Em Os Passos em Volta, há uma aversão e um combate ao fútil, ao comum, a
tudo aquilo que mais facilmente ocupa e invade uma pessoa, uma vez que a
desvia do que é da ordem do profundo. É por isso que os problemas
económicos e sociais não consomem grandes linhas nesta obra, bem ao
contrário das questões profundamente humanas. Em certa medida, por aqui
se explica o conflito interior com que o poeta desde cedo, em «Holanda»,
começa por se dividir entre um Deus “devorador de natas” (17)[1] e um
Demónio que, tal como ele, solitário, “está no meio das vacas” (16). No
entanto, convém, desde já, explicar que esta distinção, neste conto, em
particular, e na obra, em geral, não pode ser considerada sob o ponto de
vista teológico ou do Bem e do Mal, devendo ser compreendida antes como
um conjunto de normas ou princípios pelos quais muitas pessoas se deixam
reger comparativamente a outro conjunto de normas ou princípios. Neste
caso concreto, a sociedade holandesa que se distingue do poeta. Por
outras palavras, queremos dizer que Deus aqui não existe
independentemente do Demónio. Na verdade, eles dependem um do outro, até
porque as “natas” jamais existiriam sem a presença da sua matéria‑prima,
que são as “vacas”.
O Deus teológico, e mais concretamente o católico, já o referimos, não
existe para o poeta, sendo mesmo categoricamente rejeitado, como se vê
em «O Quarto»:
– Sou, como direi?, sou um homem religioso.
– No entanto…
– Claro, não acredito em nada disso… nessas coisas… imortalidade da
alma… Deus, o barroco Deus teológico… o bem comezinho, o mal comezinho…
Detestável, tudo isso, as crenças e virtudes da baixa religiosidade.
(141)
É certo que esta rejeição está dispersa um pouco por quase todos os
contos, mas ela ganha uma dimensão pujante particularmente em «Equação»,
com as palavras descrentes e exânimes da Velha Avó: “é tudo mentira…”
(135). E note‑se que o peso desta constatação se abate devastadoramente
sobre o poeta, porque ela é assumida por uma Avó que “sempre fora
católica e praticara com assiduidade os ritos” (133), que “frequentava o
culto, mandava celebrar missas pelos seus mortos, confessava‑se e
comungava” (134).
Ao abordar esta problemática, assim como as várias concepções de Deus
presentes ao longo de Os Passos em Volta, Agostinho Ferreira resume bem
aquela perspectiva que nos parece ser a mais significativa para este
estudo: “Deus não é essa realidade que as religiões ensinam. É, antes,
um estado de consciência, o ideal que o poeta procura ou a energia que o
lança na eterna procura por ruas circulares” (Ferreira, 1996: 172). Deus
torna‑se, então, um propósito por assimilar em si o conhecimento, a
verdade total e universal, capaz de dar respostas à inquirição do poeta
e a procura aqui converte‑se naquilo que Mário Garcia (2000) reconhece
como “um itinerário para Deus”, um percurso de um ser que se questiona,
que encara a espiritualidade e a consciência do mistério da vida, que
busca o infinito e o absoluto no limite da experiência humana; um ser
que se destaca por completo da sociedade em que se insere e que vê na
materialidade dos seus valores um sério obstáculo ao seu percurso,
porque eles são susceptíveis de desviar o homem do que é essencial na
vida.
Ou seja, o poeta, porque pensa, quer conhecer mais do que aquilo que
está próximo dele, deseja atingir outras metas, tem consciência de que
há aspectos na vida e nele próprio por conhecer. Logo, torna‑se
necessário romper com determinados valores e estereótipos existentes
numa sociedade que ignora a outra realidade das coisas e da própria
vida; logo, “recusa Deus como causa, admitindo‑o no entanto como
potência” (Lopes, 2003: 78). É o que se depreende da advertência que o
poeta deixa no final do conto «Polícia»: “Seja dito que vós, os desta
nação, ignorais muita coisa. Talvez Deus não vos inspire” (32). O Deus
do poeta é este; é o que lhe inspira o desejo da procura; é o que “está
na tão experiente expectativa das tumultuosas passagens dos comboios”
(50); é o que reflecte a energia de um lugar puro; enfim, é o que se
identifica, de alguma forma, com Singapura. Mas o Deus teológico também
existe, só que esse pertence à sociedade em geral, aos “desta nação”,
aos que se deixam controlar por ele e, por isso, nada lhe diz.
O conto «Holanda» parece ser esclarecedor quanto a toda esta
perspectiva, uma vez que se desenvolve em volta de uma sociedade
holandesa que cegamente perfilha valores tradicionais e materiais, em
oposição a um poeta solitário que tem “a alma perdida” (15) e se sente
como “um apóstolo sem fé” (17). Deus aqui representa essa tradição
estabelecida, a materialidade, a consciência racional que permitiu aos
holandeses conquistar um país às águas. O Demónio, pelo contrário, é
associado à inconsciência, à transgressão, à liberdade individual.
Portanto, Deus está entre os holandeses e o Demónio está irónica e
solitariamente no meio das vacas dos holandeses, embora a existência de
um justifica a existência do outro; sem Deus, o Demónio perderia todo o
sentido e vice‑versa. Eis a correspondência imprescindível que também
faz combinar a vida e a morte, o interior e o exterior, o nacional e o
estrangeiro.
Atendendo ao grande objectivo do poeta de Os Passos em Volta, não é
difícil perceber a forte atracção que ele sente pelo Demónio, numa
Holanda impávida e serenamente mergulhada na indiferença perante
qualquer tipo de assunto mais intelectual e intimamente humano. Daí que
a visitação do Demónio numa certa noite fá‑lo perceber a sua posição de
homem dentro da realidade holandesa circundante, iluminando assim o seu
espírito obscuro: “Tu és um homem. Sim, sou um homem – disse – mas não
sou holandês” (ibid.). Como homem que é, o poeta procura um sentido para
a sua vida; tem outras necessidades que vão muito além das necessidades
básicas e elementares, necessidades essas que se prendem com uma certa
ânsia de algo mais. Desta forma, destaca‑se dos holandeses, dos
restantes homens, da restante comunidade onde está inserido, porque esta
lhe esconde a verdadeira essência e dimensão das coisas e da vida.
É por esta razão que, para Maria de Fátima Marinho, o conto «Holanda»
“tem como especial função marcar uma distanciação entre o poeta e os
outros, que aqui estão simbolizados pelos holandeses. Esta distanciação
é tanto ou mais necessária para o entendimento de todo o livro, onde a
solidão e o isolamento do homem (qualificado pelo artigo definido que
sempre o antecede) se afirmam a cada passo” (Marinho, 1982: 71‑72).
Cria‑se assim uma divisão entre o poeta e a restante comunidade que o
leva a um distanciamento e a uma alienação voluntária relativamente a
tudo aquilo que faz parte da mundividência tradicional dessa comunidade
pertencente aos “outros”, porque não há lugar para ela nos seus
horizontes. Daí que ele se movimente, solitário e marginal, como já
vimos, pelos espaços fechados. No que toca àquilo que de mais
profundamente humano existe, a Holanda nada lhe tem a oferecer:
Na Holanda não se fazem fogueiras ao ar livre: nada se percebe do fogo.
A Holanda é um país cada vez maior. O mar rouba‑lhe meio metro, e logo
os holandeses roubam dois metros de terra ao seio fervente das águas.
– Não compreendo a justiça cósmica.
E murmura para si: Nada conhecem das coisas do fogo. Os dons mais
profundos do homem estiolam dentro deles. Deverei amá‑los? (19)
Para os holandeses, não há especulações, não há lugar para procurar a
sacralidade das coisas, para tentar compreender a origem delas, o
sentido primordial que essas “coisas do fogo” contêm em si desde sempre.
A vida é encarada de uma forma prática e pragmática, uma vez que as suas
preocupações apenas se limitam ao concreto, às vacas, aos produtos delas
derivados e à engenharia expansiva e arbitrária do seu território. E o
conhecimento, para o poeta de Os Passos em Volta, não está aí.
O conhecimento que ele procura assume‑se, sobretudo, como uma
preocupação fundamental, que o faz adquirir uma postura inquiridora
sobre o mundo e sobre o homem. Daí que a viagem pelo estrangeiro seja
vista como um percurso que ele deve fazer no sentido de encontrar uma
luz/um lugar que o ajude a compreender um pouco melhor o mistério que
envolve o mundo e o homem, que o ajude a acalmar a sua ânsia e
inquietação.
Na Holanda, não há espaço para este tipo de preocupação íntima, porque o
materialismo é o que a torna “um país cada vez maior”. É por esta razão
que, para o poeta, enquanto “a justiça cósmica” carece de fundamentos, a
incerteza do amor para com os holandeses vai emergindo desse “país cada
vez maior”, um amor que se revela absolutamente necessário ao
conhecimento que procura – “Eu preciso do amor. Preciso aprender” (18)
–, já que ele se assume como “a pulsão fundamental do ser, a líbido, que
impele toda a existência a realizar‑se na acção. É ele que actualiza as
virtudes do ser” (Chevalier & Gheerbrant, 1994: 62). Daí que a questão
do amor seja uma questão fulcral de Os Passos em Volta e esteja
directamente ligada à viagem do poeta, na medida em que ele se constitui
como a grande força motriz que o impele à procura dessa outra realidade
que está muito além da materialidade insignificante de uma Holanda onde
era “tudo falso, luminoso, necessário” (109).
Não são só as várias expressões que proliferam por toda a obra que nos
permitem constatar isto, mas também as várias personagens que agem
especialmente motivadas pelo intenso ímpeto do amor, desde o poeta de
«Holanda», passando pelo funcionário KZ de «Coelacanto» e pelo assassino
Pêro Coelho de «Teorema», até chegar ao poeta que procura chegar a
Singapura, em «Como se vai para Singapura» ou ao homem viajado de «O
Quarto».
De facto, existe em Os Passos em Volta uma forma muito própria de agir e
organizar o mundo através do amor que faz desenvolver uma espécie de
religião pessoal e privada, através da qual a complexidade vivencial e
existencial do poeta‑personagem central é capaz de se distinguir da
vulgar moralidade comum, alienada daquilo que é realmente importante na
vida. Como vimos, o poeta não deixa de se assumir como um homem
religioso. A grande peculiaridade reside no facto de ser ele próprio a
querer determinar os valores da sua religiosidade, vista muito mais à
luz do universal e do profundo, como uma forma de entender os elos que
unificam todas as coisas e lhes concede a harmonia à custa da
totalidade. Mas talvez seja a liberdade a expressão máxima desse amor
(ao conhecimento) que ele procura inevitavelmente dentro de uma
sociedade fútil que não só o limita, como também o obriga a transgredir,
a subverter e a recusar os seus valores. Daí a característica demoníaca
do seu espírito, precisamente porque os valores que toma para si são os
opostos dos instituídos na e pela sociedade, do mesmo modo que o Demónio
é o oposto de Deus, embora necessite sempre deste para se definir como
oposto.
Num elucidativo artigo, Pedro Sena‑Lino (2004: 69) mostra que a noção de
inferno “como ordem da desordem, como uma estrutura organizada para a
desestrutura” se foi perdendo ao longo dos tempos. Desta “perda de
noção”, surge o “simplismo” que é apresentar o inferno como mal, como
uma mera oposição paraíso/inferno. Na realidade, e na sua dimensão mais
verdadeira, o inferno também se constitui “como um sistema operativo” (ibid.:
71), que dispõe logicamente de uma (des)ordem. Ao homem, cabe‑lhe
escolher entre uma e outra ordem, entre os dois espaços‑tempo, paraíso
ou inferno. Enquanto isso não acontece, ele vive num “espaço de
suspensão, de coma, de lugar entre” (ibid.: 74), um “terceiro termo” que
também foi esquecido e excluído. Não deixa ser curioso e interessante
notar que esta ideia representa uma atitude que vai contra a
superficialidade da pós‑modernidade, que evita as oposições e procura
aproximar tudo, como se não fosse necessário fazer escolhas, porque
desapareceram os valores, os ideais, as ideias próprias. “A sociedade
pós‑moderna é a sociedade em que reina a indiferença de massa, em que
domina o sentimento de saciedade e de estagnação, em que a autonomia
privada é óbvia, em que o novo é acolhido do mesmo modo que o antigo, em
que a inovação se banalizou, em que o futuro deixou de ser assimilado a
um progresso inelutável” (Lipovetsky, 1989: 10‑11). Brota daqui uma
sensação de vazio que é o apanágio da sociedade pós‑moderna, que “já não
tem ídolos nem tabus, já não possui qualquer imagem gloriosa de si
própria ou projecto histórico mobilizador; doravante é o vazio que nos
governa, um vazio sem trágico nem apocalipse” (id., ibid.: 11). Brota
também uma espécie de caos que Eduardo Lourenço considera ser o
esplendor do mundo em que vivemos (cf. Lourenço, 1998: 5‑11).
O conto «Lugar Lugares», ou melhor, o lugar lugares desse conto, “esse
lugar com um pequeno paraíso e um pequeno inferno”, onde livremente “as
pessoas andavam de um lado para o outro” (53), funciona como o espaço
perfeito desse terceiro excluído, desse vazio ou desse caos que muitas
pessoas tendem a viver. De facto, parece‑nos que uma das intenções deste
conto é mostrar como um espaço entre, “o espaço preferido de toda a
obra” (Marinho, 1982: 77), pode facultar ao homem a lucidez necessária
para ele poder optar livre e individualmente por aquele outro lugar que
bem desejar.
O lugar lugares, esse espaço entre, jamais poderá ser um espaço para
viver, porque é caótico, dissolvido e desagregado, é marcado pelo vazio
e pelo caos, pela fragmentação e pelas incertezas entre um paraíso e um
inferno, como nos dá conta a desconexão narrativa (cinco páginas
ironicamente estruturadas sobre um único parágrafo com várias vozes e
conversas fragmentárias). Por isso, feita a escolha e percebido o lugar
a atingir, há que seguir caminho:
Era uma criatura excepcional. Depois, foi‑se embora, e até já
desconfiavam dele, e embarcou, e talvez não houvesse lugar na terra para
ele. E onde está? Mas era uma alegria bárbara, uma vocação terrível.
Partiu. […] Ele era belo e tremendo, com aquela sua alegria, e não tinha
medo, e só a vibração interior da sua alegria fazia com que os copos se
quebrassem entre os dedos. Foi‑se embora. (57)
Também o KZ de «Coelacanto» “abandonou tudo, e desapareceu” (65). Ir
embora ou desaparecer significa sempre sair do espaço entre, do
“terceiro termo”, do lugar lugares; significa procurar um outro lugar,
uma outra ordem, uma outra religiosidade, enfim, outros valores,
diferentes daqueles em que se vive, mesmo que talvez não haja “lugar na
terra para ele”. De qualquer forma, o que importa é procurar “o espaço
de outro conhecimento” (176), aquele em que a criança[2] de «Coisas
eléctricas na Escócia» uma vez viveu.
No contexto global de Os Passos em Volta, esse outros valores do
poeta-personagem central aproximam‑se dos valores demoníacos, não só
porque ele acredita que são aqueles capazes de tornar a sua procura
possível de ser realizada, mas também porque eles inquietam, perturbam,
não apaziguam, não promovem a letargia e a dormência do bem‑estar. E
falamos em valores demoníacos, pois eles constituem um conjunto de
princípios ou normas que, por corporificarem um ideal de perfeição ou
plenitude, fazem todo o sentido para o poeta.
É por esta razão que ele se assume como um homem religioso à sua
maneira, ou então, no mínimo, semelhante à do homo religiosus
sprangeriano, “aquel cuya estructura mental se orienta permanentemente a
la producción de la suprema vivencia de valor, absolutamente
satisfactoria” (Spranger, 1935: 256) e, enquanto não a encontra, “es un
sin patria, víctima de íntimo despedazamiento, presa de la desesperación”
(ibid.). Por isso, o poeta não se pode deixar distrair e desviar, seja
pelos dogmas religiosos e tradicionais, seja pelos hábitos e costumes, a
que muitas vezes as pessoas se submetem e se acomodam, tal como os
holandeses, acabando por cair numa certa cegueira, que as impede de
querer ver a vida e as coisas como elas realmente são. Desta forma, a
verdadeira essência que elas possuem acaba sempre também por lhes passar
completamente ao lado.
Aliás, é com este mesmo problema que o artista de «Teoria das Cores» se
defronta quando decide pintar o peixe que tem no seu aquário.
Inicialmente vermelho, o peixe começa a desenvolver dentro de si um nó
negro que acaba por o dominar, tornando‑se totalmente preto (cor
demoníaca e obscura) e constituindo assim um enigma para o pintor que
decide reflectir sobre tão singular mudança:
Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na
sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de
mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das
coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.
Compreendendo esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe
amarelo. (24)
A conclusão a que o pintor chega é aquela a que o poeta de Os Passos em
Volta também chega: não é tanto o que se vê, ou o que todos vêem, que
realmente interessa, mas sim o que está por trás dessa coisa, dessa
realidade, a sua verdadeira essência, o seu inverso, aquilo que se foi
perdendo entre a comunidade dos homens. Ser fel à realidade é entender
que essa realidade vive sujeita à “lei da metamorfose”. Ser fel à
realidade é não transmitir o que de imediato se capta das coisas. Daí
que o artista escolha o amarelo[3] para pintar o seu peixe. Daí que o
poeta procure afastar‑se de tudo aquilo que não o deixa investir no que
realmente é importante na vida, isto é, na procura do conhecimento. Daí
que a temática da viagem de Os Passos em Volta espelhe esse enigma do
poeta‑pintor, que é a incapacidade de nunca se captar a essência, pois
pelos sentidos não se consegue aceder a ela.
Este pequeno e intencional desvio até «Lugar Lugares» e «Teoria das
Cores» pretendeu fazer notar que não são novos os valores que o poeta
reclama para si, mas sim outros, aqueles que foram sendo esquecidos e
até mesmo perdidos ao longo dos tempos por entre uma sociedade
indiferente e incapacitada de compreender e perspectivar o amor ao
conhecimento como a única força capaz de dar sentido à condição humana.
Não há dúvida de que é o amor que motiva o poeta nessa procura, nessa
caminhada que faz de forma a compreender o(s) mistério(s) da vida e que
o ajude a acalmar as suas inquietações, as angústias e as frustrações do
seu dia‑a‑dia, expressas, por exemplo, em «Como se vai para Singapura»:
Os dias longos, as noites no meio do mar. Espero o porto de chegada, as
virtudes restituídas, o espírito enfim reconciliado com o mundo. E
desembarco, há qualquer experiência surpreendente, caminho para o
conhecimento. Consigo agarrar essa meada ainda irreconhecível: a maneira
como tudo se enreda em tudo. Desabituei‑me dos milagres. Sabe‑se como é:
quase todas as manhãs acordo angustiado, esforço‑me por imaginar que
este dia é virgem e primeiro, carregado de poderes enigmáticos,
destinado às revelações. Literatura. Merda. Trata‑se de mais um dia em
que me vou chatear, aturar os meus semelhantes, a filha‑da‑putice
teológico‑emocional de um Deus que, ainda por cima, não existe.
(111‑112)
O tom decepcionante com que a palavra “Literatura” é dita, ainda para
mais aliada à ideia de irritação que a interjeição transmite, revela bem
as limitações inerentes ao esforço da procura do poeta. Quanto maior é a
ânsia, maior é a decepção. Daí que a viagem tenha de ser realizada
interiormente, através da imaginação, sem qualquer ajuda de um Deus
teológico comummente partilhado pelos seus semelhantes. E embora
Singapura, o (im)possível lugar do conhecimento, também não exista,
permanece, contudo, o caminho para lá se chegar, “a comoção e a
esperança […] E é nelas próprias que o milagre do mundo pode ser
concebido” (113).
Ora, é esta consciência, intelectualmente alimentada pelo amor, que
ainda lhe consegue injectar o ânimo necessário para continuar a sua
procura. É que o poder do amor, com toda a sua força libidinal, tende a
ultrapassar todos os obstáculos: “A libido ilumina‑se na consciência,
onde se pode transformar numa força espiritual de progresso moral e
místico. O eu individual segue uma evolução análoga à do universo: o
amor é a procura de um centro unificador que permitirá realizar a
síntese dinâmica das suas virtualidades. Dois seres, que se entregam e
se abandonam, reencontram‑se um no outro, mas elevados a um grau
superior de ser, se a doação tiver sido total e não só limitada a um
nível do seu ser, muitas vezes o carnal. O amor é uma fonte ontológica
de progresso, na medida em que é efectivamente união, e não apenas
apropriação. Quando pervertido, em vez de ser o centro unificador
procurado, transforma‑se em princípio de divisão e de morte. A sua
perversão consiste em destruir o valor do outro, a fim de tentar
escravizá‑lo de forma egoísta em vez de enriquecer o outro e a si mesmo
numa doação recíproca e generosa que faz com que ambos cresçam, ao mesmo
tempo que se tornam cada vez mais eles próprios” (Chevalier & Gheerbrant,
1994: 62).
Embora a extensão deste fragmento seja um pouco exagerada, ele contudo
reveste‑se de um enorme valor por encerrar em si uma ideia fundamental à
compreensão do amor em Os Passos em Volta. O amor é, de facto, a grande
força que move a personagem central na sua procura, mas a grande
peculiaridade daquele é que é sempre vivido e sentido individualmente.
Por outras palavras, o amor visto como ligação sentimental entre pessoas
simplesmente não existe, como podemos confirmar em «Duas Pessoas», cujo
distanciamento pode também ser visto à luz de uma consequência da
impossibilidade do amor entre o poeta e a prostituta, porque ambos (cada
um à sua maneira) são pessoas conspurcadas por uma sociedade indiferente
e alheia aos problemas e impulsos humanos. São incompreendidos por serem
quem são e por fazerem o que fazem. E por muito que tente haver um
pequeno desejo de iniciativa de aproximação, ou melhor, de salvação,
quer de um quer de outro, é a permanente hesitação que subsiste sempre:
Vou junto dele, toco‑lhe no braço, beijo‑o na boca. Um momento
apodera‑se de mim a vertigem da misericórdia: salvá‑lo, salvá‑lo. Mas eu
própria estou cansada, farta das pessoas, os falsos enigmas, as noites
em que entro e saio da cama de homens desesperados. Mas este homem
perturba‑me. Poderia amá‑lo, erguê‑lo da sua dolorosa confusão, colocá‑lo
numa dignidade de que, é evidente, perdeu o sentido. (162)
A salvação só poderia acontecer por meio do amor. Seria um caso em que a
união destes dois seres resultaria, de facto, na “força espiritual de
progresso moral” de que Chevalier & Gheerbrant falam. Uma força tanto ou
mais necessária à ascensão de uma dignidade pessoal que se foi perdendo
por entre a falsidade e a concupiscência de uma sociedade desesperada de
amor. De resto, é por esta razão que os homens procuram a prostituta.
Ela é paga para os iludir, fingindo o amor. Um fingimento que só poderia
ser superado se houvesse uma entrega ou uma “doação” voluntária por
parte dela ao outro, mas não a um outro qualquer. O poeta é alguém que,
tal como ela, se destaca da sociedade. Ele é um outro, mas não um
qualquer. Daí que ela deslumbre uma nesga de possibilidade de amá‑lo, de
salvá‑lo, que rapidamente se desvanece muito por culpa do desânimo e das
desilusões que tem arrastado dentro de si ao longo da vida.
É nesta tensão simultânea de necessidade e afastamento de amor que o
poeta de Os Passos em Volta vive. As propriedades paradoxais do amor,
ora união ora divisão, ora iluminação ora destruição, ora generosidade
ora egoísmo, não lhe são indiferentes. Aliás, podemos dizer que são
estas mesmas propriedades que mais se identificam com ele, porque
reflectem bem o próprio paradoxo da consciência humana do homem que
deseja o amor e que Ruy Belo (1984: 156) conseguiu perceber de forma tão
subtil. Um paradoxo que se traduz, no caso de Os Passos em Volta, na
consciência de uma ânsia cerceada, isto é, de querer atingir Singapura e
não poder ou de querer o amor e não conseguir.
Nesta perspectiva, o amor só pode ser um alimento para a vida se também
for um veneno para a morte. Unem‑se assim amor e morte, da mesma forma
que se unem vida e morte, Deus e Demónio, ou interior e exterior,
criando um par íntimo e imortal que tem atravessado os tempos, desde as
primeiras civilizações até aos nossos dias, mas que nunca foi
harmonioso, como nos dá conta José Ribeiro Ferreira: “Amor e morte. O
amor que tanto pode superar a morte como ser a sua causa, ser motivo de
destruição” (Ferreira, 2004: 20). Quando assim é, o amor torna‑se um
crime, um acto demoníaco, e o poeta, um criminoso, uma projecção
demoníaca. É o que acontece num dos mais pujantes contos da obra.
Falamos de «Teorema», que nos remete para a história amorosa de D. Pedro
e D. Inês, desenvolvida sob uma óptica completamente diferente da de
toda a literatura inesiana.
Se, por um lado, a tradição literária portuguesa tem incidido sobretudo
a sua abordagem no par amoroso e na cruel e trágica desgraça que se
abate sobre ele, Herberto Helder, por outro lado, foca a sua atenção no
destruidor, no assassino de D. Inês, Pêro Coelho, ou não fosse este o
narrador do conto e uma extensão do próprio poeta de Os Passos em Volta.
Para o narrador, o romance de Pedro e Inês não apresenta qualquer tipo
de interesse. Pelo contrário, é o acto criminoso em si que exerce
fascínio sobre ele, de tal forma que todo o conto assenta a sua
estrutura na formulação de um juízo lógico capaz de justificar tal acto
(e daí o título «Teorema»), muito embora saibamos o verdadeiro motivo
histórico. No entanto, a História não ocupa aqui lugar (cf. Alexandre,
1978: 2 e 9), ao contrário do que acontece com a restante tradição
literária, uma vez que é a própria história do narrador que se apodera
dele:
O rei olha‑me com simpatia. Fui condenado por assassínio da sua amante
favorita, D. Inês. Alguém quis defender‑me, alegando que eu era um
patriota. Que desejava salvar o reino da influência castelhana. Tolice.
Não me interessa o Reino. Matei‑a para salvar o amor do rei. D. Pedro
sabe‑o. (117/8)
Na verdade, o motivo do assassínio corresponde mais a uma conduta de
carácter íntimo do que político, o que não é de todo estranho, já que a
política, à semelhança da religião, com todas as suas regras, convenções
e rituais, capazes de sufocar o homem, simplesmente não faz parte da
mundividência do poeta. Sendo assim, é uma “tolice” pensar que o acto
foi perpetrado por razões pátrias. O amor é aqui o único grande motivo
da morte de D. Inês e trata‑se de uma morte essencial à sobrevivência do
amor de D. Pedro. Por outras palavras, é pela destruição da união
amorosa que o poeta criminoso pretende salvar o amor de D. Pedro para
que ele se prolongue pela eternidade, tornando‑se um “alimento, de
geração em geração” (121). É uma morte necessária, muito embora o rei
conscientemente não perceba isso:
A multidão grita e aplaude; só o rosto de D. Pedro está triste, embora
nele brilhe uma súbita luz interior de triunfo. Percebo como tudo está
ligado, como é necessário as coisas se completarem. Não tenho medo. Sei
que vou para o inferno, visto eu ser um assassino e o meu país ser
católico. Matei por amor do amor – e isso é do espírito demoníaco. O rei
e a amante são também criaturas infernais. Só a mulher do rei, D.
Constança, é do céu. Pudera, com a sua insignificância, a estupidez, o
perdão a todas as ofensas. Detesto a rainha. (119)
Um acto destes só poderia pertencer ao “espírito demoníaco”, daí que o
lugar que está destinado ao poeta seja o “inferno”, naturalmente por
oposição ao “céu”. E aqui sim, falamos numa perspectiva católica, já que
o país também é católico. O rei e a amante “são também criaturas
infernais”, porque conhecem a intensidade do amor, porque a sentem e a
vivem adulteramente, contra tudo e contra todos. Por ser assim, concebem
um motivo de destruição que tem de levar inevitavelmente à morte de um.
Apesar de D. Constança ter conhecimento do romance extraconjugal, nada
faz. Limita‑se a perdoar a ofensa amorosa, seguindo um catolicismo que
ensina a perdoar e não a matar. Aliás, a rainha jamais poderia matar D.
Inês, porque se o fizesse estaria a perpetuar o amor entre a amante e o
marido. O objectivo da morte não é o da anulação, mas o da perpetuação.
Pêro Coelho sabe‑o bem, por isso assume a tarefa de assassino e mata D.
Inês. E tanto o faz que paga com a própria morte. Mas também a dele é
necessária, é fiel ao amor do rei; é uma doação “para as coisas se
completarem”. Por isso, não há arrependimento nem receio do inferno.
Pelo contrário, há mesmo uma confiança férrea, que é uma constante ao
longo do conto[4], na necessidade do seu acto, o qual, por ser
singularmente irredutível, até se podia inserir dentro do “espírito do
terrorismo” baudrillardiano, tal é a “irrupção de uma morte bem mais do
que real: simbólica e sacrificial – ou seja, o acontecimento absoluto
sem apelo” (Baudrillard, 2002: 22). No entanto, não se vê, em «Teorema»,
e até mesmo em Os Passos em Volta, um uso sistemático de terror ou de
violência, nem sequer existe um acto com fins ideológicos ou políticos.
Trata‑se de um acto de amor. Daí que seja mais pertinente falar em
“espírito criminoso”, embora o acto de Pêro Coelho exiba a “arma fatal”
dos terroristas: “a sua própria morte” (cf. id., ibid.: 26).
Mas curiosamente, em «Teorema», tudo se consume em nome do amor do rei e
simultaneamente tudo se realiza sem o seu consentimento. O que este acto
criminoso vem mostrar é que a paixão que une os dois amantes não pode
ser vivida em privado sob pena de se tornar egoísta. Embora esta ideia
possa parecer estranha, na realidade, não o é e não entra em contradição
com o que afirmámos atrás. Só precisamos de pensar na principal função
de um rei, que é governar o seu povo, protegendo‑o e proporcionando‑lhe
alimento de forma a garantir a subsistência de todos. O problema é que
nem todos conseguem entender o amor como um alimento, mais
concretamente, um alimento espiritual. Vivido a dois seria egoísmo;
vivido a muitos seria doação pura, a maior doação possível. Pêro Coelho
percebe‑o, o que o leva a matar. Desta forma, a abertura do amor do rei
ao mundo, ou melhor, à comunidade demoníaca, a esse “povo bárbaro e
puro” (119), onde o poeta de Os Passos em Volta naturalmente se inclui,
torna‑se fundamental.
Para Georges Bataille, a paixão e a morte estão ligadas de uma forma
íntima por causa da grande energia que libertam mutuamente. “A paixão
invoca necessariamente a morte, desejo de morte ou de suicídio: o que
designa a paixão é um halo de morte” (Bataille, 1968: 21). Ofuscado pela
paixão, o rei não se dá conta desta verdade. De novo, Pêro Coelho
percebe‑a e leva‑a ao conhecimento do rei, matando D. Inês e tornando‑se
ele próprio o representante da morte para benefício de todo um povo:
D. Inês tomou conta das nossas almas. Liberta‑se do casulo carnal,
transforma‑se em luz, em labareda, em nascente viva. Entra nas vozes,
nos lugares. Nada é tão incorruptível como a sua morte. No crisol do
inferno havemos de ficar os três perenemente límpidos. O povo só terá de
receber‑nos como alimento, de geração em geração. Que ninguém tenha
piedade. E Deus não é chamado para aqui. (121)
Só um amor eterno pode ser puro. E é principalmente pela morte violenta
que se ganha o verdadeiro sentido de tudo. O grande amor solitário de D.
Pedro e a violência das mortes de D. Inês e Pêro Coelho, porque os
elevam acima do mundo vulgar, porque os tornam “perenemente límpidos”,
porque os transformam em mito, vão permitir ao povo ganhar uma nova
ordem, uma nova consciência, mais aberta e atenta às leis do
conhecimento e do sagrado, semelhante à do poeta de Os Passos em Volta.
Mas estas mortes não são um ponto de chegada a essa consciência, mas
antes um ponto de partida, uma vez que “o sagrado é exactamente a
continuidade do ser revelada àqueles que, num rito solene, fixam a sua
atenção na morte de um ser descontínuo” (Bataille, ibid.: 22). D. Inês e
Pêro Coelho são seres descontínuos, mas permanecerão contínuos se o
público, inclusive D. Pedro, que presenciou e participou na sua morte,
aceitar a revelação do acto. E só um sacrifício humano, uma morte
violenta, “uma morte espectacular […] é susceptível de revelar o que
habitualmente escapa à atenção” (id., ibid.), especialmente à daquelas
pessoas cujas mente estão disciplinadas na racionalidade e na piedade de
um Deus católico que o poeta recusa e, por isso, “não é chamado para
aqui”. É assim que crime e sacrifício aproximam‑se, porque de ambos
brota a energia e a força orientadoras da procura do conhecimento. Nesta
perspectiva, um crime motivado pelo amor torna‑se um crime a favor do
conhecimento (cf. Guedes, 1979: 191).
Mas a dimensão do sacrifício, da morte violenta, da destruição do valor
do outro e da actividade demoníaca não se esgota em «teorema». Também em
«Aquele que dá a Vida», conto central de Os Passos em Volta, essa
dimensão está bem patente, embora assuma contornos distintos. Em todo o
caso, os dois contos relacionam‑se.
A morte em praça pública de Pêro Coelho para regozijo de D. Pedro e da
população, em «Teorema», equivale à festa onde a morte do touro é o
momento alto da comemoração, em «Aquele que dá a Vida». Quer num quer
noutro, a morte incide sobre as personagens principais e a vida
prolonga‑se para além da morte: Pêro Coelho continua a defender o seu
teorema mesmo depois de lhe ter sido arrancado o coração e o homem que
vence o touro é um homem que ressurge de uma morte incompleta.
Em «Aquele que dá a Vida», situamo‑nos numa aldeia em que o trabalho
diário nos campos representa a única subsistência de vida que os seus
habitantes conhecem, a grande tarefa das suas vidas. Interrompendo por
instantes a dureza desses momentos, a festa vem trazer um pouco de luz à
escuridão do dia‑a‑dia da aldeia. Por isso, ninguém lhe fica
indiferente, nem mesmo o homem solitário que “sai da casa de que sai
pouco” (94):
Ele vem à festa. A festa não é uma coisa menor. Bem: é uma fábula, uma
ficção verdadeira. Porque os homens semearam os campos e cuidaram dos
animais. Com sol, neve e chuva, num circuito inexorável. Sempre.
Dormiram, acordaram, esgotaram‑se. Vivem na escuridão, no vácuo. Têm
mãos. Respiram sombriamente sobre as mãos. Depois param. Então criam a
festa. (95)
A festa é uma tourada, um sacrifício, no qual toda a população,
mulheres, crianças e homens, pode participar, nem que seja assistindo,
gritando, aplaudindo, incentivando, enfim, revendo‑se naquele que se
julgue capaz de vencer o touro, “essa espécie de massa rebarbativa, com
uma obscura vida interna onde se imagina que circulam imagens fundas e
carregadas” (93). Um homem, sentindo essa competência, salta para o meio
da praça e enfrenta o touro, mas é rapidamente ferido.
Contrariado, é forçado a abandonar a arena. Eis, então, que um novo
homem, o homem solitário, decide lutar com ele. Depois de alguns
movimentos de violenta energia, o homem consegue dominá‑lo e vence‑o no
momento em que crava sagazmente a sua faca “no ponto imperceptível que o
destino oferece à derrota e à morte” (100). É a morte do touro; é o fim
da festa; é a alegria da população para o homem vencedor e é a ofensa
para o homem vencido.
Esta ofensa é tanto ou mais inaceitável que a única forma de desforra é
a morte do homem vencedor. Por isso, ajudado por quatro companheiros
protegidos pela solidão da noite, o vencido dirige‑se à casa isolada do
vencedor e todos desferem sucessivas facadas sobre ele e abandonam‑no à
mercê da morte. Mas o medo e o terror de perder o sangue do corpo, de
ceder à morte, fazem‑no ter a força necessária para se envolver nas
ramas de linho arrecadadas da avultada colheita, tapando assim as várias
chagas de modo a conseguir chegar à primeira casa vizinha em busca de
auxílio. Consegue sobreviver e seguem‑se dias de convalescença, até que
chega o dia em que está recuperado, finalmente recuperado para impor a
sua vingança. É um homem novo, com um novo corpo e uma nova consciência.
Sente‑se como se:
[…] a vida inteira tivesse nele mesmo o seu começo, e o fim. Uma
presença tão radical no mundo, e a um tempo tão ambígua, talvez pudesse
ser uma lição: uma lição qualquer, aquela que um homem morosa e
dolorosamente pôde acumular, dentro de uma casa, apartado pela ameaça da
morte, e por ela mesma equilibrado no jogo dos poderes, no sopro da
vida. Esta espécie de ciência que satura os ressuscitados converte‑os em
anjos exterminadores. E então ele vai ao encontro dos homens, ele, o
anjo exterminador. […] Deseja reaparecer, ser um anjo demoníaco, um
ressuscitado. São os direitos de quem entrou nas trevas e saiu das
trevas. eu sou aquele que esconjurou a morte. Eu venho do fundo. (103‑104)
Ele adquire uma consciência demoníaca e agora também ele, à semelhança
de Pêro Coelho, faz parte do “espírito demoníaco” (119). Assumindo uma
postura bem diferente da de D. Constança, que, em «Teorema», perdoa a
ofensa amorosa e causa uma grande indignação aos olhos de Pêro Coelho,
este novo homem procura justamente a vingança, a destruição do valor do
outro, atitude esta que certamente aprazeria o assassino de D. Inês, já
que se aproxima dos princípios por ele seguidos e defendidos.
Simbolicamente, os dois homens voltam a encontrar‑se na mesma praça do
confronto tauromáquico, mas não chegam sequer a lutar, porque o outro:
Então cai de joelhos e diz: – Perdão! […] Repete: – Perdão! E o homem,
que parece nem olhá‑lo, que olha para dentro, sussurra ainda com a mesma
tenebrosa cumplicidade: – Perdoo‑te se disseres… a cabeça do outro está
exposta – nua e frágil – à luz muito alta. A luz corta‑a. – Se disseres:
tu tiraste‑me a vida e tornaste a dar‑me a vida. E a luz parece agora
fluir e reflectir naquele rosto entregue, parece fazer nele um nó
doloroso, e a boca diz: Tu tiraste‑me a vida e tornaste a dar‑me a vida.
O homem sorri de leve, como se tivesse ouvido uma frase infantil, e o
seu espírito violento e irónico não pudesse captar toda a graça de uma
frase tão inocente. (106)
Mais uma vez, o homem solitário sai vencedor. A conduta do homem
vencido, desistindo física e mentalmente, exprime o desejo aterrador de
querer conservar a vida. Pedir o perdão é pedir aterrorizadamente pela
vida. Embora o homem vencedor não saiba o que é perdão, porque não o
chegou a pedir, ele conhece o medo e o terror, a incerteza da própria
vida, ou então, se quisermos, a sensação da própria morte: um “momento
suspenso” (cf. Sena‑Lino, 2004: 78) em que o corpo lutou entre as duas
dimensões e acabou por tirar partido de ambas, pois fê‑lo ganhar uma
nova consciência. E o facto de ele exigir ao outro a pronunciação da
frase “tu tiraste‑me a vida e tornaste a dar‑me a vida” mostra que ele é
conhecedor dessas duas dimensões.
A frase contém em si a destruição e a dádiva, a morte e a vida, a
ignorância e o conhecimento. Trata‑se de um (novo/outro) jogo, de uma
luta de consciências. Por isso, o homem “olha para dentro”. Permitir ao
outro continuar a viver tendo de suportar todo o peso de uma nova
consciência pessoal é, para o homem vencedor, para aquele que dá a vida,
a maior vingança, a maior lição. “Por meio da consciência, o homem
alcança o poder ou a vulnerabilidade que o destrói” (105). E é sobretudo
por meio da consciência que o homem se distingue do touro. Daí a
presença deste animal no conto, precisamente para evidenciar oposição.
Todas as acções do touro são baseadas em teoremas de brutalidade e de
força incontrolada e incontrolável (cf. Chevalier & Gheerbrant, 1994:
650), que o tornam vulnerável e o levam à sua destruição. Mas elas
traduzem uma certa vingança perante a exposição a que é submetido. Desta
forma, o touro não pensa, age violentamente. O homem vencido também não
pensou, agiu da mesma forma. Mas o homem vencedor pensou violentamente,
agiu conscientemente e alcançou o poder. Enquanto que o touro é aquele
que dá a vida à morte, o homem vencedor é aquele que dá uma nova vida,
porque conhece o antes e o depois, o começo e o fim, a vida e a morte.
Ele percorreu a linha circular que vai da vida à morte e recomeçou‑a,
tal como o marinheiro de «Cães, Marinheiros» ou o homem de «O Quarto»,
com uma nova consciência. E fazer com que o outro obtenha uma nova
vida/consciência é o maior perdão que se pode dar.
Entre «Aquele que dá a Vida» e «Teorema», entre o homem solitário e Pêro
Coelho, existe acima de tudo uma forma de agir e uma atitude que
reflectem os valores (demoníacos) que a consciência de ambos
religiosamente defende por serem os mais puros e verdadeiros.
Simultaneamente, esses mesmos valores são incompreendidos e
irreconhecíveis por outros alheios ao conhecimento de si, da vida e do
mundo.
Os sacrifícios ou os crimes de ambos os contos (do touro, de D. Inês e
de Pêro Coelho) constituem um símbolo dessa renúncia aos vínculos
terrestres que impossibilitam a aderência a esse conhecimento. Esses
actos são uma forma de questionar a realidade, uma tentativa de
ultrapassar a barreira racional e material do quotidiano que dificulta a
procura do entendimento mais fundo do sentido último da vida, uma vez
que pretendem “criar uma vertente de inumanidade que opere a secagem das
zonas enternecidas do humanismo tradicional” (Coelho, 1994: 41). Para
Herberto Helder, romper com todas as barreiras, em nome do conhecimento,
tem de ser uma determinação, uma vontade:
É forçoso ir longe, aos recônditos do tempo, ir beber nas noites
ocultas. Parece que a física, agora, começa a trabalhar no sentido da
pergunta poética: as coisas têm entre si relações de mistério, não
relações de causa e efeito. Abre‑se caminho através da obscuridade,
inquirindo, seguindo adiante. (Helder, 1990: 30)
Ir longe é ir para além da realidade; inquirir é procurar o mistério das
coisas. daí que ele dote Os Passos em Volta de um fundo interno de
contemplação, de onde sobressai uma espécie de orientação e realização,
que é precisamente a imagem da vida possível de ser vivida sob o poder
da poesia associado à existência humana e não como algo externo ao
indivíduo. É por esta razão que o caminho da personagem central da obra,
sendo um poeta, tem de passar inevitavelmente pela poesia, pois só ela é
capaz de apreender, na e pela palavra, a procura da realidade
silenciosa, complexa e obscura que enforma a sua consciência e o mundo.
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