JÚLIO CONRADO...

Apontamentos para um livro de memórias
Atribulações de um escritor        de café

         Não há coisa mais prosaica do que ser-se escritor de café. O meu caso. Não tem substância romanesca, glamour, pingo de originalidade. É, digamos, um vício solitário sem rasgo. Ao contrário do outro, circunscrito aos verdes anos, este é vitalício. Lembram-se daquele escritor que produzia ficções no carro e via mal? Já tinha obra importante e quase ninguém reparara ainda nele. Foi a reportagem numa revista de grande circulação que o “pôs” a escrever, meio cego, dentro do automóvel, a espoletar o fenómeno: a fama substantiva chegou logo a seguir. Ora criar literatura no café não tem essa espessura iconográfica, esse potencial de feitiço, é mesmo uma actividade e um local de trabalho vistos com suspeição pela clientela que pára ali mais para comer, beber e conversar do que para outra coisa. Por vezes sou tomado por bicho exótico. E todavia dou-me bem com tal forma de clandestinidade. O bruáá envolvente é-me essencial. O diálogo com o computador acontece de madrugada para registar e afinar os apontamentos diurnos ou enveredar por um pouco de investigação. A horas tantas faço do café o meu escritório e pronto. Vai ser assim até ao fim. Ora, como veremos, mesmo um obscuro escritor de café é por vezes recompensado pelos deuses com truques de puro inesperado.   

            Quando me desloco a Pragança, aldeia encravada no flanco norte da serra de Montejunto, onde numa pequena segunda habitação passo os fins-de-semana, não me dispenso de matar o vício fora de portas. Certo sábado, por volta do meio-dia, num estabelecimento do Cadaval, estava eu lá ao fundo sentado a desbravar vocabulário quando um súbito frémito introduziu grande alteração na atmosfera ambiente. As duas proprietárias – a rapariga e a veterana – saltaram de detrás do balcão e precipitaram-se para a vidraça panorâmica debruçada sobre a praça principal da Vila. A jovem não conseguiu reter o sobressalto sonoro:

            “Está ali o Paulo Portas!”

           A emoção no interior do café cresceu em flecha quando se percebeu que o líder do Partido Popular para lá se dirigia acompanhado por alguns correligionários. Corria a campanha eleitoral, se não erro, para as últimas legislativas. As duas mulheres – principalmente a mais nova – ficaram em êxtase, esmagadas pelo assombro. Paulo Portas entrou, elegante e bem disposto, saudou os presentes e defendeu a excelência do programa partidário, enquanto os acompanhantes distribuíam esferográficas em redor. Já de saída, reparou que lhe faltava cumprimentar o homenzinho que na mesa do fundo não parara de escrevinhar, fingindo ignorar a sua presença. Eu.

            Retrocedeu, como quem se apressa a corrigir lamentável distração, e proferiu:

            “Vou ali falar àquele senhor.”

            Se assim o disse, melhor o fez. Como sou pessoa educada retribuí a atenção, usando a fórmula que guardo de reserva para estas situações, à qual nem o rei de Espanha escapou: Como vai? Depois, foi acabar de cumprir noutro lado, com a consciência em paz, a exigente jornada eleitoral. Tive direito, claro, a uma esferográfica.

            Quando os ânimos serenaram, a mulher mais nova veio ter comigo e disse:

            “O senhor é um homem de sorte! Ser cumprimentado pelo grande Paulo Portas em pessoa…Não é o máximo?”

            Limitei a resposta a enigmático sorriso, enquanto pensava:

           Foi ele o sortudo. Acaba de apertar a mão ao grande Júlio Conrado.”

            Esta crónica devia acabar aqui. Do meu ponto de vista até era um final em beleza. A aparição do político centrista e do seu séquito gerou, porém, desenvolvimentos controversos.

            Passados minutos, dois indivíduos, um com bigode, o outro não,  sentaram-se junto da mesa ao lado da minha, sendo que o de bigode, taradinho por palavras cruzadas, se levantou para ir à procura do jornal da casa, regressando com ele já aberto na página correspondente. Faltava-lhe, porém, o essencial: com que preencher os quadradinhos mágicos. Nem o desbigodado lhe pudera valer. Solícito, estendi-lhe a esferográfica de campanha que me fora oferecida.

            Aceitou. Ao verificar a origem do objeto largou-o, num repente, em cima do matutino, como se tivesse peçonha ou lhe queimasse os dedos.

            “Mas isto é uma caneta do CDS”, vociferou, exibindo aquela rude franqueza tão peculiar nos homens do oeste.

            O companheiro ficou sem saber o que dizer.

            “Se é só para fazer as palavras cruzadas…”, alvitrei, cauteloso.

           O visado, por instantes, ficou imóvel e calado. A estoirar de indignação lá por dentro, a avaliar pelo olhar terrível com que me trespassou.

            “Fique com ela”, decidi, ao levantar-me para desandar, apanhando a papelada e deixando cinquenta cêntimos na chávena. “Já estava de abalada.”   

            A meio caminho da porta assaltou-me um torpe pressentimento.

           Voltei-me.

           O homem, debruçado sobre o jornal, empunhava o brinde odioso.

            As palavras cruzadas tinham levado a melhor.

 

Júlio Conrado. Ficcionista, ensaísta, poeta . Olhão, 26.11.1936 . Publicou o primeiro livro de ficção em 1963 e o primeiro ensaio na imprensa de âmbito nacional em 1965 (Diário de Lisboa). Exerceu a crítica literária em vários jornais diários de referência e em jornais e revistas especializados como Colóquio Letras, Jornal de Letras e Vida Mundial. Participação em colóquios e congressos internacionais. Participação como jurado nos principais prémios literários portugueses. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, Associação Internacional dos Críticos Literários, Associação Portuguesa dos Críticos Literários e Pen Clube Português. A sua obra ensaística, ficcional e poética está reunida numa vintena de livros. Alguns livros e ensaios foram traduzidos em francês, alemão, húngaro e inglês.

Ver bio-bibliografia alargada em:

http://penclube.no.sapo.pt/pen_portugues/socios/julio_conrado.htm