|
|
|
Foto de Valter
Vinagre |
|
Teolinda Gersão, contista
|
|
A obra literária de Teolinda Gersão, de tão
estudada, não deixa espaço nem tempo para que sobre ela se diga alguma
coisa de verdadeiramente novo. Aliás, nem é essa a intenção que preside
ao presente escrito. Mas como legado diversificado e pluridimensional
que é permite sínteses que lancem as bases de um conhecimento menos
académico e mais acessível a uma recepção espontaneamente solidária,
pelo que tentarei operar sobre generalidades cujo rastreio sirva
objectivos mais utilitários que eruditos.
Tratarei de abordar, nesta base, parcialmente, a
produção da contista.
Teolinda Gersão é, de facto, a mais importante
contista portuguesa da actualidade. As suas histórias curtas lembram a
mestria de uma outra contista de excepção, já desaparecida: Maria Judite
de Carvalho. Aproxima-as um mesmo rigor no governo da língua, afasta-as
as linhas divergentes de resolução dos conteúdos ainda que com horizonte
de fundo semelhante: na autora de
As Palavras Poupadas o desfecho dos contos é irremediavelmente
pessimista, Teolinda Gersão faz interagir na evocação dos cenários da
vida comum por igual deprimentes (o envelhecimento, a depreciação dos
afectos e das coisas, as mudanças de comportamento nos seres humanos
subitamente diminuídos pela doença, designadamente as doenças
relacionadas com a perda da memória, a solidão urbana dos excluídos da
vida prática) uma chispa de magia que recolhe das zonas subliminares dos
seres humanos recriados efeitos fantasmáticos peculiares com uma energia
que protege o sentido das suas histórias dos desesperos radicais.
De realçar, em todo o caso, que quaisquer que
sejam os artifícios “mágicos” de que Teolinda lance mãos para organizar
os contos, uma perspectiva humanista lapida sempre o seu trabalho. Em
causa, para ela, está permanentemente a condição humana, a aspiração de
felicidade e as forças terríveis que a contrariam, os exemplos de
solidão extrema, as angústias dos fustigados pelas circunstâncias. De
todos os elementos estruturais da narrativa aquele a que TG dá mais
importância é à personagem, mormente às personagens “sozinhas”, que pela
sua condição de abandono pela sociedade e pelo sentimento de gradual
despossessão de tudo, ficam vulneráveis à eclosão nas suas vidas de
pensamentos e atitudes “incoerentes” que nesse deserto habitado pelo
desconforto e pela tristeza encontram o adubo mental propício à sua
própria germinação.
Um dos predicados da Teolinda Gersão contista
reside na hegemonização das linguagens que asseguram o trânsito
comunicacional / relacional do mundo social corrente com o qual
estabelece um compromisso “realista” apesar de, aleatoriamente, vir a
ignorar fronteiras que de início parecia não querer violar. Não se
trata, porém, de uma opção estratégico-fracturante com incidência na
escrita. Teolinda move-se com desenvoltura nos dois mundos: o prático e
o imaterial sem mudar muito de palavras. Na mutação do significado,
operação recorrente no seu processo narrativo, começa por não recusar a
cópia, o retrato, o reflexo no espelho, o incidente fortuito, a mimese,
mas, a dado passo, desafia o leitor a adaptar-se aos mecanismos que
caucionam um outro tipo de “realidade”, transcendente e sem relação
directa com os conteúdos baseados na referencialidade convencional /
trivial perfilados na grelha de
partida. A criação da entidade transcendente cuja complexidade
redimensiona a temática e redirecciona o discurso utiliza por vezes o
sonho como ferramenta para colocar a cadeia narrativa sob novos e
inesperados ângulos de focagem. Às tantas ele, leitor, surpreende-se a
rebolar no desfiladeiro onírico empurrado pelo léxico comum que numa
versão objectiva, sem colisão sintática, dá do “sonho” a ideia de “coisa
útil”, de utensílio, uma espécie de cinzel.
A autora teoriza essa utilidade, quando não mesmo
a sua necessidade, à medida que os equilíbrios narrativos o vão
exigindo. No conto Roma, a personagem narradora tem por interlocutor alguém com quem o
problema “sonho” vem à baila. “Os sonhos desestabilizam, disse eu. Num
universo absolutamente nivelado e auto regulado será proibido sonhar.
Então confessaste que nunca sonhavas, o que não me pareceu possível […]
Mas já estavas porventura doente, disseste, a ausência de sonhos era um
sinal de alarme”. A urgência de sonhar para se escapar à crueldade do
computador-gigante “em que o mundo se estava a transformar” foi
invocada. Os perigos anunciados como sintoma de uma anestesia global das
vibrações sensitivas repercutem-se na vida quotidiana com tal força que
o aprendiz já é capaz de causar transtornos ao feiticeiro todo-poderoso.
Nos contos de TG há sonhos para todos os gostos:
o sonho expectativa de uma vida melhor, o sonho que faz a ponte entre o
normal e o patológico, o sonho cuja causa é o desejo reprimido, o sonho
condicionado pela ambivalência dos sentimentos (quando
vivia com Jaime sonhava às vezes com André), o sonho de fatalidade (não pôde contar porque desse sonho nunca mais voltou), o sonho de
catástrofe e o sonho de regresso ao paraíso perdido, mas esse mundo
comandado pelo desvio onírico não é proeminente em toda a prosa
ficcional da autora, mormente a da última fase,
Passagens (um romance), para
não ir mais longe.
Há diferenças substanciais, bem entendido, entre
o sonho biológico, o sonho aspiração e o sonho medicamente assistido,
instâncias que a escritora domina com idêntico à vontade. O défice de
sonho do sujeito de Roma que este atribui a má saúde e se manifesta como uma
insuficiência do sono – a prova de que já estaria “doente”– tem por
contraponto o sonho como visão do mundo que não abrange o referido
interlocutor já que este “não pertence ao computador-gigante” e nunca
seria “um dos seus funcionários”.
Ora todas estas diferenças submete-as Teolinda a
um estilo unificador.
A colisão sintáctica não ocorre (para cada forma
o seu conteúdo, dizia-se antigamente) porque o estilo literário de TG é
serena e elegantemente unicitário, não se modificando, em geral, quando
o espectro das representações as disperse por variáveis semânticas que
eventualmente requereriam outro arranjo das frases (criação de
atmosferas, de ritmos de acção ou de complexas fixações causais)
sobretudo quando migrassem da existência material para territórios
subjectivos sob outros modelos de chefia, exigindo estes, porventura, o
recurso a diferente arsenal linguístico e a distinta arrumação
sintagmática. A formulação verbal acolhe as pulsões produtoras de
sentido com o mesmo armamento vocabular com que cobre o mundo icónico,
obtendo assim TG para os “sonhos” dos seus contos, por via da constância
do estilo, uma aura de verosimilhança que nivela por cima os argumentos
destinados a captar a empatia do leitor. Há, todavia, excepções.
Elaborar um rol dos melhores contos de Teolinda Gersão afigura-se tarefa
ingrata. Optei, no entanto, por rastrear alguns contos que apontem a
outros tantos alvos e
dêem de Teolinda Gersão a imagem de elasticidade intelectual de quem leu
bem Freud e Lacan sem esquecer as
Mil e Uma Noites e sem desdenhar da lição dos realistas, sejam eles
mágicos (Borges está lá, claro), fantásticos ou realistas
tout court. Num conto como
Encontro no S-Bahn, p. e., é
numa perspectiva da ordem da experiência quotidiana que a história flui.
A viagem, no comboio que transitava toda a noite entre Berlim Oeste e
Berlim Leste no tempo da guerra fria, é feita sob a pressão da síndrome
do pânico que a protagonista combate enquanto ameaça imaginária mas
centrada na “atenção” de que é alvo por parte do emissor dos sinais de
perigo iminente.
Na carruagem viajam dois passageiros: a protagonista e um homem com mau
aspecto. Em vez de ceder a uma desorientação provocada pela invasão do
exíguo espaço por forças incontroláveis de alarme e medo, a bolseira
inverte o seu desempenho fixando todas as energias no discurso oral
ininterrupto com que constrói o muro psicológico que fascina (ou sustém)
o causador da sensação de angústia e o desencoraja de cometer actos
maliciosos extremos. A figura de Xerazade acode sem apelo nem agravo à
mente do sujeito da leitura mas um outro código pode ter desmobilizado o
homem que vem a ser mais tarde reconhecido numa fotografia de jornal
como assassino de duas prostitutas. A exaustiva descrição, pela mulher,
do que estava a fazer em Berlim tê-la-á colocado fora do padrão do
criminoso, porventura incutido do superior espírito de missão de limpar
de rameiras o mundo da vida. Teolinda consegue criar uma atmosfera de
ameaça latente assustadoramente credível neste conto notável.
Terá sido por acaso que TG escolheu para protagonista do conto
Um casaco de raposa vermelha
uma empregada bancária? Aquela que vê numa montra um casaco de pele de
raposa que a impressiona esmagadoramente? O gosto de Teolinda pelo
cenário verosímil volta a marcar posição. Nada mais “natural” do que uma
empregada de Banco – ordenado certo, horizontes de classe um pouco acima
da média baixa, carro, férias no estrangeiro – aspirar a adquirir um
casaco de pele, ainda que para o fazer tivesse de despender uma pequena
fortuna. Ao perguntar o preço na loja fica estarrecida com o montante
exigido. Numa primeira avaliação considera a compra incompatível com o
seu orçamento, espalhando no rosto todo o desencanto que lhe varre o
íntimo. Desencanto logo atalhado pelos responsáveis da loja, que nela
viam uma cliente capaz de cumprir um plano faseado de pagamentos. Afinal
sempre era uma bancária, não é verdade? Que tal uma venda a prestações,
sendo que à terceira prestação paga já a deixariam levar o casaco? Não
era uma solução razoável e compatível com um rendimento cativo para
gastos fixos mas passível de reajustamentos de ocasião? E assim foi
fechado o negócio, tratando TG de fechar também aqui o agasalho a
relações humanas “normais” para dar palco à kafkeana metamorfose da
bancária em raposa, com a ajuda de uma floresta virtual, mal entrou na
posse do casaco, que se torna “pele” de um corpo, não mais continuando a
ser um adereço dele.
Teolinda quis associar a pobre bancária
simbolicamente a uma predadora contentíssima por ter regressado às
origens, ao seu habitat? O efeito lúdico é notório mas também a
preocupação ecológica na crítica e no castigo aos comerciantes de peles
de animais que no caso em apreço ficarão eternamente à espera da
cobrança das prestações em falta, que a sagaz raposa, afinal disfarçada
de empregada bancária, lhes surripiou da capoeira como se ferrasse o
dente num frango descuidado. A moral da história não compromete o final
rocambolesco da raposa saltitante de felicidade ao reencontro da sua
primitiva natureza.
Teolinda
Gersão, contista tem este breve ensaio por título e resume uma ideia
de versatilidade cujo denominador comum é a coesão do estilo mas que não
enjeita o discurso transgressor se o apelo criador brota da vida
comezinha e se expande, por exemplo, por um mexerico de vizinhas, muito
terra-a-terra, como aquele que se lê no conto
Conversa. “Não é necessário ir
longe para mudar de horizonte: o desconhecido mora ao lado, e também
dentro da nossa porta” lê-se na contracapa de um livro de contos de
Teolinda Gersão. E não é. Toda uma recuperação de um léxico dize tu,
digo eu, muito próprio de quem se ocupa militantemente da vida alheia,
patroas e criadas comentando-se mutuamente, má vizinhança – dona Libânia
era dessas – e temos cozinhado um enredo que envia para mais um caso de
exclusão social no cosmo apertado de um prédio onde a intriga barata
prospera, alastrando uma mancha de desconstrução relacional que faz uma
vítima numa atmosfera de ressentimento doentio, implacável e
persistente. Ao nível das melhores páginas de
Um Amor Feliz de David
Mourão-Ferreira, em que este autor também recebe do reportório oral de
vão de escada muita inspiração vazada na construção de uma inesquecível
Floripes em prosa só aparentemente estéril porque é a lição de vida que
lá está a orientar-lhe a mão, as personagens tagarelas de
Conversa dão corda às
convenções domésticas com que verbalizam o que lhes vai lá por dentro e
lhes abastecem os dias com os cancans do quotidiano triste que é o seu.
Assim, subitamente, coloca a autora o receptor ante uma paisagem humana
menor onde se cultiva a lingualeirice pobre usada para desgastar a
reputação de Libânia, a mulher que vive só e a quem é retirada a réstia
de dignidade conferida por um mínimo de convivência ainda que na bitola
baixa de uma espécie de sabedoria conformista das pessoas que vegetam
fora da História e apenas reagem às solicitações do seu estreito mundo
utilizando as armas rudimentares de que dispõem.
|
|
A CARTA EXTRAVIADA |
Num outro conto, As cartas deitadas, admito
estar em jogo uma referência cultural determinante, não explicitamente
assumida, mas provável, dado que Teolinda Gersão não deve ser afastada
do universo pedagógico que condicionou boa parte de uma vida consagrada
a ensinar literatura. Se reconhecemos na sua prosa ficcional traços que
a definem como kafkeana, borgeana, freudiana, queirosiana, etc., isso
corresponde a uma aquisição de saber relacionada com o “material” com
que operou no dia-a-dia profissional – durante décadas. Ora o importante
é perceber-se até que ponto esse capital de cultura é adaptável a um
projecto literário próprio e em que medida influencia ele o percurso
ligado a uma conceptualização estética que prime pela originalidade e
não pela “citação”, ou, como querem alguns, pela “intertextualidade”.
Talvez não seja abstruso reconhecer neste conto uma “inferência”
lacaniana, não na forma mas no tema, da qual parte TG para a tessitura
de uma vistosa alegoria da carta desviada/roubada, fugindo ao guião da
peripécia de “boudoir” da carta de Poe (ver seminário de Lacan sobre o
conto de Edgar Allan Poe A Carta Roubada) mas explorando o retorno do
recalcado para um ajuste de contas que passa pela revelação do destino
dado à carta perdida. Enquanto a carta de Poe anda de mão em mão, por
vezes substituída por réplicas falsas, TG aposta na confissão do
prevaricador (o filho da governanta tolerado no seio de uma família
estadonovista) quando adquire consciência da sua condição subalterna e
desobedece à “ordem” de um membro da família para fazer chegar uma carta
a Hélène, que o jovem se-nhor engravidara e que estava proibido de
contactar. Ao não cumprir a determinação “superior” o sujeito da
escrita, então apenas mediador (moço de recados, se quisermos) inicia um
processo de insubordinação relativamente ao poder estabelecido que será
o detonar de uma nova consciência ou, melhor, da consciência de si
quando se lhe depara a oportunidade de, com um gesto, ser capaz de
alterar um rumo alheio e ao mesmo tempo o seu. Ao tomar consciência de
si coloca a sua atitude na esfera da luta de classes de que é eloquente
testemunho a minuciosa descrição com que encerra o caso.
As cartas deitadas é um conto epistolar. Na verdade,
de uma epístola se trata, ainda que para falar de uma outra, a carta
extraviada. Mas o conto de TG deixa uma margem de ambiguidade com
recorte minudente esquivo, suficiente, no entanto, para se verificar
onde fora deitada a carta que era para ser entregue em mão – num
recipiente, mencionado de raspão, como quem não quer a coisa, quase
passando despercebido, depois de rasgada e sem que o rasgador lhe
tivesse então devassado o teor. Porque a consumar-se o propósito do
autor da carta redigida “depois de todos estes anos” e depois de tanto
suor despendido a escrevê-la, de a deitar, seria no mínimo num marco do
correio. Embora o texto epistolar se refira a uma primeira carta que não
chegou à destinatária graças ao gesto deliberado do mensageiro de a
destruir, o que resta dela é apenas a informação do que lhe aconteceu e,
quanto à segunda, só através do título se estima ter sido concretizado o
seu envio. Na verdade, o que ficamos a saber pela leitura do texto é ser
intenção do redactor deitá-la e disso estaríamos pouco seguros de que
ele o tivesse feito caso o título do conto fosse A carta deitada visto
haver uma outra situação adequada ao uso do mesmo verbo. Ora o verbo
deitar envolve aqui dois significados: deitar fora, deitar no correio.
Só o título nos garante que, apesar da predisposição do narrador, a
segunda carta foi efectivamente encaminhada conforme prometido. Não fez
companhia à outra, a destruída, assevera o título, isto é, a autora e
não o narrador, sem motivo para dúvidas.
|
|
O LUGAR E A SUA TOPONÍMIA |
É muito interessante observar a ligação da ficção de
TG ao lugar perfeitamente localizado numa geografia afectiva quase
sempre presente – a cidade de Lisboa. O não-lugar, a não ser a título
muito excepcional, não cabe nos contos de Teolinda. O anonimato do sítio
e a obliteração onomástica, a desfiguração dos becos, do rio e dos
monumentos pelo escamoteamento dos signos de identificação, não exercem
nesta escritora qualquer espécie de fascínio que a leve a adoptar esses
expedientes censórios no que parece ser uma escolha contrária à voga
herdada, entre outros, do longínquo Kafka. Trata-se antes de colocar à
disposição do leitor (neste caso o lisboeta) um itinerário cujas pistas
de demarcação territorial ele imediatamente reconhece através da
informação abundante que lhe é fornecida. Veja-se os contos O Leitor e
As tardes de um viúvo aposentado nos quais a acção é minuciosamente
balizada pela identificação dos trajectos de solidão rotineiros que
ambos os protagonistas percorrem.
No primeiro caso a história tem lugar num comboio do
Metropolitano de Lisboa quando este se desloca na linha azul conduzido
por um maquinista com hábitos de leitura que descobre a maneira de
quebrar a monotonia das funções que desempenha lendo durante as viagens,
nos intervalos entre uma estação e outra, policiais de Agatha Christie.
À descrição que culmina com a colocação do profissional do Metro no
desemprego não faltam ecos sonoros e placas visuais, no interior das
carruagens, indicadores do local da cidade onde se está, bem como em que
gare da linha azul. E é mesmo o equívoco provocado pela errada nomeação
de um lugar que estraga tudo. Uma troca de nomes de estações nos
avisadores luminosos por avaria provocada pelo colapso da fita
magnética, tornando incoincidentes a informação e o local, causa
perplexidade entre os passageiros, o que leva um deles a dirigir-se à
cabina para inteirar o condutor do comboio do que está a acontecer. Qual
não é o seu espanto ao deparar-se-lhe o livro aberto do leitor em cima
dos instrumentos de manipulação, no posto de trabalho. Escandalizado,
participou, e o maquinista foi parar ao olho da rua. Repare-se então na
importância que o lugar, deficientemente identificado, tem neste conto
de TG.
Quanto ao modo como o gerente bancário reformado
passa as tardes é curioso observar primeiro como ocupa as manhãs, que
“passavam tão depressa”. O cemitério não nomeado (o do Alto de S.João)
está certificado pelo enquadramento toponímico: “metia a pé pela Barão
Sabrosa (morava na Actriz Virgínia) cortava à esquerda ao cimo da Morais
Soares e a partir daí não tinha mais do que seguir em frente, pela
sombra no Verão e do lado sul se era Inverno”. Após visitar a campa da
mulher “Descia a Morais Soares e subia desta vez a Almirante Reis, a
partir da Praça do Chile para fazer um percurso diferente.” Depois do
café onde lia o jornal e trocava impressões com o empregado “Subia o
resto da Almirante Reis mais satisfeito, com o jornal debaixo do braço”.
A uma manhã efectivamente ocupada seguia-se a
encenação de uma tarde ocupada, fechado no escritório a “trabalhar”,
cuja única testemunha era a empregada Leontina, ainda que elucubrasse
sobre as várias maneiras de preencher a tarde ou se limitasse a dormir a
sesta depois de reflectir no absurdo de propostas como a de frequentar
uma universidade da terceira idade: “Estava boa essa, universidades para
velhos que aprendiam por exemplo a distinguir o estilo gótico do romano,
e quando já sabiam enterravam-nos”. A ociosidade mal gerida levou-o
certa tarde a pensamentos como o de admitir que a mulher o tivesse
traído com o amigo e colega Manuel João, mergulhando-o numa azáfama à
procura de provas depois de saber que o rival estava vivo e de boa
saúde. A árdua tarefa da pesquisa consumira-lhe três semanas findas as
quais nada encontrara de comprometedor. “Provavelmente porque nada tinha
acontecido”. E assim desistira de ir à Quinta dos Loureiros, no caminho
de Sesimbra, à procura do Manuel João, armado com “a faca de mato que
usara em Angola” e com o “revólver do seu avô Fernando”.
A Os
Anjos chamou Teolinda Gersão “uma brevíssima novela.” Tal como Os
Teclados inclui-se no número dos pequenos grandes livros publicados em
língua portuguesa – de O Barão a Bastardos do Sol, por exemplo – cuja
dimensão física os coloca entre o conto “alargado” e o romance “curto”,
ou seja, na zona híbrida da novela. Li Os Anjos como conto alargado e Os
Teclados como pequeno romance, com igual prazer, e nem dei por existir
entre eles uma questão de tamanho, tão irrelevante se me afigurou
“enquadrar” as duas histórias, com um potencial de sedução tão afim, em
qualquer dos géneros, hoje em dia liberalizados quanto ao “volume” – Os
Anjos até chegou a ser rotulado de romance.
A narrativa, que foca o despertar de uma jovem para
as interrogações da passagem da infância para a adolescência num
ambiente familiar e religioso cuja espessura esbarra na sua ânsia de
descoberta e de confronto quando lhe é devolvido com páginas a menos o
exemplar do Almanaque confiscado pelo padre no qual se sumarizava a vida
de Maomé (o conteúdo das páginas arrancadas) e se apercebe da existência
do amante da mãe, é objectivada através de uma linguagem esmerada e
sensível cuja gestão se caracteriza pela cobertura de um vasto leque de
sentimentos novos e contraditórios. É, de alguma maneira, o que se passa
com Os Teclados, tal como escrevi oportunamente: “Este romance de
noventa e cinco páginas é um exemplo de economia textual no que a
expressão tem demais tangível e profundo. É patente a habilidade de
Teolinda Gersão em condensar num escasso número de páginas uma tão
grande soma de funções narrativas […], admiráveis sínteses […] de grande
intensidade e calor humanos.”
|
|
OS FALOS FUTEBOLISTAS E O FOTÓGRAFO DE MENINAS NUAS |
Neste ponto do texto cai-me em cima da mesa,
enviada pelo correio, a última fornada de contos de Teolinda, Prantos,
amores e outros desvarios (2016) que em certa medida confirma as
linhas de força da “história curta” anteriormente detectadas, pois se
bem que todas as histórias sejam diferentes umas das outras, o estilo
conserva a solidez de sempre e há um reservatório ao qual Teolinda vai
buscar alguns condimentos para uso corrente: ainda o sonho: as
linguagens do sonho, os efeitos do sonho nas pessoas; a solidão urbana
num contexto humano de velhice desapoiada; o suco bem nutrido das
conversas chãs de comadres, de vizinhas em conflito ou de empregadas
domésticas insuportáveis. Não significa isto que Teolinda tenha
escrito o “mesmo” livro, as invariáveis semânticas são pontos de
partida para variáveis de sentido inéditas e inesperadas. E nesta
corrente de flexões e inflexões abre-se um mundo de novidade que parte
quase sempre de uma plataforma banal posteriormente modificada pela
autora. Escolho esta surpreendente táctica de superação do real
objectivo pelo progressivo achamento de uma realidade virtual que a
escrita vigorosa de TG
“naturaliza” para me afoitar à pesquisa da sua aplicação aos contos de
que mais gostei.
E os contos de que mais gostei nem são os que
melhor evocam os universos ficcionais clássicos de Teolinda. No conto
Jogo Bravo ela é verdadeiramente original ao observar o chamado
desporto-rei como uma grande celebração sexual. Os jogadores são os
falos, as balizas as vaginas, a bola o objecto do desejo, conferindo
ao jogo o rosto de uma sessão de sexo de grupo com vinte e dois falos
desaustinados repartidos por duas equipas em busca das vaginas
antagonistas, arduamente defendidas. O orgasmo fálico dá-se com a
introdução do objecto arredondado na fenda feminina até então
tenazmente recusada e é festejado pelos falos vencedores com alívio,
propagando a adeptos e simpatizantes aos pulos e aos gritos, nas
bancadas, a vertigem da consumação.
Faltou talvez a Teolinda evocar, de entre os mundos
escondidos no desporto que movimenta milhões – ela que é tão dada a
descortinar desconforto e sofrimento humanos nas mais improváveis
situações – o penoso calvário das lesões, das enfermarias, das
cirurgias, das lentas convalescenças, das expectativas sombrias do
artista da bola de, após a operação, poder não voltar ao que era, e,
numa outra vertente, o drama dos clubes pequenos, muitos deles
falidos, deixando os futebolistas com salários em atraso. Mas se o
futebol, para a maioria dos que o vêem apenas como espectáculo, não
passa de um entretenimento-escape, é também como o grande momento
lúdico desta recolha que o “futebol” de Teolinda Gersão deve ser
acatado.
A escritora logrou elaborar um conto hard sem
recorrer, por exemplo, à linguagem hard de Alexandra Lucas Coelho no
seu livro O meu amante de domingo, cotejo em que Teolinda
demonstra ser possível escrever uma história “para adultos” sem
recorrer a outras palavras que as do dicionário (enfim há aquele
descuidozinho da página 92, num outro conto, mas foi uma vez sem
exemplo). E que, ainda que em termos paródicos, inscreveu o futebol na
sua escrita maior, coisa que muitos dos seus celebrados confrades se
envergonham de fazer, mesmo que, fora da literatura, em privado se
reconheçam fervorosos simpatizantes do tal “jogo bravo”.
Mas as mais surpreendentes páginas deste livro fui
encontrá-las no conto intitulado Alice in Thunderland. São vinte e
seis páginas que mereceriam um ensaio de fundo porque delas dimana um
sopro de genialidade incompatível com a insustentável leveza deste
momento de reflexão leitora chã. O conto arranca com uma formalidade
que lhe confere um estatuto lógico que ninguém tomará por equívoco. A
protagonista desloca-se a Nova Iorque para participar no
“acontecimento simples” da celebração do aniversário do nascimento do
rev. Dodson “agora conhecido em todo o mundo por Lewis Carroll” tendo
ela na ocasião recebido o Doutoramento Honoris Causa em Literatura na
Universidade de Columbia. Logo à partida, o leitor é informado de que
o livro mais famoso de Carroll não passa de “uma história falsa”.
Informação insusceptível de causar qualquer espécie de arrepio
sabendo-se que no livro o encadeado de ficções e delírios imaginativos
é intrínseco à opção literária do seu autor. Ingrato seria dar de
barato, como agora se lê na maioria dos filmes americanos, basear-se a
obra numa “história verídica”. Ora aqui é que está o busílis.
|
|
O prodígio mediúnico de uma Teolinda transmutada em
Alice vai encaminhar a trama de maneira não a enfatizar as venturas e
desventuras, as desmesuras e os reducionismos, a que se expõe ao mergulhar
no poço da toca do Coelho, mas a dar destaque às razões extraliterárias
que sustentam a versão da mentira, juntando assim um enigma às homenagens
congratulatórias da efeméride. Alice-TG prepara-se para pôr a nu as
nuances comportamentais do homenageado matemático especializado em
fotografia no tom peremptório que lhe é conferido pela sua qualidade de
ex-musa do reverendo, disposta, finalmente, a despejar o saco. Está assim
respeitado o princípio válido para o conto da proposta de decifração de um
enigma capaz de alterar o curso da história pela decisão da
narradora-personagem em alardear uma capacidade de julgamento, no caso
intemporal e imune às coordenadas da vida quotidiana protectora dos vícios
das individualidades com relevo social.
E quem esperava que Alice elaborasse discurso sobre o
mundo fabuloso que encontrara debaixo da terra e como se desenvencilhara,
é sobre o autor, do seu destino como personagem, prisioneiro da tara de só
fotografar meninas, preferentemente sem roupa, que se concentra o relato
delator, bem como nas relações de Dodson com a família de Alice, e os
remoques do marido desta
respondendo às veladas acusações de mulherengo com o argumento de a ter
poupado a um destino particularmente odioso: “não pode negar que mostrei
coragem ao casar consigo, calei as vozes do mundo que sempre murmuraram
contra si, ora você sabe muito bem ao que me refiro, afinal de contas
houve um escândalo com o reverendo D. Quando se descobriu que ele
fotografava crianças nuas e o mais que se comentou na altura.”
Sem agora ser curial averiguar quem tem autoridade
moral para decidir quem são os bons e os maus a partir da verdade, talvez
o leitor já detentor de todos os dados possa ser o juiz. Mas a sentença
será pouco menos que inútil: o formidável talento para fazer passar à
grande literatura “uma história verídica”, de Teolinda Gersão, é uma
realidade insofismável, conquanto a sua “Alice” octogenária não expulse de
todo das suas recordações os momentos inolvidáveis que passou em casa do
reverendo Dodson (onde não havia limites), aquele que a tornou famosa aos
treze anos.
“Só peço a Deus”, roga a Teolinda-Alice, “que ainda me
dê vida e saúde para deixá-la (à verdadeira história) escrita”.
Pelos vistos, Deus não dorme.
|
|
Dando no presente texto, como referi, prioridade à
Teolinda Gersão contista, pela importância do seu legado nesse particular
domínio da escrita, aqui deixo o alvitre para que se edite, em volume
autónomo, a totalidade dos contos da autora, o que permitiria um olhar
menos dispersivo sobre tão importante contributo para a valorização deste
hoje em dia tão injustamente depreciado género literário.
2015/16
|
|
Júlio Conrado. Ficcionista, ensaísta, poeta . Olhão, 26.11.1936 . Publicou o primeiro livro de ficção em 1963 e o primeiro ensaio na imprensa de âmbito nacional em 1965 (Diário de Lisboa). Exerceu a crítica literária em vários jornais diários de referência e em jornais e revistas especializados como Colóquio Letras, Jornal de Letras e Vida Mundial. Participação em colóquios e congressos internacionais. Participação como jurado nos principais prémios literários portugueses. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, Associação Internacional dos Críticos Literários, Associação Portuguesa dos Críticos Literários e Pen Clube Português. A sua obra ensaística, ficcional e poética está reunida numa vintena de livros. Alguns livros e ensaios foram traduzidos em francês, alemão, húngaro e inglês.
|
|
|
|