Parafraseando Heidegger, o artista é a origem da obra; a obra é a origem do artista, e do leitor. Como prolongamento necessário de artista e obra, há um ser mais ou menos sensível às letras impressas: dos decodificadores de letras, passando por consumidores estratificados segundo a sensibilidade, chegamos até à figura nada etérea de juízes trombeteando seus juízos. A razão de ser do texto literário é, portanto, o leitor. Leitor que se pode enunciar como escritor. Comover o leitor que se torna escritor é o que pode garantir a perpetuidade de um autor do passado. Estamos falando de cânone. Como bem explica Leyla Perrone-Moisés, tendem a permanecer na história literária os autores e textos que confirmam os valores do presente, processo esse de perpetuação no qual a escrita do passado se torna solidária com a do presente. Na condição de leitor, como esclarece a autora de Altas Literaturas, o que tende a orientar o escritor-crítico no exercício de sua magistratura – diferentemente da crítica literária universitária com pretensões científicas – é a busca de critérios que norteiem sua própria criação artística. Porque há este consórcio flagrante entre escritor e crítico, entende-se o sentido da sentença de Borges, segundo a qual “cada escritor cria seus precursores”. Estamos falando, portanto, de um cânone relativo, da crise de autoridade e da imposição de consensos, vez que teria se imposto aos homens de letras na modernidade “a necessidade de buscar individualmente no passado as razões de escrever, e as razões de fazê-lo de determinada maneira”.
A crise de valores instalada a partir dos oitocentos – fênomeno, causa e sintoma do moderno em poesia – é marcada historicamente pelo arbítrio engajado do escritor-crítico, ou a variante poeta-crítico, ao encarnar a aventura do reaprender a ver o mundo por meio da poesia, interrogá-lo e poetizá-lo como tarefa de uma reaprendizagem essencial. “Experiência extrema, experiência-limite, negação de toda a experiência que não seja a da acção poética. Conceito de transgressão. O poeta moderno não escreve para dizer algo que conhece mas para dizer o que ignora, para encontrar o verdadeiramente desconhecido, o novo, o inicial.” Estas palavras do poeta-crítico português António Ramos Rosa que, referidas a esta experiência radical da poesia moderna, bem sintetizam a aspiração e a determinação com que ao longo de mais de cinqüenta anos vem dedicando-se incansável e tenazmente às tarefas e coisas da Poesia. (Esta dedicação absoluta, refira-se de passagem, valeu-lhe de Bernard Nöel o epíteto de Francisco da Assis da poesia.) De sua longa folha de serviços consta indubitavelmente um mobiliário dos mais preciosos da literatura de língua portuguesa no século XX em poesia, crítica e tradução: em poesia, obras vigorosas desde O Grito Claro (1958) quando estréia em livro; na crítica, ensaios penetrantes como os publicados em Poesia, Liberdade Livre (1962); em tradução, notadamente o rigor e a sensibilidade aplicados a autores franceses como Paul Éluard (1963). Acrescente-se, ademais, sua participação no meio literário português como crítico colaborador de revistas como Seara Nova e Colóquio, tendo ainda exercido a co-direção da Árvore (1952-1954), Cassiopeia (1956) e Cadernos do Meio-Dia (1958-1960). O amor ativo de Ramos Rosa à Poesia lhe valeu, como referimos, uma aproximação com o autor de Il cantico del sole e tem lhe rendido com efeito o justo reconhecimento, como atestam os incontáveis prêmios recebidos, dentre eles, o Prêmio Pessoa (1988) e o Grande Prémio de Poesia APE/CTT (edição 2005) por Gênese.
Um centauro, poderíamos dizer da natureza do poeta-crítico Ramos Rosa: rosto, torso e braços humanos como a caracterizar o Olhar racional do crítico sempre pronto a aferir o que de poesia e afins vem a lume; garupa e pernas de cavalo como a restituir ao poeta a percepção animal algo merleau-pontyana, necessária à atividade criadora, quando lúcida e programaticamente busca a suspensão de todos os conceitos e hábitos adquiridos para atingir o estado de ignorância, único e fiel desiderato de sua palavra poética. A indissociabilidade entre poeta e crítico essencializada na figura do centauro pode ser ainda esclarecida na medida de sua fidelidade à “constante interrogação” que tem, no dizer do autor de Poesia, Liberdade Livre, marcado a “literatura verdadeiramente moderna” e por convicção sua própria obra poética. “A minha poesia é cognitiva e metapoética. Se a metafísica é uma forma de conhecimento do universo, das coisas, da linguagem, então sim, tenho essa inquietação. Os meus textos não se reduzem a um âmbito circunstancial. Mas quando escrevo um poema, o tema que se me impõe imediatamente é o da palavra, da linguagem. Desde sempre.”
Esta exigência “cognitiva e metapoética” levou Eduardo Lourenço a distinguir Ramos Rosa entre as demais vozes portuguesas pelo que conceituaria de “poesia crítica”. Caráter crítico em que o ser se interroga no branco da página. Diz então o poeta-crítico: “No ponto de partida da criação não está uma positividade ou uma plenitude de ser, uma realidade constituída, mas sim o vazio e a distância constitutiva da linguagem, a negatividade e a carência. É este ‘nada’ que põe em ação a imaginação, que a torna a um tempo receptiva e criadora, permitindo à consciência abrir-se à inapreensível totalidade.” Diz então o crítico-poeta: “O ser é presente enquanto se interroga sobre o seu ser e se oculta assim atrás de si mesmo.”
Por toda esta alta literatura, é que se fazia imperativo publicar Ramos Rosa no Brasil. Pela interpenetração de poeta, crítico e tradutor, engajados numa aventura pela opacidade da realidade em que o poeta experimenta a sombra visceral inerente a toda palavra que procura desvelar o real. "Amar esta sombra que desliza e que é talvez já a presença que nos foge”. Por toda esta altíssima literatura, é com irrefreável júbilo que damos notícia da edição de Animal Olhar, antologia a cargo de Rosa Alice Branco e Rodrigo Petrônio, publicada pela Escrituras, na coleção Ponte Velha. Trabalho meticuloso que procura dar conta do imenso cabedal poético deste autor que talvez seja o Camilo Castelo Branco da poesia, tal a prole gigantesca que compreende dezenas de livros de poesia gestados e gestando-se até o momento. No prefácio, em forma de diálogo entre os organizadores, Rodrigo Petronio acena para a possibilidade de alteração do cenário poético brasileiro com a presença deste poeta que interroga o real e a palavra que lhe funda a realidade. Oxalá!
Enfim, António Ramos Rosa cruza o Atlântico. O juizforano Murilo Mendes certamente o receberá: – O Paraibuna te saluda.
O olhar de Murilo Mendes abre-se às forças da origem
e num lento silêncio até o fundo do imóvel
inaugura a nupcial articulação.
Vazio e presença, ruptura e aliança
na atenção aguda à evidência e ao enigma.
Os deuses mostram-se então na imobilidade do ar
e no puro instante da contemplação irisam-se.
E o olhar abre-se imensamente às nascentes nocturnas
captando o eco perdido em cada coisa.
Nessa glória que ilumina tudo, é alta e rapidíssima
a língua da visão que contorna os confins
e deixa transparecer o indivisível círculo
que em si preserva o silêncio divino e o fulgor
de umas quantas palavras que pulsam como estrelas.
A convivência fecunda entre poetas pode ser medida no nível da leitura como ocorre neste “O olhar de Murilo Mendes”. No poema cabe perguntar: o quanto de reflexo de si mesmo vê António Ramos Rosa em Murilo Mendes? Fecunda consciência integradora que se vê e diferencia-se no semelhante posto diante de si. Que a palavra deste autor, sua funda consciência poética, fecunde a de quanto poetas brasileiros em gestação.
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