JÚLIO CONRADO...

Floriano

Conheci pessoalmente Floriano Martins em Huelva, em 2009, num encontro de escritores no qual se celebrava poesia feminina de Porto Rico. Oportunidade também para entrar em contacto com algumas poetas daquele estado norte-americano. Claro que eu já conhecia Floriano do intercâmbio internético, facilitado pela colaboração em TRIPLOV, portal dirigido por Maria Estela Guedes dedicado a Ernesto de Sousa, “pai” do chamado Cinema Novo português (Dom Roberto). Um assaz consistente currículo dá o cearense Floriano Martins (Fortaleza, 1957) como prolífico poeta mas igualmente tradutor, ensaísta, animador cultural, editor, sensível aos valores do Surrealismo e director de uma das mais antigas e prestigiadas revistas Culturais da NET, a Agulha. Temos pela frente uma força da natureza capaz de resistir a ventos e a marés para levar por diante, e dela extrair resultados extraordinários, a luta sempre inacabada em prol da cultura como reserva moral de sobrevivência numa sociedade global embriagada pelo poder do dinheiro e pela volatilidade do “efémero”.  

Numa primeira abordagem da poesia de Floriano Martins há certas coisas a levar desde cedo em conta: o ritmo (a torrencialidade), a vivência carnal (a celebração erótica), a dimensão humanista (a redenção do homem pelo trabalho lírico) e a utopia da escrita (a ultrapassagem de obstáculos que limitem a liberdade da palavra). Partindo de cada um destes pressupostos será razoável deduzir, atendendo aos padrões teóricos pelos quais se rege o dizer poético em estudo, que a existência de um eixo à volta do qual orbitam satélites muito ajuizados e pontuais, porfiando para que a ordem canónica da produção íntima do Sistema não imploda ou expluda, é ainda obstáculo de tomo. A sintaxe de mecanismo automático está visível no sintagma mas curiosamente FM recua, por vezes, ante a valorização pura do fragmento, do estilhaço, do caco linguístico, deixando a sua escrita a prudente distância do canto da loucura normal, isto é, abstendo-se de entregar a criação ao devorismo das mais extremadas demonstrações gráficas do caos. 

Dois pesos e duas medidas? Um pé no registo factual e o outro mergulhado num sensacionismo levado às últimas consequências em regime de cumplicidade com a função libertadora do sentido pela profusão de subsentidos em que aquele pela sua mão se dispersa? É um erro querer amarrar FM a estereótipos: a sua inconformação é mais favorável à absorção dos contrários do que à exclusão ressentida e preconceituosa de alguns deles. Como se num panelão misturasse incompletamente os ingredientes de uma refeição no final destituída do requintado sabor que seria o seu se a adição dos condimentos tivesse sido de acordo com a dosagem indicada.     

Uma boa parte do discurso de FM a que acedi exprime-se na fronteira da narrativa ficcional. De aí poder falar-se sem rebuço de prosa poética pese embora o facto de o texto apresentar o “tamanho” do conto convencional. O que distingue no processo da escrita o lírico do prosaico é a vertigem emotiva que fende a peça de lés a lés, não deixando espaço à formação de uma “história”, de um “enredo” ou de um “conflito” autonomizados, mas em que se cruzam temas que dão eco à raiva, ao desespero e à paixão que ardem no íntimo do A. Num texto como, por exemplo, Arlequim, a censura ao papel agónico do poeta prisioneiro de uma “dieta de falta de princípios”, da lei do “nada mais importa” e que “ignora mesmo que nome tenha o instante em que a dor apenas dói”, é bem o convite a vislumbrar-se um fundo moral através da rede vocabular labiríntica tecida, em primeira instância, para valorizar a liberdade verbal mas conferindo-lhe missões de vigilância ontológica e ideológica (e, já agora, deontológica) que remete para a existência em si, mas também social, do indivíduo questionado. A irreverência formal não inibe, pois, a mensagem de tocar os nervos da vida corrente num quadro de denúncia edificante que mantém dinâmica a ligação do texto a cada um dos destinatários e à inteligência do mundo.  

A indisciplina do signo tão excessiva no pregão teórico transfere-a o poeta cearense, neste particular domínio, para o nível semântico, aí se expondo ao tormento – ou ao delírio? – de uma espécie de estado de sítio permanente, fruto da fusão de sensações convertidas em significados hostis aos sonos tranquilos da lógica, da praxis e do costume instalado. É da extravagância dos conteúdos e não do gesto caligráfico da desordem, que brota o perigo de subversão da linguagem. Aqueles que cabeceiam contra uma parede sem “história” julgando-se heróis ao depreciarem nexos cujo dispositivo associam a insolências deletérias, desconhecem ao que andam. Floriano alterna os impulsos coroados por signos arbitrários com a “narrativização” do assunto por via caudalosa, é verdade, mas aceitando a intervenção da experiência e a consequente porção de memória na articulação da sua fala, sem prescindir um só instante de se servir de meios operacionais próximos da maneira “fleuve”, na espuma da qual sempre se movem a metáfora rica e o nonsense enigmático que garantem o estatuto imaginário em cuja indumentária ele se quer visto e apreciado. A distinção entre linguagem quotidiana e linguagem estética exprime-se aqui através de uma selecção natural apreensível à vista desarmada, quer quando um texto de fórmula compacta se impõe como entidade poética intrínseca, quer quando o discurso é fendido por elementos positivistas que o “aproximam” do lugar dos outros, o “exterior” onde todavia prevalece a cadeia verbal do contexto – a da contiguidade ordeira da família significante.  

Pelo que precede resulta que falar da obra de um autor tão inquietante (e inquietador) como este obriga a precauções de natureza vária, parecendo apropriado, no entanto, golpear sincronicamente a sua obra de modo a chegar-se ao ponto onde o processo ressente ruptura e desassossego. Uma das peculiaridades estilísticas de FM consiste no discurso mediatizado pela “voz” feminina na identificação e comentário da idiossincrasia masculina. Num poema como Duas mentiras (*) são descritas as tímidas movimentações do miúdo que só não arrepia caminho aquém da raia da consumação primordial porque a “protagonista” dissipa dúvidas ao mostrar-se aberta à “iniciativa” adolescente de que ela é, aliás, a incentivadora oculta. Em todo o caso, o que prende a atenção do leitor é o que é externo à disponibilidade circunstancial dela: a reacção do rapazinho depois de ter dado o passo que faltava à sua realização como homem. Os receios daquele que recua ante a oportunidade que lhe é oferecida de diversificar as tarefas do amor (fica a ideia de um falhado ritual de iniciação sado-masoquista a que ele não se acomoda) é a imagem culminante no poema, superior mesmo à que reporta ao efeito de decepção na expectativa feminina depois da saída de cena do “garoto”. Por duas pequenas estrofes alternam vibrações de desejo e afloramentos de estranheza inibitória que convergem para um destino de frustração, que o poeta resolve recorrendo ao sonho – o sonho agridoce. Mais do que inibição é a iminência do terror o que afugenta o aprendiz. Por aí passa a linha de fractura entre o salto no abismo e o recuo para melhor ponderação da prática sugerida. A audácia ainda não é predicado que facilite o acesso aos itens do reportório erótico por alguém de pouca idade (menor?) a aquecer os motores da perversidade feminina ou, se se quiser, para atender à ideia axiomática, da intermediação da mulher no amor como “forma iniciática”.  

Esta breve simulação tem em vista sublinhar a capacidade de Floriano Martins de se desdobrar entre dois universos psicológicos: a maturidade feminina versus inocência/incerteza masculina na construção de uma realidade poética tangível à situação clássica de aquisição de conhecimento da vida. Várias dicotomias se detectam em tão curto texto: Ela madura/ele imaturo, conhecimento/ignorância, fantasia/decepção, audácia/terror, transgressão/ retraimento, ou seja, uma actividade dialéctica constante, cativadora da solidariedade do receptor relativamente a códigos de comportamento da esfera do desejo e no miolo da qual fazem ninho os propósitos mais exaltantes de negação da rotina estabelecida.  

As minhas recepção e interpretação da primeira parte do poema de Floriano Martins serão porventura abusivas, porquanto se calhar tentei domesticar o que não é propenso a deixar-se encapsular num qualquer esconderijo lógico-simbólico. Por ser da ordem da intuição e da emoção, não do racional. Quis apenas frisar que nos fluxos de texto em caudal de cheia sobrenadam módulos de vida quotidiana, “realista” se assim se pode dizer sem ofender ninguém. Espelham uma vinculação ao mundo “habitual” enquanto não lhe é aplicado o antídoto que leva a significação a transbordar das margens que parecia constrangida a respeitar. Talvez eu tivesse sido tentado a estabelecer uma zona híbrida de compromisso onde o real objectivo e as forças polissémicas da dilatação informal fossem vizinhos que, no mínimo, se tolerassem. Não posso, todavia, deixar de encontrar similitude entre alguma prática poética de FM e o que em 1980 E. M. de Melo e Castro, teórico e poeta de vanguarda dos anos sessenta, escrevia a propósito de Cesariny: “Sob o ponto de vista textual o Surrealismo move-se no âmbito de uma imagística absurda mas a que não são alheias práticas de construção do texto muito rigorosas.” (**) 

Noutros casos, o veio desconstrutivista lidera a acção no discurso e aí temos um claro reforço do mágico e do absurdo afastado da supervisão do olho clínico da razão. O poeta, nestas circunstâncias, mergulha no postulado surrealista e frequenta todas as variáveis “escolares” do movimento, conferindo especial ênfase à libertação do homem da tirania dos tabus sexuais da herança judaico-cristã. O desejo que dimana da elaboração continuada do verso faz parte de um sistema libidinal cuja química junta corpo e palavra no gesto vital da criação. A nuvem pessimista que ensombra a temática erótica trai uma característica bem vincada no texto poético de Floriano: um humor trágico, uma tristeza envolvente e uma benigna pressão disfórica criam atmosferas de seriedade e responsabilidade raramente geradoras de ironia e de sarcasmo puro e duro. A desobediência exercita-a ele a seu belo prazer no repto contínuo à elasticidade da língua. Se há em qualquer parte um efeito de alegria, de festa, de irreverência nesta torrente ele deverá ser encontrado na escrita em si mesma, literalmente subversiva ao rejeitar o espartilho e a clausura canónicos, em procedimentos marcados pelo princípio da incerteza e pela emergência da espontaneidade – inesgotável fonte de recursos. A recorrência do sentimento como jogo remete menos para o sonho do que para o pesadelo. Os Ossos de Susana Wald é um título de poema, aparentemente sepulcral, valorizado pela frase: “Por vezes os títulos são a única nobreza da arte.” Na ambiguidade: título nobiliárquico / título de poema, escolhi o segundo termo por entender enviar directamente para o texto em causa, ajustado à noção de perda nele subentendido. Além do mais a utilidade como vestígio é considerável. Constitui uma advertência para ser levada a sério na decifração da tipologia do lugar: um cemitério? Outro vestígio: “A pedra não se move, sonha com melhores musgos ou expressa felicidade quando a acaricia o orvalho.” Repare-se que digo “aparentemente”, “subentendido”, “vestígio”, na mais completa insegurança do que estou a procurar ver/ler através da tentativa de achar uma significação para o que leio mas que o que leio torna vã. Será pertinente entrever uma “conversa” entre um ser vivo e um ser reduzido a ossos, num clima de veneração post-morten da amante fantasmática? É, se eu quiser. Mas será sempre a minha leitura e não aquela que o poeta porventura pretendeu que eu fizesse do que escreveu. A não ser que seja para levar à letra a declaração do malogrado Robert Desnos: “Não imagino o amor sem que o gosto da morte, desprovida aliás de toda a sentimentalidade e de toda a tristeza, esteja com ele mesclado.” 

Creio ser este um dos méritos da poética em causa: deixar quem a lê intrigado, inquieto, perplexo. Forçado a achar sentidos que não estão lá, ou que pelo menos não estão lá daquele jeito, o leitor opta pelo reconhecimento da incomodidade que o assalta, apercebendo-se de que é arrastado para longe do conforto da geometria expositiva e “convidado” a reagir ao desafio de uma escrita de pulsões nos antípodas da convenção gramatical. Desencarcerar a palavra, deixá-la voar e a partir desse voo abrir a obra a múltiplos enfoques, do comprazimento à rejeição, eis o estilo com que Floriano Martins está na poesia, recebendo esta do seu fôlego, do seu talento e da sua capacidade para actualizar uma problemática que aqui na Europa já quase só é discutida em termos arqueológicos, formidável recarga de energia.  

 

*Só consideradas as duas primeiras estrofes

** As vanguardas na poesia portuguesa do século XX, 1980

Júlio Conrado. Ficcionista, ensaísta, poeta . Olhão, 26.11.1936 . Publicou o primeiro livro de ficção em 1963 e o primeiro ensaio na imprensa de âmbito nacional em 1965 (Diário de Lisboa). Exerceu a crítica literária em vários jornais diários de referência e em jornais e revistas especializados como Colóquio Letras, Jornal de Letras e Vida Mundial. Participação em colóquios e congressos internacionais. Participação como jurado nos principais prémios literários portugueses. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, Associação Internacional dos Críticos Literários, Associação Portuguesa dos Críticos Literários e Pen Clube Português. A sua obra ensaística, ficcional e poética está reunida numa vintena de livros. Alguns livros e ensaios foram traduzidos em francês, alemão, húngaro e inglês.

Ver bio-bibliografia alargada em:

http://penclube.no.sapo.pt/pen_portugues/socios/julio_conrado.htm