Herberto Helder, poeta obscuro,
é um livro fundamental de introdução à obra herbertiana. Ele aparece em
1979 como corolário de uma intensa divulgação dessa mesma obra nas
páginas do Diário Popular e
na revista Colóquio Letras.
Um extenso e denso ensaio nesta revista, publicado em Novembro de 1978,
é já o prenúncio do livro de 79, no qual aliás viriam a ser aproveitadas
algumas passagens desse texto, intitulado
Viagem e Utopia em Herberto
Helder, tendo por base o livro de HH
Os Passos em Volta. É uma
admirável investigação focada no instinto errante do poeta em busca do
Estilo “que em parte ele
próprio traça para si” e em que a experiência geográfica enlaça o
território da deambulação espiritual depois da qual instalará o
quartel-general do labor poético, mas que por enquanto é apenas “a rua
circular” na qual “o estrangeiro mais não faz que dar
passos em volta sem conseguir
atingir o centro da cidade – o coração do labirinto”. Estela Guedes
vigia a par e passo as fases desse nomadismo fecundante que está já na
base de uma poesia predominantemente metafórica (tendência visível em
Os Passos em Volta, um livro
em prosa) cujo potencial de enigma constitui um repto que ela assume sem
complexos, enfrentando com uma aparelhística teórica consistente o
desafio que lhe é proposto, enquanto leitora e investigadora, numa
intensa aventura interpretativa que fará de si, à época, a maior
autoridade em Herberto Helder. No entanto, aqui, ela ainda precisa, com
argúcia: “O facto de o viajante ser confrontado com novos reptos da
realidade produz nele a insegurança e a inquietação. Porém ele não busca
a segurança social, antes o seu inverso: a ruptura entre o modo de estar
conforme e a inutilidade de não ter ainda um real modo de estar.” E no
domínio da expressividade erótica: nele “não há tendência para a
narração de episódios sentimentais de carácter banal ou burguês.”
No livro propriamente dito o âmbito da observação
é ainda mais alargado e Maria Estela Guedes encontra na obra herbertiana
conexões com os seus estudos naturalistas, que assinala desta maneira:
“O naturalismo, ou religião natural, presta culto à Natureza como
princípio supremo e nega a existência do sobrenatural. O que eu vou
analisar hoje é um aspecto do naturalismo que diz respeito ao culto do
mundo vegetal na poesia de Herberto Helder. Também vou comparar a visão
fitomórfica do corpo humano com a poesia herbertiana, com a mesma
homologação do homem à árvore, na ritualística dos carvoeiros e
lenhadores.” Mas não só. A riqueza da metáfora de HH não a deixa em
sossego. E, como bem assinala, “os campos de conhecimento são bastante
diversificados. […] “A secreta fecundidade de plantas, animais e
mulheres” aumenta-lhe “a capacidade de gerar metáforas em profundidade.”
Aliás, nesta questão, MEG é peremptória, sinal de
que a espessura do discurso que enfrenta não só a não intimida como a
incita a mergulhar fundo no que alguns tomam por “hermetismo, no sentido
em que não se entende onde quer chegar”. É convicção da indagadora que a
complexificação poética a torna, à escrita, obscura e enigmática mas não
“hermética”, acentuando, de resto, que o próprio autor “fornece
frequentemente as chaves dos seus enigmas.”
Para cada núcleo codificado Estela Guedes
encontra um enquadramento científico que é, ao mesmo tempo, um exercício
de naturalização da compacta paisagem do verbo metaforizado. Assim, da
dança, do ciclo alimentar, das analogias entre signo e flor, da energia
erótica, da floresta, da movimentação errática no espaço e na mente, da
Física e da Química que lhes são intrínsecas, às vacilações
existenciais, à celebração da mulher, fonte da vida e do prazer, tudo é
explicado graças ao uso expedito de instrumentos operacionais de análise
que com justeza vão transfigurando as ambiguidades em processo de
dilucidação até à sua integração plena na património cognitivo
socializado.
No livro editado no Brasil
A Obra ao Rubro de Herberto
Helder – título menos personalizado do que o do trabalho de 1979 (a
ênfase é posta mais na obra
do que no autor) – é um texto já sem as características de tese do
precedente em que as funções didáctica e de incursão no biográfico
revestem características de texto de divulgação (recolha de depoimentos
de vários escritores: Joana Ruas, Nicolau Saião, Cláudio Willer, João
Rasteiro, Floriano Martins, Rui Mendes, Mário Montaut e Pedro Proença)
entrevistas com leitores, repercussões na imprensa e projecção
internacional mas que apresenta uma faceta nova, em pequena nota
introdutória assim definida: “O que há de novo neste segundo ensaio de
Maria Estela Guedes sobre o autor de
Ofício Cantante? Sobretudo
dois aspectos, um estrutural e outro biográfico: a poesia herbertiana é
analisada de acordo com modelos oriundos da Biologia; e uma visão nova
da biografia de Herberto Helder, ainda não atendida pela Academia,
decorre da pesquisa dos artigos e crónicas que o poeta publicou no
jornal Notícia, de Luanda,
quando por Angola andou em tempo de guerra, com a missão de repórter”.
É, pois, um livro que completa o anterior ao introduzir dados de índole
pessoal e parâmetros de escrita que permitem localizar o ponto de
partida (modesto) do que culminaria num portentoso edifício poético cuja
sombra perdurará nas Letras portuguesas muito para além da pessoa humana
que lhe deu corpo, para o que muito contribuiu também a admiração de
Maria Estela Guedes. No início de
Herberto Helder, Poeta Obscuro
ela escreve só isto: “Herberto Helder é um dos poetas mais fascinantes
que me foi dado ler, e aquele cujo poder encantatório mais me
deslumbrou.” Um fascínio que permanece intacto em
A Obra ao Rubro.
Meia dúzia de palavras a sinalizar a acção de
TRIPLOV na difusão da cultura via Internet. Inicialmente não foi
concebido para se converter naquilo em que se tornou: um fórum que
recebe um enorme número de contribuições artístico-culturais conforme à
sua abrangente orientação programática: Artes, Religiões e Ciências.
Maria Estela Guedes criara o TRIPLOV em 2001 a fim de assegurar na
Internet um espaço para a sua pesquisa científica de maneira a garantir
a divulgação desta junto de organizações e grupos com preocupações
afins, laços reforçados com a sua adesão à Carbonária da Floresta
sedeada no Brasil.
Hoje em dia TRIPLOV acolhe colaborações
provenientes de todas as partes do planeta, mas com especial frequência
a que provém do universo latino-americano, no que tem encontrado
frutuosa cumplicidade em Floriano Martins, poeta cearense que cultiva
militantemente o intercâmbio pluricultural em tal domínio. No que me diz
respeito tenho podido beneficiar dessa janela aberta sobre o mundo
escoando alguns textos que de outro modo ficariam na gaveta à espera de
melhores dias em vez de prestarem algum serviço às comunidades de
cibernavegadores que vêem no TRIPLOV um porto de abrigo onde vale apena
ancorar. Tudo isto graças à visão, à ousadia, à generosa dádiva de si,
de Maria Estela Guedes. Uma obra e uma autora à espera de reconhecimento
institucional consentâneo com a indiscutível relevância de ambas no
panorama cultural português.
Centro Cultural
de Cascais, Homenagem a Herberto Helder, 5/12/2015
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