Este é um romance de sons delicados e de histórias tristes. Em suas
páginas, sopra o vento, bate a chuva, se ouve a ressaca do mar – e as
vozes dos homens, sempre as vozes, construindo penosamente a narrativa e a
vida de personagens que nos desafiam pela sua não-linearidade:
marinheiros, prostitutas, malandros do cais, gente que vive no porto de
Santos e que é subitamente cercada por um desses momentos-limites da
História, como foi o ano de 64 nessa cidade.
Como é difícil o mundo para alguns homens! Como nosso planeta, nosso país,
não parecem feitos para os homens – mas contra os homens, principalmente
para os heróis e anti-heróis de
Adelto Gonçalves. Nas
conversas do cais, dos bares, nas luzes vermelhas e nas sombras dos
cabarés estas vozes murmuram “sempre seremos uns fracassados”. E como não
se entender que flua com tanta insistência e consistência o sentimento de
que ser humano é uma vergonha, quando os homens perdem até o direito ao
sonho?
Nessa história nos comove o desejo de seu autor de reconstruir um circuito
da vida de nossa Nação, da vida de alguns homens em um certo espaço. A
memória de Adelto se abre para o abismo do momento em que o autoritarismo
se implanta violentamente no país.
E a memória do autor passa a ser também a memória dos outros, personagens
de uma história densa como o mitológico Nego Orlando, célebre no porto por
sua arte na dança e na briga; homem que as grã-finas de São Paulo buscavam
para algumas horas de amor, porque também nisso ele era bom, famoso... Por
onde passava no porto, se abriam alas de reverência... Lá vai o Nego
Orlando, aquele que participou da revolta da Ilha Anchieta e deixou de
lado os colegas bandidos na hora em que eles ameaçaram matar crianças,
mulheres... Lá vai o Nego Orlando...
Esta é uma história de muitas histórias e algumas confissões. O
contraponto à narrativa é um discurso tímido do autor; breve interferência
na vida que sopra aqui e ali, nos desenhos do cenário e personagens; e é
assim que um tempo vai se construindo para os que o viveram e não o
viveram. Adelto, como um Jorge Semprún, se coloca na postura de quem usa a
linguagem para cavar no poço da memória.
“Eu era muito pequeno”, conta Adelto, “quando algumas destas histórias
aconteceram. Mas, enquanto as escrevia, ouvi vozes. Vozes de pessoas que
já não estão mais entre nós – perdidas por aí, por esse mundo imenso, numa
cova rasa e sem lápide, ou no fundo do mar”. Personagem e autor
vasculhando a memória fazem deste romance uma obra contemporânea,
implicada no discurso que busca resgatar o tempo e a possibilidade até de
sermos humanos.
Porque se Merleau Ponty tem razão quando diz que “uma sociedade vale pelo
que nela valem as relações do homem com o homem” –. o que valerá a nossa
sociedade?
Envoltas na neblina (é beira-mar), caminham estas vidas confusas em que o
antigo militante comunista é hoje, ontem, recolhedor de apostas do jogo do
bicho e os homens parecem caminhar para algum lugar indefinido, sem forma.
É neste aparente caos que emerge, poderoso, o golpe militar de 64, e a
Ordem se impõe e carrega os anônimos, os anti-heróis para a perplexidade e
o horror de uma silhueta cinzenta que se vê da beira do cais; signo do
Novo Estado é esse navio- calabouço e limite, cheirando a “mijo, suor e
merda”.
E quando a existência passa a ser um calabouço, não pensem que o mundo se
torna um reino de heróis. “Os homens maldiziam o dia em que haviam entrado
naquela merda de política e o que queriam era só uma oportunidade para
voltar ao lar, conseguir um novo emprego e sobreviver”. Olhares que se
alternam bruscamente, a geografia política ou a política geográfica
penetram na alma de cada um. Já não olham para o mar, com as suas
múltiplas formas e linhas; já não vêem navios flutuando para algum lugar,
qualquer lugar.
Os prisioneiros do navio-calabouço estão condenados a olhar para a cidade
onde viviam, a ver silhuetas da natureza, das casas, dos bondes correndo
pelas ruas em que construíram as suas vidas. E o que pode ser mais
comovente do que esses homens caminhando pelo navio e olhando essa cidade
– história brasileira, próxima e perdida em umas poucas vidas que vão
desaparecendo, assim como a lembrança dessa época.
Adelto Gonçalves é um dissidente brasileiro. A sua história não vai
agradar àqueles que venceram em 64. Não por acaso, no começo dos anos 60,
um desses generais vencedores disse que a história era escrita por quem
ganhava. Mas para os nossos e outros dissidentes, num mundo em que a
palavra se concentra em círculos cada vez mais restritos, o Poder se
fecha, a palavra é negada aos intelectuais e aos homens comuns. Mas as
coisas não ficam aí. No campo da memória, da história, das frases, há uma
guerra que nunca termina. Não disse um dissidente tcheco, Milan Kundera,
que “a luta do homem contra o Poder é a luta da memória contra o
esquecimento”
Não nos diz um personagem de Adelto, em obscuro manuscrito encontrado
depois de sua morte (no qual poderia falar com toda a sinceridade), que,
“às vezes, penso que essa capacidade de discordar é a única possibilidade
que a humanidade tem de não ser levada irremediavelmente para o abismo
obscurantista?”
E tudo isso ganha uma irremediável grandeza, pensem o que pensarem de
nosso tempo os vencedores, os que querem monopolizar o ser e o pensar de
nossa História. De vozes que alguns ouvem e outros falam emerge o
contratempo, o contraponto, o resgate, a palavra não-oficial. É o poderoso
terreno da linguagem em que flutuam (como aquele sórdido navio) – “a
história, as histórias – estamos citando Semprún –, as narrativas, as
memórias, os testemunhos, a vida; o texto, a própria textura, o tecido da
vida”.
|