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JÚLIO CONRADO (1969)
Foto: César Cardoso |
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Namoros voláteis na primeira vez que vi
Paris
(Apontamentos para um livro de memórias) |
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Com o problema
argelino no centro do furacão na Paris de Junho de 1959, pisei pela
primeira vez o chão da gare de Austerlitz depois de vinte e nove horas
de viagem em caminho de ferro, primeiro no comboio da carreira regular
(o dos emigrantes) e por fim no da bela linha eletrificada entre Hendaia
e a capital gaulesa que nos punha nesta última em apenas sete horas. Era
o TGV da época.
À minha espera
estava o José Alexandre, o nosso homem em Paris, como a ele se referiam,
com ufania (ou se calhar com uma pontinha de justificada inveja), os
condiscípulos da Escola Primária de Carcavelos.
Nesse ano
inchado de transformações, conflitos, decisões históricas,
convi-zinhavam uma Paris lúdica, simpática, permeável à fantasia e à
joie de vivre, e uma Paris tensa, vigilante, conflitual, simultaneamente
sedutora e amea-çadora, dualidade de que um peso pluma desembarcado com
uma carrada de mitos felizes na cabeça dificilmente apreenderia à vista
desarmada.
Hoje evoco momentos cuja excecio-nalidade
se resume ao alvoroço pueril de um rapaz de fracos recursos financeiros
possuído pela vontade de espreitar o mundo para lá da cerrada persiana
lusíada.
Foi mais a
aspiração de me sentir livre, correspondido, não excluído, o que me
levou a querer entrever os diferentes códigos e marcas civilizacionais
que uma ida à cidade-luz, supunha, podia proporcionar-me. Olhar, ver,
viver. Tirar dúvidas. Conhecer as medidas exatas dos sonhos. Testar uma
certa sensualidade que se dizia visível na vida quotidiana como um
tesouro à mão, ou de um superficial, todavia enriquecedor, cotejo de
mentalidades que me abrisse os olhos. Porfiava em salvar-me da tristeza.
Tocar novas realidades. Inteirar-me acerca de como era viver em
liberdade.
Muito poucos
dos pressupostos que informam o mito da viagem – fuga, exílio, emigração
económica, desejo de identificar o desconhecido, amplificação do
contacto humano – se perspetivavam nesta minha primeira ida ao
estrangeiro, aos 22 anos, pelo menos de modo manifesto. Substituo todos
estes clichés puros e duros por uma só palavra: curiosidade. Quando
penso que o meu neto mais velho voou para a Madeira em visita ao pai,
que lá trabalhava, com três meses de vida, e aos doze anos esteve no
Brasil – país onde muito provavelmente nunca irei – e que eu só em 1973
andei pela primeira vez de avião, dou-me conta de como eram difíceis os
tempos e como esses rasgos de claridade – a Paris de 59 e de 60 – ambas
as permanências durante um mês – ressoam como um eco da novidade que
decisivamente transformou a minha perceção do real, mesmo não excedendo
os assombros bitola existencial modesta. Nesse tatear experimental,
canhestro e, não obstante, tardio (é bom lembrar que a maioridade se
adquiria aos 21 anos e para a maioria dos mancebos durante o período do
serviço militar obrigatório) abriu-se a fresta através da qual começou a
raiar um saber novo.
O safanão na
rotina que consistiu em alcançar a capital de França quase sem cheta no
bolso, foi apenas uma aventura miúda se comparada com os riscos dos que
atravessavam a fronteira a salto em busca do pão de cada dia, do
estatuto de objetores de consciência ou de refugiados políticos enquanto
adversários da ditadura. Em todo o caso, eu sabia duas ou três coisas
sobre o que esperava encontrar; fazendo delas alvos; consegui, se não
atingi-las na mouche, pelo menos raspar-lhes os contornos.
Sendo, pois,
naquela época, a vida em Paris um misto de risco e de festa, tive
oportunidade de roçar os dois mundos sem me chamuscar, em parte porque
dispus de um cicerone com horas livres, dinheiro e alojamento para me
suavizar a estada e conduzir na cidade sobressaltada pelos atentados às
esquadras e pelos engenhos explosivos que deflagravam perto de edifícios
públicos, quase sempre de madrugada. A FLN tinha feito chegar os
atentados ao coração da metrópole e os defensores da Argélia francesa
replicavam com ações de calibre diverso para influenciar as decisões
políticas de fundo que se avizinhavam. Havia o que na atualidade se
rotularia de terrorismo urbano, mas ainda assim circunscrito, na maioria
dos casos, a objetivos selecionados, longe das matanças indiscriminadas
em larga escala de que é paradigma recente o ataque às Twin Towers. |
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Nos Invalides |
Um mês de férias |
Eu
gozava o meu primeiro mês de férias como funcionário da Câmara de
Cascais, após o cumprimento do serviço militar, e concretizava um sonho
sem o anteparo de qualquer memória literária, histórica ou familiar –
por essa altura não me habitava sequer a presunção de me tornar escritor
nem lera ainda os autores canónicos que depois viriam a contribuir para
que alcançasse tal meta, salvo os esporádicos Capitães da Areia,
Os Miseráveis, Nana e A Besta Humana. Escrever uns
imaturos artigos no jornal de Cascais A Nossa Terra era tudo
quanto eu podia mostrar de trabalho com as letras. Mas existia um
vínculo cultural que me municiava o sonho: o cinema. Cinéfilo compulsivo
desde muito cedo, fruía essa janela aberta sobre o mundo como uma
compensação para os melancólicos dias portugueses da juventude. À Paris
glosada no cinema devo o projeto de me lançar à sua conquista.
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No
Metro |
Relativamente
ao José Alexandre e à minha aprendizagem de Paris. À sensação decorrente
do facto de o último terço da longa travessia se ter realizado em
comboio francês de longo curso numa via eletrificada que permitia, na
altura, as mais altas velocidades, iria suceder-se a descoberta do
Metro, o mítico meio de transporte que nos seus duzentos quilómetros de
linha e uma rede de túneis e gares sobrepostos, servia uma urbe cuja
população rondava os cinco milhões. Curiosamente esse seria o ano
(Dezembro) da inauguração do Metro alfacinha cujo dispositivo em Y não
iria além de três estações terminais: Restauradores, Entrecampos e Sete
Rios, sendo na estação da Rotunda que o trajeto se partia em dois. A
comparação, inevitável, só seria atenuada quanto à dimensão da rede
quarenta anos mais tarde, quando o metro passou a servir a periferia da
capital portuguesa através de implantação de via em extensão consentânea
com a realidade territorial dela carecida.
Ao
chegar a Paris, à noite, aí me estreei a andar de Metro, e como o
percurso do comboio subterrâneo tem um segmento ao ar livre logo a
seguir à estação ferroviária, o Alexandre e eu resolvemos ficar na
plataforma para que pudesse topar, num primeiro relance, o Sena e a
Torre de Eiffel. Estava a composição a percorrer o viaduto quando uma
moça que nos observava, percebendo que o caloiro era eu, se me dirigiu,
apontando o rio:
– Voilà la Seine !
Invadiu-me as narinas e a sensibilidade o odor
sui-generis do Metro parisiense, que viria a consolidar-se mais tarde:
um misto de pneu queimado e de papel velho à mistura com os perfumes
artificiais de raparigas que coloriam os olhos e usavam desodorizantes
mais do que, porventura, o sabonete, criavam uma atmosfera muito
particular que ainda hoje reconheço quando me desloco por aquelas linhas
que as autoridades francesas, cientes de que muitos dos atuais
visitantes da cidade as frequentam por nostalgia, persistem em manter
“iguais” às dos anos vinte, no meu caso às dos anos 59/60. Hoje dá-me um
jeitão meter-me num RER que me transporta diretamente ao aeroporto, mas
nunca prescindo, durante a estada, de uma ou duas digressões utilizando
as tais linhas “velhas”. Cada qual gere os caprichos dos seus fantasmas
com o que acha ser melhor para eles. No que me respeita, o Metro de
Paris diz-lhes muito. |
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O
nosso homem em Paris |
José
Alexandre tornou-se emigrante em França sem ter passado pelos maus
bocados que de uma maneira geral levam os indivíduos a deixar o país
natal em busca de trabalho mais bem remunerado. Sua mãe, Maria Teresa,
viúva, natural do Porto, estava ao serviço, em Lisboa, como governanta,
do representante de uma companhia norte-americana de aviação que, ao ser
transferido para França, insistiu em levá-la consigo pelas suas
qualidades humanas e capacidade de trabalho. José acabou por se juntar à
mãe, logo que ela encontrou condições para o mandar ir, tratando-se,
além do mais, do seu único filho. Quando nos abraçámos na Gare de
Austerlitz, José era já um parisiense de adoção que dominava
fluentemente a língua francesa e se movimentava na cidade luz com
invejável à vontade. Aprendi com ele, logo à chegada, que dirigir
aleatoriamente um piropo a uma mulher bonita em plena rua, não só não
constituía ofensa como implicava réplica sorridente e bem-disposta.
Hábitos diferentes predominavam na pátria, onde “mulher honesta não tem
ouvidos”. |
José acabava de perder o emprego mas recebera uma
módica indemni-zação. Ou seja: tinha argent de poche para
despesas gerais e tempo para me levar à descoberta da Paris
monumental: Notre Dame, Invalides, Torre d’Eiffel, Louvre, etc.
e sítios com outro tipo de fama, Folies, Pigale, e zona
circunvizinha da Tour de Saint Jacques, por onde
circulavam as raparigas do trottoir em busca de clientes
para o desempenho da mais antiga profissão do mundo, daquelas a
que o nosso José Cardoso Pires chamaria mais tarde num dos seus
livros, muito educadamente, meninas de civilização, e cuja
utilidade Jorge de Sena encareceu assim: “Se não fossem elas, ai
dos pobres e dos velhos”.
Retive a informação para o caso de vir a ser
necessária. |
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Júlio e
Alexandre no Chaillot |
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No
Quartier Latin descemos a um autêntico caveau, só para ver
como era. “Moravam” lá os existencialistas, dizia-se. Vimos gente
“normal” e dois ou três americanos, nada mais. (Ainda não tínhamos
cultura para ir em peregrinação ao café Flore ver se estava
lá o filósofo estrábico e a sua Castor). Emoções fortes só pela
madrugada, com consumo obrigatório. Nós andávamos a contar os tostões,
procurávamos distrações baratas, se possível à borla. Deambular pelos
grandes “magasins”, por exemplo. Nas Galerias Lafayette um
turista basbaque, português, deliciado com a largueza do
estabelecimento, o frenesim das compras e o prodígio das escadas
rolantes, comentava a nosso lado: “Isto é que são lojas.” Empregadas
lindíssimas dirigiam-se-nos num francês musical. Fartei-me de ouvir:
“Est-ce-que vous êtes italien?” Sintomático. Em matéria de engates,
os italianos não deixavam os seus créditos por mãos alheias. Estavam
sempre a ser recordados. |
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Nouvelle Vague, De Gaulle, Les Halles,
Franco novo |
Já
ouvira falar da Nouvelle Vague, mais associada ao livro-escândalo
de Françoise Sagan Bonjour Tristesse do que à estreia do miúdo
Jean Pierre Léaud num dos filmes que inaugurou a nova vaga
cinematográfica (À Bout de Soufle, de Godard, palma para o melhor
realizador, em Cannes) sendo que nesse ano se assinalava o arranque
imparável do grupo formado por Chabrol, Truffaut, Godard, Resnais,
Rhomer, etc., para uma nova era do cinema francês. Outros acontecimentos
faziam efervescer Paris: De Gaulle encontrava-se ao leme da
recém-inaugurada V República francesa e preparava o documento que viria
a conferir aos argelinos o direito à autodeterminação. Era decidida a
demolição de Les Halles, o grande mercado que só no início dos
anos setenta seria deitado abaixo. (Conheci Les Halles em três
versões: o velho mercado grossista, o “buraco” onde foi rodado o filme
Não Toquem na mulher branca, de Marco Ferreri [1973] e o atual
Centro Comercial). O franco, velha moeda, seria substituído pelo
nouveau franc em 1960; na ocasião estava-se em período experimental,
com o inusitado espetáculo das montras das lojas exibindo os artigos
marcados com dois preços, folclore monetário que só tivemos entre nós
quando da adesão ao Euro.
Neste
olhar retroativo por umas férias de revelação e pueris espantos haveria
lugar para recriar um desfile de celebridades se eu para aí tivesse
estado virado. Um dos entretenimentos de certos parisienses era
postarem-se em frente aos portões, a conveniente distância, do Eliseu,
para do seu ponto de vista reconhecerem figuras de alto estatuto com
direito a fotografia nas primeiras páginas dos jornais. Mesmo que não
fossem capazes de as discernir, no pátio, quando das chegadas e
partidas, sempre os carros oficiais, ao passarem por eles lentamente
para o rápido agradecimento visitante ao agitar de bandeirinhas, lhes
proporcionava o instante mágico com que enriqueciam o seu álbum de
recordações, podendo dizer a familiares e amigos: Eu estava lá
quando… Enfim, coleções e colecionadores há-os para todos os gostos.
Eu estava lá, sem bandeirinha, quando o Ben Gurion deixou o palácio. Por
mero acaso. Vi o homem de perto, ficou visto.
Reparei, igualmente, que os franceses levavam a sério coisas tão
triviais como as canções e uma delas ouvi cantalorada por gente vária;
intitulava-se Scoubidou e era criação de um rapaz que eu conhecia
de ter passado por Cascais: Sacha Distel. |
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O
senhor Scoubidou |
Este
Distel, músico e artista de variedades, como então se dizia, não possuía
dotes vocais de exceção (aliás a sua reputação musical vinha de ser um
competente guitarrista e compositor de canções ligeiras de receção fácil
por um público predominantemente feminino e, finalmente, um charmeur
de se tirar o chapéu) mas conseguira levar ao castigo Brigitte Bardot,
ícone mundial depois de E Deus criou a Mulher, despida na tela
pelo realizador e então marido Roger Vadim, e isso constituíra um feito
assinalável dentro e fora do universo da bisbilhotice “rosa”. Era, na
altura, o namorado oficial, mas terá recusado um convite de casamento da
parte da vedeta. E quando Sacha Distel esteve no Casino Estoril,
contratado para apresentar cançonetas, a sua reputação estava no auge,
sim, mas por dormir com a mulher com quem o grosso dos homens do planeta
sonhava partilhar travesseiro e lençóis. |
Lá entrevistei o dito cujo para o jornal local
mas não pude acompanhar o texto com a manchete desejada – a
censura jamais o permitiria. Chegado a Paris, apercebi-me
de que o discreto cantor que não deslumbrara o Estoril
desfrutava de uma populari-dade imensa exclusivamente pelo seu
trabalho e até a canção Scoubi-dou, o grande sucesso da
criatura, se tornou a minha mais estável referência
musical da Paris-59. |
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Sacha
Distel entrevistado por Júlio Conrado |
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À
canção, servida por uma letra pateta, singularizava-a uma rítmica
estimulante. Ficou-me no ouvido e sempre que a oiço no You Tube
nunca deixo de a relacionar com o meu debute parisiense Podia ter sido
melhor? Foi o que se pôde arranjar. Ainda dou por mim, de vez em quando,
a assobiá-la como quem não quer a coisa.
Quanto ao artista, já lá está desde 2004. Na sua morte, pensei
que o não deveria chorar. Levara o papo cheio. Corrigi essa leviandade
ao ler recentemente o livro de sua legítima mulher, Francine Distel,
O amor não é simples. Comovente. Uma vida de prazer e de prazeres
fora dolorosamente custeada pelo artista com um sofrimento atroz nos
dois últimos anos, em luta contra um cancro. Combate que ele enfrentou
com grande coragem. Afinal, gostei de o ter conhecido. E também de ler
Francine Distel, antiga campeã de ski, a retaguarda ideal para este
cidadão do mundo e que com o seu livro humanizou a lenda um tanto
frívola do cantor romântico que frequentara, entre vários outros
igualmente famosos, o leito da Bardot. |
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Namoros voláteis |
A
perseguida |
Em 59 era uma
absoluta miragem que pudesse vir a participar numa cena como as dos
filmes (talvez algum protagonizado pelo Eddie Constantine, por aí).
Aconteceu-me coisa parecida mas sem câmara nem operador a captar
imagens. Nos primeiros oito dias tinha aprendido com o Alexandre a
movimentar-me com desembaraço nos novos sítios, aprendizagem que me
consentiu, a partir de então, deslocar-me sozinho usando e abusando dos
transportes públicos, aptidão que viria a revelar-se muito útil quando,
na segunda quinzena, fui deixado em roda livre na cidade devido ao facto
de o meu amigo ter voltado a arranjar emprego, aproveitando eu para me
familiarizar com a baguete e o queijo – instituições francesas –
porquanto Maria Teresa só me garantia (e não era pouco, deuses) o
pequeno almoço e o jantar.
Nessa
tarde (fim de tarde? lusco-fusco?) tomei o Metro na estação Terme
e fiquei na plataforma. Durante a paragem, uma beldade tipo Anna
Karina, de ar assustado, entra e abraça-me com energia, beijando-me
avassaladoramente. “Chiça, que isto aqui vale tudo!”, devo ter pensado.
Ou então fiquei em estado de choque, sem nada pensar. Apercebi-me, no
entanto, de que vinha a ser perseguida por dois homens (polícias,
assediadores sexuais, larápios, ajuste de contas político?) tendo um
deles conseguido impedir que o dispositivo automático da porta
funcionasse. Ainda o ouvi dizer: Oh, la vache s’échape. Como o
segundo perseguidor tivesse entretanto notado que a jovem encontrara o
“namorado” (é a leitura que faço do assunto) conseguiu persuadir o
parceiro a desistir de continuarem no seu encalço, puxando-o e deixando
que a porta se fechasse. A composição pôs-se finalmente em marcha. A
minha história devia ter acabado nesse ponto, talvez com um pedido de
desculpa, sei lá, por parte da desesperada fugitiva. Não acabou. A
rapariga achou-me digno de uma recompensa. Refinou na entrega, no beijo,
na volúpia, até à paragem seguinte. Quando a carruagem se imobilizou,
segurou-me a cabeça e, mergulhando nos meus os seus olhos esmeraldinos,
espelhados por lágrimas suspensas, como que a advertir-me de que deveria
guardar bem guardado na memória os instantes de antologia com que
acabava de me honrar, disse:
–
Merci.
Logo
a seguir, saiu a correr.
Não,
não era a Anna Karina em pessoa. Não se trata da sequência de um filme
de crime e castigo nem de uma peça de ficção. Falo de uma história
verdadeira cujas causas, verdade se diga, me passaram completamente ao
lado.
É por
esta e por outras que suporto alegremente o fedor a pneu queimado e a
papel velho que ainda se faz sentir nas referidas gares do Metro como um
souvenir de boa memória quando por lá passo. Cheiros? Aromas,
imagino. |
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A
rainha do baile |
Ainda as
raparigas caídas do céu aos trambolhões. Como era próprio da nossa
idade, eu e o Alexandre fomos a um baile público como a juventude actual
vai a uma discoteca.
Apesar de jovens e apresentáveis, cedo compreendemos que as pessoas
estavam mais ou menos emparelhadas, sobretudo as que ocupavam as mesas
em torno da pista de dança e se conheciam umas às outras. Só por um
grande bambúrrio sobraria alguma coisa para nós. Isto hoje está
fraco. Não vai dar nada, futurou José. Ficamos um bocado a
ouvir música, depois raspamo-nos. Nada tinha a opor, ele é que sabia
da poda. Chegámo-nos para o pé dos músicos. Mostrou-se mais interessado
na música, eu mais atento à dança, de olhos postos no par que evoluía
languidamente na pista, ela de rosto colado ao dele e a fazer-lhe
festinhas bichanosas na nuca. Ao passarem por mim in love os
olhos dela focavam-se nos meus e exorbitava nas carícias ao par. Era
bela e sexy. Mil vezes desejei estar na pele daquele tipo. Era uma dupla
fixa. Alguns pares desfaziam-se e refaziam-se com diferentes dançantes,
mas aquele era coeso e perdurava na pista sem mudanças. Mantinha-se
também o cruzamento dos nossos olhares, do lado dela já acompanhado de
um breve sorriso (seria para mim? ou para ela própria?). Num dado
instante a música parou e o homem com quem dançava saiu da sala.
Aproximou-se de mim e disse: Dança comigo. Dançámos e recebi
tratamento idêntico ao prodigalizado ao outro. Outro que regressou,
reivindicando o seu lugar sem oposição do objeto do nosso desejo.
Contabilizei uns minutos de felicidade sem perceber o que se tinha
passado. Se fiquei perplexo? Perplexo é dizer pouco. Siderado. Soa
melhor.
José
explicou:
Não quis interromper o aquecimento do motor.
Não
me lembro se foram exatamente estas as palavras proferidas pelo José
Alexandre.
Se
não foram, passam a sê-lo a partir de agora. |
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As secretárias |
As duas moças que trabalhavam como secretárias
num escritório da rua de la Boetie tinham preocupações
com a linha e ocupavam a sua hora de almoço a passear pelos
jardins que confinam com a Praça da Concórdia e os Campos
Elísios, de estômago vazio e sentidos apurados, à espera de um
ensejo para se divertirem. Cruzaram-se connosco. Alexandre quis
mostrar-me mais uma vez como é que se fazia. Meteu-se com
Josette e às tantas comigo e com Lucette formou-se grupo para
uma conversa pegada. De aí a nada tínhamos separado as águas:
José “ficara” talvez com a mais bonita e eu, seguramente, com a
mais sensual. Seríamos todos “comprometidos”, nós com as noivas
portuguesas longe da vista (mas não do coração, como veio a
provar-se) e elas com os seus invisíveis namorados noturnos.
Inventámos ali um quarteto cúmplice na fruição de pequenos
prazeres em que não havia crime porque as leis e os hábitos
locais promoviam o encontro, não o distanciamento. Isto é: o que
fizemos com elas e elas connosco em pleno jardim não foi nada de
irremediavelmente grave mas se fosse em Lisboa teríamos ido
parar à esquadra e responder por atentado ao pudor na via
pública. |
E assim as secretárias quebraram durante uma
dezena de dias as suas rotinas de hora do (não) almoço, e nós
gozámos a vida sem gastar dinheiro – preocupação maior porque as
massas do José Alexandre ameaçavam dramatica-mente chegar ao fim
e novo emprego já o aguardava.
Palavras de Lucette para a história: - Ainda bem que vivo num
país em que cada um pode fazer o que lhe apetece. |
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Paris,
1959 |
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Quinze anos
depois anos também em Portugal atingiríamos esse estádio. E até,
porventura, o ultra-passámos – pela esquerda, pelo centro e pela
direita. Valeu tudo. |
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Paris ida e volta |
Um dia, já na
fase literária, tive a sorte de me cair nas mãos uma das primeiras
edições de Filhas de Babilónia, de Mestre Aquilino Ribeiro. Foi
grande o entusiasmo posto pelo jovem Aquilino na reconstituição da
leviana Paris dos anos dez precedida por uma viagem em ferrocarril no
decurso da qual se sucederam peripécias dignas de serem passados a
escrito. À antiga edição perdi-lhe o rasto.
Como
agora me seria útil dispor desse exemplar em vez da reedição do texto de
1920 já remanejado pelo romancista na edição de 1925 (N. do A. a João de
Barros: Desprezando fascículos inteiros e ajuntando páginas novas,
foi empenho meu reforçar numa das novelas a análise psicológica do
envelhecer – análise unilateral, confesso-o de antemão – e pôr uma tinta
mais suave nos “estudos de mulher”, como se diz na arte de pintar) a
meu ver apresentando um défice de frescura e de poder encantatório em
relação ao livro desaparecido que me desapontou bastante. Trata-se da
novela Os olhos deslumbrados que inaugura a coletânea Filhas
de Babilónia.
Claro
que poderia sempre encontrar na B. N. o exemplar pretendido ou vasculhar
alfarrabistas, mas teria de abrir mão do tempo e da paciência que me são
agora tão caros, pelo que servir-me-ei da edição comemorativa do
centenário do nascimento do escritor (Bertrand Editora e Círculo de
Leitores, 1985) de modo a ilustrar uma perspetiva do que julgo encaixar
com justeza no quadro de incertezas e premonições que o léxico do
criador de Quando os Lobos Uivam poderosamente amplifica.
Atente-se então no “estudo de mulher” e na “análise psicológica do
envelhecer” fechados na moldura de uma viagem de comboio de longa
duração.
Desde
logo o tempo da história e o tempo da história contada criam como que a
sensação de uma narrativa em tempo real. Na remanejada novela
aquiliniana a viagem é extensa, densa e demonstrativa de como a demorada
clausura, mesmo voluntária, desperta apetites, gera desnortes de
vontade, mexe, no caso, com dois seres – ele e ela – atraídos um pelo
outro e que esbarram – esbarram? – na vigilância do pai dela ao ponto de
não poderem entregar-se, sequer, a fugidias carícias, e também no ensaio
sobre a velhice que impede a parte masculina de pelo menos tentar
cumprir o seu papel. A paixão platónica não é a desejada mas é a
possível na circunstância.
Com
efeito, Aquilino desoculta, com requintada ironia, o desgaste do esmalte
relacional, protetor dos segredos dos passageiros transfigurados pela
jornada maçadora até estes se renderem às mais rasteiras confidências.
Confabula uma história de amor impossível, sobrecarregando as tintas
cinzentas na mente do protagonista, cuja idade de trinta e oito anos
pesa no “romance” como uma maldição desmedida. Um pouco mais de ousadia
e auto conhecimento das capacidades do homem no limiar da idade madura
para usar a sua sabedoria como ferramenta de fascínio na atividade
nínfica e ao pobre viajante afastado, pela sua própria timidez, do palco
a que aspirava subir, outra sorte sorriria.
Enquanto elucubra sobre o “envelhecimento” o eu da história descreve e
historia os lugares por onde o comboio vai passando. No escuro,
atravessa-se a Meseta e não faltam alusões à “presença de Espanha” mas é
a jovem Genoveva (a criança que se mata por que eu a tome por uma
mulherzinha) e que, ainda por cima, o conhecia como escritor, aquela
que lhe dilacera os pensamentos (Que idade tem? Doze, quinze,
dezassete anos?).
Se
bem atentarmos, até nem é o extremoso pai, conversador eloquente, culto,
arquiteto com papel de carta armoriado, o principal obstáculo a
aproximações menos relutantes, mas sim a crise andropáusica do
narrador-protagonista, o que tolhe o desenvolvimento positivo do “caso”.
O fator idade ergue um muro psicótico entre ele próprio e o objeto da
sua assolapada afeição que remete para plano inferior, quase inofensivo,
o zelo paterno na proteção à gazelita predisposta – subentende-se – a
facilitar avanços ao madurão. Na prática, trata-se de um mini tratado de
timidez de alguém que “confrangido” na sua “carcaça avelhentada”, sente
o terror do interesse em si da Madona de Minardi “em que é tão temerário
assegurar a criança como entrever a mulher.” Mas afinal o que se passa
com este trintão, que apesar de ter conhecido uma adolescência
reprimida, está de regresso a Paris e já amou “uma ou duas dúzias de
mulheres?” Fará a rábula da timidez inteiro sentido?
Genoveva, a Lolita improvável de Os olhos deslumbrados, não
chegará a descobrir na fuga do amante virtual, à chegada a Paris (ele
apeia-se precipitadamente em Austerlitz, defendendo-se com uma desculpa
esfarrapada, antes da estação terminal, Quai d’Orsay) o que realmente o
afastou de procurar aceder às suas indulgências: o medo.
Medo
foi sentimento que Vladimir Nabokov não experimentou ao criar em 1955 a
sua fenomenal Lolita e o seu obstinado, “velho” e lúbrico Humbert, que
não hesitou em casar com a mãe para chegar à filha.
Pode
especular-se se Aquilino não teria sido capaz de preceder o célebre
escritor russo americano em trinta anos se a sua personagem masculina
não se acobardasse e em vez de descer em Austerlitz o tivesse feito no
Quai d’Orsay.
A que
veio este arrazoo sobre a novela de Aquilino se não só não me revejo nas
angústias do agrilhoado sedutor como jamais vivi um problema semelhante
ao daquele encanecido precoce? A viagem, em si. Aquilino descreve
magistralmente, com o nervo do grande repórter, a sensibilidade do
criador notável e a excelência do seu vocabulário, a atmosfera
pressionante da viagem e a influência daquela na metamorfose
comportamental dos passageiros, no seu deletério fascínio mesclando
oportunidades, cansaços e fugas transgressoras. O novelista observa, de
humor salgado em riste, a anulação das distâncias sociais à medida que
as pessoas vão sendo supliciadas pelos incómodos da longa jornada
ferroviária. Reconheci esse ar pesado, sim, quando li e reli Os olhos
deslumbrados uns anos depois do meu primeiro Paris ida e volta.
À ida
tocou-me na rifa uma feiosa trintona francesa que se divertiu mais
comigo do que eu com ela. No regresso vivi um namoro tórrido entre Irun
e Salamanca no corredor da carruagem com Anne D., de Orleães (ela não
conseguira lugar no compartimento e a sua mala foi a espaços o nosso
assento) enquanto nos lugares sentados, à janela, a portuguesa Maria e o
português Ernesto eram também vítimas do ambiente desmanchado, de
deslaçamento, propício ao romance de recurso para minimizar aquilo a que
chamaríamos hoje o stress.
Entre
o Entroncamento, onde o Ernesto ficou, e Santa Apolónia, eu e Maria
ainda ensaiámos conversa.
Mas
ao apearmo-nos na estação lisboeta cada um de nós estava mortinho por
chegar a casa. |
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Júlio Conrado. Ficcionista, ensaísta, poeta . Olhão, 26.11.1936 . Publicou o primeiro livro de ficção em 1963 e o primeiro ensaio na imprensa de âmbito nacional em 1965 (Diário de Lisboa). Exerceu a crítica literária em vários jornais diários de referência e em jornais e revistas especializados como Colóquio Letras, Jornal de Letras e Vida Mundial. Participação em colóquios e congressos internacionais. Participação como jurado nos principais prémios literários portugueses. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, Associação Internacional dos Críticos Literários, Associação Portuguesa dos Críticos Literários e Pen Clube Português. A sua obra ensaística, ficcional e poética está reunida numa vintena de livros. Alguns livros e ensaios foram traduzidos em francês, alemão, húngaro e inglês.
Ver bio-bibliografia alargada em:
http://penclube.no.sapo.pt/pen_portugues/socios/julio_conrado.htm
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