O termo
romancista distingue um escritor de obras ficcionais em prosa.
Classificar uma obra como romance pode atender a uma disposição prévia,
como aquela responsável por determinar a organização das obras
literárias nas estantes ou gôndolas de uma livraria, porém desconfio que
o termo romance não compreende mais que os esforços pragmáticos de
catalogação comercial e bibliográfica, de livreiros e bibliotecários. A
experiência literária supera qualquer arranjo ou presunção taxonômica,
que é o que distingue um estudo cosmológico ptolomaico da cosmologia
relativista. (E já estou a pôr a estrela à frente da luz em relação ao
livro que pretendo brevemente comentar...) Efeito menos nocivo que a
catalogação talvez seja admitir que romance faz alusão a um assunto
geral, aplicado para todo escrito literário que não vem expresso em
versos. É que toda tipologia – incluindo as mais elásticas e amorfas –
deixa vácuos nos quais a realidade se move para ocupá-los. Ou, dito de
outro modo, é mais comum do que se pensa que a configuração literária de
um texto resista a lógica conformadora das teorias fechadas.
É um lugar
comum da literatura e da crítica o postulado segundo o qual os
monumentos literários compõem uma ordem de certo modo ideal, que se
amplia e se transforma na medida em que se agregam ao cânone novas
obras, dotadas estas de grande e suficiente energia que valoriza e
intensifica aquelas obras consagradas como canônicas. Uma boa história
ficcional, em que os leitores se identificam com a experiência comum das
personagens, prova apenas que o continente da ficção é bem maior que a
imitação servil da natureza humana. A natureza narrativa da ficção e o
aspecto imitativo consagraram romances como os de Balzac. Mas já há
algum tempo que a forma literária romanesca, baseada em fórmulas
ficcionais em que personagens agem em direção a um desfecho, não
satisfaz a escritores e leitores.
É por isso
bastante provável que, tendo lido as primeiras páginas, leitores de
Retornar com os pássaros (Leya, 2010), de Pedro Maciel, venham a
indagar-se: – cosmologia num romance? – qual o sentido das informações
científicas apresentadas sobre a constituição universal da natureza? Ou
é igualmente provável que haja leitores que perguntem: – em que momento
começará o romance? Ou ainda: – aonde irá terminar esta narrativa
enciclopédica? Arriscaria dizer que o terceiro título do autor de a Hora
dos náufragos satisfaça menos a leitores da tradicional ficção romanesca
que leitores pouco acostumados à estrutura romanesca convencional.
“Há dias
em que avanço ou retorno no tempo para me reencontrar. A partir de certo
ponto não há mais qualquer possibilidade de retorno. É exatamente esse o
ponto que devemos alcançar.” (27) No romance Retornar com os pássaros,
em lugar da esperada ênfase na narrativa, o texto aposta na busca: a
escolha, o gesto de liberdade e recusa; o caminho como excentricidade,
disseminação e errância de opções e sentidos. Busca que combina
informação científica e revelação mítica com expressão poética. É um
texto perturbador na medida em que experimenta novos caminhos para a
prosa ficcional. É um texto ideológico que parte de conceitos ou
posições prévias, fato, a nosso ver, já atestado desde o início do
livro, combinando simultaneamente os modos poético e irônico da
expressão literária. Poético e irônico desde a epígrafe, assentada
sobre o fundo escuro de duas páginas, como a evocar o kósmos em
toda sua ordem universal e magnificência, onde reluzem as palavras
fastas de Horácio: “Ergui um monumento mais duradouro que o bronze //
mais alto que a régia construção das pirâmides (...)”. Irônico e poético
no Prólogo, não sem certa ambiguidade, como a descompor a epígrafe
citada, quando lemos: “(...) não me iludo mais em plena luz do dia. Não
mais disfarço a minha loucura. Rio de mim mesmo (...) Vejo que nada tem
mais sentido. Improviso fugas. Corro do tempo parado. Memorizo manhãs de
um não tempo. Vislumbro coisas invisíveis. Quero o que era infinito.
Retorno com os pássaros. Experimento sensações orientais. Desoriento-me
no ocidente. Não lembro quem sou nem onde estou. Nem sempre regresso de
minhas viagens.”
Nem sempre
regresso de minhas viagens.
O Prólogo já fala ao que vem Retornar com os pássaros: negar afirmando o
que acena ser uma aventura ontologicamente literária; radicalizar uma
busca, baseada na opção pelos valores compossíveis, muito além das
contradições que sustentam diferenças e impossibilidades; atravessar as
páginas já escritas de nós mesmos; ultrapassar os territórios da memória
e da especulação filosófica, o inferno de Orfeu e Rimbaud. A palavra e
o lugar destes poetas foi alargar em seu tempo e lugar a palavra
poética. Retornar com os pássaros também o faz esse alargamento em
direção à poesia: além da textura do romance (ou, traindo-me no
raciocínio, pelas malhas e sortilégios do próprio romance, que talvez
seja ele também um além das fronteiras do gênero), mais além de outro
lugar, outro tempo, qualquer ilusão. É assim que, por todos os efeitos,
é a literatura que se alarga sobejamente com este texto de Pedro Maciel.
“Monumentos imperecíveis e feitos imortais, a própria morte e o amor
mais forte que a morte serão como se nunca tivessem acontecido.” (38)
“Quase tudo é passageiro. O que permanece, os poetas o fundam.” (44).
Retornar com os pássaros – seja este texto compreendido como o monólogo
vertiginoso de uma personagem em crise (como o anatomizaria talvez um
Lukacs), seja como a expressão pungente de um eu lírico que assume o
risco de remontar-se às origens (em seu sentido mais amplo possível) –
certamente levará os leitores que pulsam com as palavras e o kósmos
a repensar o tecido ludicamente vivo que pode ser o romance, este
romance. Ele o é: literal e estruturalmente lúdico. Oxalá cada um dos
leitores possa compreender como o texto e a vida podem ser estruturas
remontáveis; e que o sonho e a palavra, cada um de nós pode secretá-los
em silêncio neste regresso com os pássaros. |