O 25 de Abril foi para mim um dia morno. O dia
26 sim, foi um dia quente. A
primeira notícia da movimentação dos militares chegou-me pelo rádio
despertador através do primeiro comunicado do Movimento das Forças
Armadas. Nesse momento, ignorava-se se se trataria de mero golpe
militar, se de alguma coisa de mais vasto. Dirigi-me para o local de
trabalho mas, à chegada ao Banco, na Parede, deparou-se-me uma
“clientela” inusitada: directores, administradores e outros funcionários
superiores apresentavam-se para levantar dinheiro. Sendo o dia do
crédito em conta dos vencimentos, todos os serviços em Lisboa se
encontravam encerrados. E ainda não havia caixas Multibanco. Com toda a
gente provida dos seus ordenados, a Agência encerrou à tarde e fui para
casa acompanhar pela televisão o desenrolar dos acontecimentos, a tentar
perceber o significado do que se passava. A transmissão do Largo do
Carmo foi esclarecedora.
No
dia seguinte fui para Lisboa. Nunca tinha visto nem vivido uma revolução
e queria passar por essa experiência (ainda que nesses dias que marcaram
simbolicamente o início de uma revolução, a expressão mais corrente
fosse a de golpe de estado, pronunciamento, etc., com a emergência da
sigla MFA). Agora já estavam clarificadas as posições: tratava-se de um
movimento que visava o derrube da ditadura. A sucessão rápida de êxitos
militares, como a ocupação das rádios e da televisão, o assalto ao
quartel do Carmo e a prisão de Marcelo Caetano, apontavam para a vitória
do Movimento dos capitães. Mas nesse dia 26 – o dia da “caça ao pide” –
viriam a dar-se alguns dos acontecimentos mais dramáticos da tomada do
poder pelos militares. Na ocupação dos serviços de censura tudo se
passou pacificamente. A tropa ocupou parte da rua da Misericórdia e as
G.M.C’s foram encostadas pelas
traseiras à porta do edifício do diário
Época para receber os
funcionários, que um após outro tomaram assento nos veículos pesados. Eu
e o meu amigo Jorge Miranda demos uma volta pelo Bairro Alto, passámos
pelo Palácio Maçónico, de onde a Legião Portuguesa fora desalojada,
rumando depois ele a norte e preferindo eu ficar na Praça Luís de
Camões, que era até onde chegava o cordão de fuzileiros que cercava a
sede da Pide.
Na Praça de Camões aglomerava-se uma pequena multidão e
preparava-me para filmar a cena quando alguém alertou: “Agarra,
que é pide, agarra que é pide!” As pessoas convergiram para a vedação
sul mas não havia pide algum: havia, na rua confinante, em plano
inferior, uma carrinha da PSP “engarrafada” que não conseguia progredir.
Uma chuva de pedras caiu sobre a carrinha. Desta saíram dois polícias
que dispararam sobre a multidão, felizmente (ou propositadamente) sem
grande pontaria, posto que ninguém foi atingido. Toda a gente correu
então para o lado oposto da praça, incluindo eu. A meio do percurso
lançámo-nos para o chão, quando uma rajada de metralhadora para o ar,
dos fuzileiros, se fez ouvir. (Claro que ninguém sabia, naquele lapso de
minuto, se os fuzileiros atiravam para o “ar”.) Do Cais do Sodré
“respondeu” o destacamento aí estacionado com outra rajada. Uma mulher
de meia idade e ampla compleição caiu sobre mim a rezar aos santos da
sua devoção: “Salve-nos, Senhor, que vamos morrer todos aqui.”
Com
aquela protecção física e mística em cima de mim, pensei que só por um
malfadado milagre não sairia dali ileso. E saí. Como recordação desse
dia conservo o óculo de aumentar da minha pequena Fujica, (a que por pudor não ouso chamar teleobjectiva), amolgado
em pleno tiroteio. Um pouco mais adiante, na rua António Maria Cardoso,
o dia ficaria no entanto marcado por um episódio sangrento. A Pide
disparou sobre civis antes de os fuzileiros concretizarem a ocupação das
instalações e fez vítimas mortais.
Cascais, quarenta anos depois
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Júlio Conrado. Ficcionista, ensaísta, poeta . Olhão, 26.11.1936 . Publicou o primeiro livro de ficção em 1963 e o primeiro ensaio na imprensa de âmbito nacional em 1965 (Diário de Lisboa). Exerceu a crítica literária em vários jornais diários de referência e em jornais e revistas especializados como Colóquio Letras, Jornal de Letras e Vida Mundial. Participação em colóquios e congressos internacionais. Participação como jurado nos principais prémios literários portugueses. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, Associação Internacional dos Críticos Literários, Associação Portuguesa dos Críticos Literários e Pen Clube Português. A sua obra ensaística, ficcional e poética está reunida numa vintena de livros. Alguns livros e ensaios foram traduzidos em francês, alemão, húngaro e inglês.
Ver bio-bibliografia alargada em:
http://penclube.no.sapo.pt/pen_portugues/socios/julio_conrado.htm
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