MARCOS FAERMAN
Prefácio para Vira-latas da Madrugada (1981) *

Este é um romance de sons delicados e de histórias tristes. Em suas páginas, sopra o vento, bate a chuva, se ouve a ressaca do mar – e as vozes dos homens, sempre as vozes, construindo penosamente a narrativa e a vida de personagens que nos desafiam pela sua não-linearidade: marinheiros, prostitutas, malandros do cais, gente que vive no porto de Santos e que é subitamente cercada por um desses momentos-limites da História, como foi o ano de 64 nessa cidade.

Como é difícil o mundo para alguns homens! Como nosso planeta, nosso país, não parecem feitos para os homens – mas contra os homens, principalmente para os heróis e anti-heróis de Adelto Gonçalves. Nas conversas do cais, dos bares, nas luzes vermelhas e nas sombras dos cabarés estas vozes murmuram “sempre seremos uns fracassados”. E como não se entender que flua com tanta insistência e consistência o sentimento de que ser humano é uma vergonha, quando os homens perdem até o direito ao sonho?

Nessa história nos comove o desejo de seu autor de reconstruir um circuito da vida de nossa Nação, da vida de alguns homens em um certo espaço. A memória de Adelto se abre para o abismo do momento em que o autoritarismo se implanta violentamente no país.

E a memória do autor passa a ser também a memória dos outros, personagens de uma história densa como o mitológico Nego Orlando, célebre no porto por sua arte na dança e na briga; homem que as grã-finas de São Paulo buscavam para algumas horas de amor, porque também nisso ele era bom, famoso... Por onde passava no porto, se abriam alas de reverência... Lá vai o Nego Orlando, aquele que participou da revolta da Ilha Anchieta e deixou de lado os colegas bandidos na hora em que eles ameaçaram matar crianças, mulheres... Lá vai o Nego Orlando...

Esta é uma história de muitas histórias e algumas confissões. O contraponto à narrativa é um discurso tímido do autor; breve interferência na vida que sopra aqui e ali, nos desenhos do cenário e personagens; e é assim que um tempo vai se construindo para os que o viveram e não o viveram. Adelto, como um Jorge Semprún, se coloca na postura de quem usa a linguagem para cavar no poço da memória.

“Eu era muito pequeno”, conta Adelto, “quando algumas destas histórias aconteceram. Mas, enquanto as escrevia, ouvi vozes. Vozes de pessoas que já não estão mais entre nós – perdidas por aí, por esse mundo imenso, numa cova rasa e sem lápide, ou no fundo do mar”. Personagem e autor vasculhando a memória fazem deste romance uma obra contemporânea, implicada no discurso que busca resgatar o tempo e a possibilidade até de sermos humanos.

Porque se Merleau Ponty tem razão quando diz que “uma sociedade vale pelo que nela valem as relações do homem com o homem” –. o que valerá a nossa sociedade?

Envoltas na neblina (é beira-mar), caminham estas vidas confusas em que o antigo militante comunista é hoje, ontem, recolhedor de apostas do jogo do bicho e os homens parecem caminhar para algum lugar indefinido, sem forma. É neste aparente caos que emerge, poderoso, o golpe militar de 64, e a Ordem se impõe e carrega os anônimos, os anti-heróis para a perplexidade e o horror de uma silhueta cinzenta que se vê da beira do cais; signo do Novo Estado é esse navio- calabouço e limite, cheirando a “mijo, suor e merda”.

E quando a existência passa a ser um calabouço, não pensem que o mundo se torna um reino de heróis. “Os homens maldiziam o dia em que haviam entrado naquela merda de política e o que queriam era só uma oportunidade para voltar ao lar, conseguir um novo emprego e sobreviver”. Olhares que se alternam bruscamente, a geografia política ou a política geográfica penetram na alma de cada um. Já não olham para o mar, com as suas múltiplas formas e linhas; já não vêem navios flutuando para algum lugar, qualquer lugar.

Os prisioneiros do navio-calabouço estão condenados a olhar para a cidade onde viviam, a ver silhuetas da natureza, das casas, dos bondes correndo pelas ruas em que construíram as suas vidas. E o que pode ser mais comovente do que esses homens caminhando pelo navio e olhando essa cidade – história brasileira, próxima e perdida em umas poucas vidas que vão desaparecendo, assim como a lembrança dessa época. 

Adelto Gonçalves é um dissidente brasileiro. A sua história não vai agradar àqueles que venceram em 64. Não por acaso, no começo dos anos 60, um desses generais vencedores disse que a história era escrita por quem ganhava. Mas para os nossos e outros dissidentes, num mundo em que a palavra se concentra em círculos cada vez mais restritos, o Poder se fecha, a palavra é negada aos intelectuais e aos homens comuns. Mas as coisas não ficam aí. No campo da memória, da história, das frases, há uma guerra que nunca termina. Não disse um dissidente tcheco, Milan Kundera, que “a luta do homem contra o Poder é a luta da memória contra o esquecimento”

Não nos diz um personagem de Adelto, em obscuro manuscrito encontrado depois de sua morte (no qual poderia falar com toda a sinceridade), que, “às vezes, penso que essa capacidade de discordar é a única possibilidade que a humanidade tem de não ser levada irremediavelmente para o abismo obscurantista?”

E tudo isso ganha uma irremediável grandeza, pensem o que pensarem de nosso tempo os vencedores, os que querem monopolizar o ser e o pensar de nossa História. De vozes que alguns ouvem e outros falam emerge o contratempo, o contraponto, o resgate, a palavra não-oficial. É o poderoso terreno da linguagem em que flutuam (como aquele sórdido navio) – “a história, as histórias – estamos citando Semprún –, as narrativas, as memórias, os testemunhos, a vida; o texto, a própria textura, o tecido da vida”.

 
Os Vira-Latas da Madrugada

* Este prefácio foi escrito para o romance Os vira-latas da madrugada, de Adelto Gonçalves, publicado em 1981 pela Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro. O livro chegou a ser publicado com o prefácio, mas a editora, à época sob intervenção econômica do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES), com receio de represálias por parte do governo militar, recolheu os exemplares à gráfica e mandou arrancar o texto de Marcos Faerman.