Não
há coisa mais prosaica do que ser-se escritor de café. O meu caso. Não
tem substância romanesca, glamour, pingo de originalidade. É, digamos,
um vício solitário sem rasgo. Ao contrário do outro, circunscrito aos
verdes anos, este é vitalício. Lembram-se daquele escritor que produzia
ficções no carro e via mal? Já tinha obra importante e quase ninguém
reparara ainda nele. Foi a reportagem numa revista de grande circulação
que o “pôs” a escrever, meio cego, dentro do automóvel, a espoletar o
fenómeno: a fama substantiva chegou logo a seguir. Ora criar literatura
no café não tem essa espessura iconográfica, esse potencial de feitiço,
é mesmo uma actividade e um local de trabalho vistos com suspeição pela
clientela que pára ali mais para comer, beber e conversar do que para
outra coisa. Por vezes sou tomado por bicho exótico. E todavia dou-me
bem com tal forma de clandestinidade. O bruáá envolvente é-me essencial.
O diálogo com o computador acontece de madrugada para registar e afinar
os apontamentos diurnos ou enveredar por um pouco de investigação. A
horas tantas faço do café o meu escritório e pronto. Vai ser assim até
ao fim. Ora, como veremos, mesmo um obscuro escritor de café é por vezes
recompensado pelos deuses com truques de puro inesperado.
Quando me desloco a Pragança, aldeia encravada no flanco norte da
serra de Montejunto, onde numa pequena segunda habitação passo os
fins-de-semana, não me dispenso de matar o vício fora de portas. Certo
sábado, por volta do meio-dia, num estabelecimento do Cadaval, estava eu
lá ao fundo sentado a desbravar vocabulário quando um súbito frémito
introduziu grande alteração na atmosfera ambiente. As duas proprietárias
– a rapariga e a veterana – saltaram de detrás do balcão e
precipitaram-se para a vidraça panorâmica debruçada sobre a praça
principal da Vila. A jovem não conseguiu reter o sobressalto sonoro:
“Está ali o Paulo Portas!”
A emoção no interior do café cresceu em flecha quando se percebeu
que o líder do Partido Popular para lá se dirigia acompanhado por alguns
correligionários. Corria a campanha eleitoral, se não erro, para as
últimas legislativas. As duas mulheres – principalmente a mais nova –
ficaram em êxtase, esmagadas pelo assombro. Paulo Portas entrou,
elegante e bem disposto, saudou os presentes e defendeu a excelência do
programa partidário, enquanto os acompanhantes distribuíam
esferográficas em
redor. Já de saída, reparou que lhe faltava
cumprimentar o homenzinho que na mesa do fundo não parara de
escrevinhar, fingindo ignorar a sua presença. Eu.
Retrocedeu, como quem se apressa a corrigir lamentável distração,
e proferiu:
“Vou ali falar àquele senhor.”
Se assim o disse, melhor o fez. Como sou pessoa educada retribuí
a atenção, usando a fórmula que guardo de reserva para estas situações,
à qual nem o rei de Espanha escapou:
Como vai? Depois, foi acabar
de cumprir noutro lado, com a consciência em paz, a exigente jornada
eleitoral. Tive direito, claro, a uma esferográfica.
Quando os ânimos serenaram, a mulher mais nova veio ter comigo e
disse:
“O senhor é um homem de sorte! Ser cumprimentado pelo grande
Paulo Portas em pessoa…Não é o máximo?”
Limitei a resposta a enigmático sorriso, enquanto pensava:
“Foi ele o sortudo. Acaba
de apertar a mão ao grande Júlio Conrado.”
Esta crónica devia acabar aqui. Do meu
ponto de vista até era um final
em beleza. A
aparição do político centrista e do seu séquito gerou, porém,
desenvolvimentos controversos.
Passados minutos, dois indivíduos, um com bigode, o outro não,
sentaram-se junto da mesa ao lado
da minha, sendo que o de bigode, taradinho por palavras cruzadas, se
levantou para ir à procura do jornal da casa, regressando com ele já
aberto na página correspondente. Faltava-lhe, porém, o essencial: com
que preencher os quadradinhos mágicos. Nem o desbigodado lhe pudera
valer. Solícito, estendi-lhe a esferográfica de campanha que me fora
oferecida.
Aceitou. Ao verificar a origem do objeto largou-o, num repente,
em cima do matutino, como se tivesse peçonha ou lhe queimasse os dedos.
“Mas isto é uma caneta
do CDS”, vociferou, exibindo aquela rude franqueza tão peculiar nos
homens do oeste.
O companheiro ficou sem saber o que dizer.
“Se é só para fazer as palavras cruzadas…”, alvitrei, cauteloso.
O visado, por instantes, ficou imóvel e calado. A estoirar de
indignação lá por dentro, a avaliar pelo olhar terrível com que me
trespassou.
“Fique com ela”, decidi, ao levantar-me para desandar, apanhando
a papelada e deixando cinquenta cêntimos na chávena. “Já estava de
abalada.”
A
meio caminho da porta assaltou-me um torpe pressentimento.
Voltei-me.
O
homem, debruçado sobre o jornal, empunhava o brinde odioso.
As palavras cruzadas tinham levado a melhor.
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