Você olha pra mim e pergunta como estou. Nem sei o que responder, porque no fundo você sempre sabe como estou. Você sempre soube e por mais que eu queira vestir os meus disfarces, jamais vou conseguir lhe convencer. Você conhece a nudez da minha alma, conhece a verdade desses meus rabiscos e diz que eu não mudei nada, que continuo tendo pensamentos furtivos como os da adolescência, quando escrevia nomes pela vidraças embaçadas.
Ri-me disso. Ri por fora, porque por dentro eu chorei e acho que até molhei os olhos. Você não disse que eu também escrevia nas paredes e até nos móveis velhos da minha avó. Mas eu me lembro bem disso, e, perdoa-me por discordar: eu mudei. Eu mudei demais! Aquela menina saiu de mim num sábado qualquer e foi levada por um vento qualquer para um lugar qualquer e eu nem sei direito quando foi.
Talvez tenha sido naquela primeira vez que pintei a boca, raspei as pernas e coloquei sapatos de salto, já com o nítido desejo de ser outra. E todos perceberam a mudança: "Nossa como você cresceu; você já é uma mulher e nem tínhamos percebido!" E eu quis ser essa mulher grande. Quis crescer... crescer.. até atingir o ápice das fêmeas. Você sabe como é, eu quis viver a essência, eu quis ser mulher até a última gota, excessiva, inteira, que vive, atinge, conhece e carrega dentro de si a fertilidade de fazer as coisas nascerem.
E isso eu consegui. Quantas coisas foram geradas dentro de mim. Quantos momentos de ternura concebi! Quantos sentimentos nobres foram embrionados no meu ventre! Quantos partos tive! E todos foram partos com dor. Essa dor de fêmea, profunda, violenta que nos foi destinada, penso, por castigo.
Aí você me olha com esse seu jeito de mulher latina, entendendo a razão da minha fragilidade e da minha falta de ar. E eu lhe olho sentindo saudades do tempo em que eu cabia inteira nos seus braços sem ter essa compreensão do tamanho das coisas, quando cada partícula sua era tão grande que preenchia todos os meus espaços vazios. você era capaz de resolver todos os meus problemas e ainda se sentava na máquina e me costurava um vestido novo. Eu me sentava no chão a recortar retalhos coloridos e a coisa mais nostálgica da qual me lembro era que você conseguia sorrir com agulhas entre os dentes.
É, eu cresci demais! Mas não tanto que não precise de sua ajuda. Não tanto que não tenha a coragem e a humildade de, num domingo triste, pedir: ajude-me a parir mais este fôlego de vida! E, bendito seja o fruto do nosso ventre, amém!
Lucilene Machado
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