criativo da arte, na acção do espectador. Num exercício mental de individualismo extremo, o artista restringiria a existência da obra de arte ao seu universo pessoal e seria de questionar se a tal objecto poderíamos chamar arte, isto é, se esta se manifesta no universo composto apenas por obra e criador. Pode-se afirmar sem grandes constrangimentos que o criador também é um sujeito que usufrui da obra de arte de sua autoria, inaugurando mesmo perante a obra a experiência de profunda consciência da própria condição existencial. Se assim não fosse com certeza não exerceria aquela actividade. O artista inclusive detecta, ou testa, através desta experiência inaugural a validade artística dos objectos por si criados recorrendo, mesmo que inconscientemente, à simulação da experiência de “fora de si”, porque para obter a experiência da sua própria condição existencial seria suficiente o processo formativo da obra (que, por si só, não a valida como arte). É no simular, imaginar, a experiência do outro perante a obra que criou, evitando reviver a experiência do processo formativo, que reside a prova do artista à validade da obra como arte. Mas o esforço de imaginar-se outro é duplamente patético dado que, por um lado, o artista está tão fortemente ligado aos objectos que cria que dificilmente conseguirá com eficácia ignorar o estado poético em que se envolveu ao fazer a obra e, por outro, nunca o espectador da obra sai de si (no sentido de ser outro e não no de atingir a transcendência) para dela usufruir. A obra só existe como arte na medida em que interpela o espectador, colidindo alguns aspectos da obra, positiva ou negativamente, com as características da sua personalidade e individualidade. Esquecer o decorrer dos actos formativos para, em certa medida, os reconhecer e reconstituir a posteriori, chegando finalmente à prova do artistismo, ou falta dele, parece tarefa impossível e residirá talvez aqui a célebre dificuldade dos artistas na avaliação e selecção das obras de sua autoria. Não diria, por isso, que a arte não existe no restrito universo artista + obra própria, mas diria contudo que sem público se tratará de obra de arte “órfã”, no sentido em que a paternidade/maternidade da obra cumprem ao artista (estado embrionário) e ao público (nascimento perante os sentidos na sua assunção artística).
Ao ver os seus objectos artísticos concluídos fisicamente, o artista vê os conceitos, isto é, a lógica ou a razão aplicadas às intuições poéticas, tornarem-se frágeis, por vezes mesmo ridículos face às razões que imagina do(s) público(s) e todo o preenchimento que antes foram fica tomado pelo imenso e grotesco vazio que volta a instaurar a dúvida. Para o artista a razão de ser da existência na arte é esta busca cega e surda, o absurdo do arterial fluxo de ideias e a sua representação fugidia, sempre condenada à incerteza, ao nada.
Estilo, efeito, conteúdo, forma – ainda e sempre a perseguição desta espécie de belo? A obra de arte genuína com certeza rejeitará o estilo e o efeito como apriorismos impostos à forma e ao conteúdo, orgulhosa, rejeita-os como acessórios para a tornarem aceitável. De trato rude, não condescende e é por isso difícil de detectar e reconhecer, se é que o confronto do sujeito com a grande arte se trata de reconhecimento – não se tratará antes de conhecimento? Assistimos hoje ao auge apoteótico do estilo e do efeito, tudo no “mundo da arte” é apelo à atitude maneirista. O uso abusivo de obras de arte em contextos variados como a publicidade, a televisão e muito cinema comercial, contamina-as miseravelmente e, parecendo que as divulga, apenas as rotula superficialmente, transformando-as, no imaginário colectivo, em meras mnemónicas de universos que lhes são alheios. O modo de fazer arte dos artistas, as suas próprias obras, já reflectem esta contaminação. Artistas há que assumem que as suas obras são evocações de reproduções de reproduções, nem sempre à arte referentes. Um certo discurso sobre as artes faz erradamente a equivalência desta espécie de mnemónica ao carácter icónico da obra de arte. Em arte, ícone deveria ser o objecto real que, simultaneamente na pertença ao universo de que é emanação e na dotação de extrema capacidade de síntese, representasse visualmente realidades profundas, muito ricas e complexas, aproximando-se mais do ícone religioso e afastando-se do grafismo da sinalética. A banalização e simplificação da ideia de ícone, resultante da incompreensão do seu verdadeiro poder simbólico e complexidade, tornou-se actualmente em paradigma mercantil, mesmo em disciplinas como a arquitectura e a música.
Com a banalização da sua divulgação e a contaminação atrás identificada, a arte tem perdido a capacidade de, como sistema, se igualar à natureza. A grande arte é real, ao passo que a realidade da arte menor é ser representação do real. Por isso, a arte menor não só se limita a representar a realidade natural e artificial, como imita também as realidades paralelas propostas pela grande arte. A grande arte nunca foi cópia ou representação da natureza e do artifício e sempre se insinuou, consciente ou inconsciente dessa sua condição e na parecença à natureza e ao artifício, como sistema autónomo, como “mundo em si”. A tendência para a radicalização do individualismo é, no artista, o seu combate interior contra a prevalência do óbvio na arte actual.
A visão que um outsider tem do mercado global e nacional da arte, por injusta e pouco fundamentada que possa ser, é a de uma excessiva oferta dita “cultural”, um louco frenesim que, pelo seu gigantismo, tudo reduz à ligeireza. Falta tempo para aprofundar o pensamento em tantas e tão díspares obras. Aparentemente, neste ambiente hiperbólico e ultra-caótico (de que a world wide web constitui o paradigma porque raramente apresenta obras de arte mas antes a sua pálida reprodução) triunfa o artista de obra rápida e tautológica, características às quais estranhamente muitos associam a conjugação dos termos “coerência artística”. De tanto se repetir nas escolas de artes que o portfolio de um artista visual se deve organizar de determinada forma, criou-se nisso uma fé inabalável e essa regra, por ser da maioria, ganhou trejeitos de inquestionável. Atingimos o espantoso absurdo da tirania do portfolio, isto é, a vontade de ter sucesso a fazer arte leva os artistas à elaboração de obras que “rimam” umas com as outras, aprisionadas ao estilo ainda antes da sua génese, vergam-se à coerência da regra de marketing, perdendo a sua razão de ser que deveria ser, em primeira e última instância, ser arte. O mercado da arte trata-a, obviamente, como mercadoria e para entrar em qualquer jogo deve obedecer-se a determinadas regras. Pede-se clareza e eficácia – auto-catalogação das obras de um mesmo artista que se restringem, de preferência, à constante auto-citação e semelhança para, claro está, atingir as expectativas e o protectorado dos detentores do poder de decisão quanto ao que vende e constitui lucro. As obras de qualquer artista tornam-se, desse modo, reconhecíveis, o que facilita o lucro através do comércio de originais que, no fundo, não passam de réplicas de peças com características de sucesso, cuja produção se repete, de preferência, até ao esgotamento.
O que se torna ridículo em obras cuja concepção é exclusivamente auto-referencial é a instantaneidade da queda no lugar-comum, o eco. Trata-se de uma tautologia muda porque neste jogo sem sentido a obra adquire razão de ser na leitura de si mesma a reformar-se ou, descrição talvez mais correcta, na reprodução da previsão do que pode vir a ser reproduzido. Sobre a sua génese e o seu finalmente “ser-como-obra” paira sempre a sombra da fraude.
Sublinhe-se de novo a oposição da obra que aspira a ser conhecimento, à obra que aspira a ser “reconhecimento”; da arte que é real, à que imita a realidade natural e realidade paralela proposta pela grande arte; da que inova porque pulsa viva, à que perpetua na ânsia de agradar. A primeira não dá relevância fundamental ao tempo de resposta do espectador, tende a ser de fruição lenta; a segunda busca a apreensão estética imediata e rapidamente se torna irrelevante a um nível mais profundo. O criador atento à falsidade do apelo encantatório do segundo tipo de obra, que de resto considera repulsiva, cultiva o individualismo para dela se afastar, fazendo fé na aproximação à grande arte, a única que colide com a sua particular sensibilidade.
Duas ideias de artista, opostas, estão assim em permanente confronto na arena da arte e na mente do artista: uma, a do artista que produz obras; outra, a do artista que cria obras de arte. O primeiro, pragmático, encaixa-se com à-vontade nas expectativas externas quanto ao que deve ser a obra de arte; o segundo, desinteressado das frivolidades, vive obcecado com a edificação do seu mundo.
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