Dois pesos e duas medidas? Um pé no registo
factual e o outro mergulhado num sensacionismo levado às últimas
consequências em regime de cumplicidade com a função libertadora do
sentido pela profusão de subsentidos em que aquele pela sua mão se
dispersa? É um erro querer amarrar FM a estereótipos: a sua
inconformação é mais favorável à absorção dos contrários do que à
exclusão ressentida e preconceituosa de alguns deles. Como se num
panelão misturasse incompletamente os ingredientes de uma refeição no
final destituída do requintado sabor que seria o seu se a adição dos
condimentos tivesse sido de acordo com a dosagem indicada.
Uma boa parte do discurso de FM a que acedi
exprime-se na fronteira da narrativa ficcional. De aí poder falar-se
sem rebuço de prosa poética pese embora o facto de o texto apresentar
o “tamanho” do conto convencional. O que distingue no processo da
escrita o lírico do prosaico é a vertigem emotiva que fende a peça de
lés a lés, não deixando espaço à formação de uma “história”, de um
“enredo” ou de um “conflito” autonomizados, mas em que se cruzam temas
que dão eco à raiva, ao desespero e à paixão que ardem no íntimo do A.
Num texto como, por exemplo,
Arlequim, a censura ao papel agónico do poeta prisioneiro de uma
“dieta de falta de princípios”, da lei do “nada mais importa” e que
“ignora mesmo que nome tenha o instante em que a dor apenas dói”, é
bem o convite a vislumbrar-se um fundo moral através da rede vocabular
labiríntica tecida, em primeira instância, para valorizar a liberdade
verbal mas conferindo-lhe missões de vigilância ontológica e
ideológica (e, já agora, deontológica) que remete para a existência em
si, mas também social, do indivíduo questionado. A irreverência formal
não inibe, pois, a mensagem de tocar os nervos da vida corrente num
quadro de denúncia edificante que mantém dinâmica a ligação do texto a
cada um dos destinatários e à inteligência do mundo.
A
indisciplina do signo tão excessiva no pregão teórico transfere-a o
poeta cearense, neste particular domínio, para o nível semântico, aí
se expondo ao tormento – ou ao delírio? – de uma espécie de estado de
sítio permanente, fruto da fusão de sensações convertidas em
significados hostis aos sonos tranquilos da lógica, da praxis e do
costume instalado. É da extravagância dos conteúdos e não do gesto
caligráfico da desordem, que brota o perigo de subversão da linguagem.
Aqueles que cabeceiam contra uma parede sem “história” julgando-se
heróis ao depreciarem nexos cujo dispositivo associam a insolências
deletérias, desconhecem ao que andam. Floriano alterna os impulsos
coroados por signos arbitrários com a “narrativização” do
assunto por via caudalosa, é
verdade, mas aceitando a intervenção da experiência e a consequente
porção de memória na articulação da sua fala, sem prescindir um só
instante de se servir de meios operacionais próximos da maneira
“fleuve”, na espuma da qual sempre se movem a metáfora rica e o
nonsense enigmático que garantem o estatuto imaginário em cuja
indumentária ele se quer visto e apreciado. A distinção entre
linguagem quotidiana e linguagem estética exprime-se aqui através de
uma selecção natural apreensível à vista desarmada, quer quando um
texto de fórmula compacta se impõe como entidade poética intrínseca,
quer quando o discurso é fendido por elementos positivistas que o
“aproximam” do lugar dos outros, o “exterior” onde todavia prevalece a
cadeia verbal do contexto – a da contiguidade ordeira da família
significante.
Pelo que precede resulta que falar da obra de um autor tão inquietante
(e inquietador) como este obriga a precauções de natureza vária,
parecendo apropriado, no entanto, golpear sincronicamente a sua obra
de modo a chegar-se ao ponto onde o processo ressente ruptura e
desassossego. Uma das peculiaridades estilísticas de FM consiste no
discurso mediatizado pela “voz” feminina na identificação e comentário
da idiossincrasia masculina. Num poema como
Duas mentiras (*) são descritas as tímidas movimentações do miúdo
que só não arrepia caminho aquém da raia da consumação primordial
porque a “protagonista” dissipa dúvidas ao mostrar-se aberta à
“iniciativa” adolescente de que ela é, aliás, a incentivadora oculta.
Em todo o caso, o que prende a atenção do leitor é o que é externo à
disponibilidade circunstancial dela: a reacção do rapazinho depois de
ter dado o passo que faltava à sua realização como homem. Os receios
daquele que recua ante a oportunidade que lhe é oferecida de
diversificar as tarefas do amor (fica a ideia de um falhado ritual de
iniciação sado-masoquista a que ele não se acomoda) é a imagem
culminante no poema, superior mesmo à que reporta ao efeito de
decepção na expectativa feminina depois da saída de cena do “garoto”.
Por duas pequenas estrofes alternam vibrações de desejo e afloramentos
de estranheza inibitória que convergem para um destino de frustração,
que o poeta resolve recorrendo ao sonho – o sonho agridoce. Mais do
que inibição é a iminência do terror o que afugenta o aprendiz. Por aí
passa a linha de fractura entre o salto no abismo e o recuo para
melhor ponderação da prática sugerida. A audácia ainda não é predicado
que facilite o acesso aos itens do reportório erótico por alguém de
pouca idade (menor?) a aquecer os motores da perversidade feminina ou,
se se quiser, para atender à ideia axiomática, da intermediação da
mulher no amor como “forma iniciática”.
Esta breve simulação tem em vista sublinhar a capacidade de Floriano
Martins de se desdobrar entre dois universos psicológicos: a
maturidade feminina versus inocência/incerteza masculina na construção
de uma realidade poética tangível à situação clássica de aquisição de
conhecimento da vida. Várias dicotomias se detectam em tão curto
texto: Ela madura/ele imaturo, conhecimento/ignorância,
fantasia/decepção, audácia/terror, transgressão/ retraimento, ou seja,
uma actividade dialéctica constante, cativadora da solidariedade do
receptor relativamente a códigos de comportamento da esfera do desejo
e no miolo da qual fazem ninho os propósitos mais exaltantes de
negação da rotina estabelecida.
As
minhas recepção e interpretação da primeira parte do poema de Floriano
Martins serão porventura abusivas, porquanto se calhar tentei
domesticar o que não é propenso a deixar-se encapsular num qualquer
esconderijo lógico-simbólico. Por ser da ordem da intuição e da
emoção, não do racional. Quis apenas frisar que nos fluxos de texto em
caudal de cheia sobrenadam módulos de vida quotidiana, “realista” se
assim se pode dizer sem ofender ninguém. Espelham uma vinculação ao
mundo “habitual” enquanto não lhe é aplicado o antídoto que leva a
significação a transbordar das margens que parecia constrangida a
respeitar. Talvez eu tivesse sido tentado a estabelecer uma zona
híbrida de compromisso onde o real objectivo e as forças polissémicas
da dilatação informal fossem vizinhos que, no mínimo, se tolerassem.
Não posso, todavia, deixar de encontrar similitude entre alguma
prática poética de FM e o que em 1980 E. M. de Melo e Castro, teórico
e poeta de vanguarda dos anos sessenta, escrevia a propósito de
Cesariny: “Sob o ponto de vista textual o Surrealismo move-se no
âmbito de uma imagística absurda mas a que não são alheias práticas de
construção do texto muito rigorosas.” (**)
Noutros casos, o veio desconstrutivista lidera a acção no discurso e
aí temos um claro reforço do mágico e do absurdo afastado da
supervisão do olho clínico da razão. O poeta, nestas circunstâncias,
mergulha no postulado surrealista e frequenta todas as variáveis
“escolares” do movimento, conferindo especial ênfase à libertação do
homem da tirania dos tabus sexuais da herança judaico-cristã. O desejo
que dimana da elaboração continuada do verso faz parte de um sistema
libidinal cuja química junta corpo e palavra no gesto vital da
criação. A nuvem pessimista que ensombra a temática erótica trai uma
característica bem vincada no texto poético de Floriano: um humor
trágico, uma tristeza envolvente e uma benigna pressão disfórica criam
atmosferas de seriedade e responsabilidade raramente geradoras de
ironia e de sarcasmo puro e duro. A desobediência exercita-a ele a seu
belo prazer no repto contínuo à elasticidade da língua. Se há em
qualquer parte um efeito de alegria, de festa, de irreverência nesta
torrente ele deverá ser encontrado na escrita em si mesma,
literalmente subversiva ao rejeitar o espartilho e a clausura
canónicos, em procedimentos marcados pelo princípio da incerteza e
pela emergência da espontaneidade – inesgotável fonte de recursos. A
recorrência do sentimento como jogo remete menos para o sonho do que
para o pesadelo. Os Ossos de
Susana Wald é um título de poema, aparentemente sepulcral,
valorizado pela frase: “Por vezes os títulos são a única nobreza da
arte.” Na ambiguidade: título nobiliárquico / título de poema, escolhi
o segundo termo por entender enviar directamente para o texto em
causa, ajustado à noção de perda nele subentendido. Além do mais a
utilidade como vestígio é considerável. Constitui uma advertência para
ser levada a sério na decifração da tipologia do lugar: um cemitério?
Outro vestígio: “A pedra não se move, sonha com melhores musgos ou
expressa felicidade quando a acaricia o orvalho.” Repare-se que digo
“aparentemente”, “subentendido”, “vestígio”, na mais completa
insegurança do que estou a procurar ver/ler através da tentativa de
achar uma significação para o que leio mas que o que leio torna vã.
Será pertinente entrever uma “conversa” entre um ser vivo e um ser
reduzido a ossos, num clima de veneração
post-morten da amante fantasmática? É, se eu quiser. Mas será sempre
a minha leitura e não aquela que o poeta porventura pretendeu que eu
fizesse do que escreveu. A não ser que seja para levar à letra a
declaração do malogrado Robert Desnos: “Não imagino o amor sem que o
gosto da morte, desprovida aliás de toda a sentimentalidade e de toda
a tristeza, esteja com ele mesclado.”
Creio ser este um dos méritos da poética em causa: deixar quem a lê
intrigado, inquieto, perplexo. Forçado a achar sentidos que não estão
lá, ou que pelo menos não estão lá
daquele jeito, o leitor opta
pelo reconhecimento da incomodidade que o assalta, apercebendo-se de
que é arrastado para longe do conforto da geometria expositiva e
“convidado” a reagir ao desafio de uma escrita de pulsões nos
antípodas da convenção gramatical. Desencarcerar a palavra, deixá-la
voar e a partir desse voo abrir a obra a múltiplos enfoques, do
comprazimento à rejeição, eis o estilo com que Floriano Martins está
na poesia, recebendo esta do seu fôlego, do seu talento e da sua
capacidade para actualizar uma problemática que aqui na Europa já
quase só é discutida em termos arqueológicos, formidável recarga de
energia.
*Só
consideradas as duas primeiras estrofes
**
As vanguardas na poesia
portuguesa do século XX, 1980