Jerusalém é um livro agressivo sem ser um livro agreste.
As personagens representam camadas sociais sobrepostas – médicos,
loucos, uma prostituta e um assassino, adúlteros dos dois sexos, miúdos
cruéis – que conflituam num quadro de mundos obrigados a
inter-comunicarem, extractos socialmente em crise de identidade e de
solidariedades internas abaladas pela míngua de referências morais
sólidas. Mesmo Deus, um valor consensual, mantém fechadas as portas da
casa sagrada a uma mulher que desesperadamente procura ajuda às cinco da
manhã, hora perigosa para rondar igrejas. Deus não deve ser interrompido
no sono para acudir aos aflitos. O Hospício e a rivalidade entre
cientistas, a teoria da catástrofe final do universo dependente dos
equilíbrios do terror e a debilidade dos fracos ante os poderosos em
tempo de paz, são linhas de força que o autor explora com o à vontade de
quem sabe escrever uma história de conteúdo lógico optando por cortes
sincrónicos que baralham a cronologia e perturbam a diacronia, sem
todavia a estas deixar o discurso de render obediência no cômputo da
reconciliação das aproximações e recuos espaciotemporais textualizados.
A este respeito cabe dizer que G. M. T. despe a sua escrita de toda e
qualquer menção a localidades, paradigmas epocais, traços de grupo que
transcendam a cultura que cada indivíduo da história transporta
consigo: o médico, o assassino, a puta, a louca. O autor expulsa do
texto, tanto quanto possível, a matéria alusiva. Os nomes não são
portugueses: eles e elas chamam-se Hinnerk, Busbeck, Gomperz, Hanna ou
Milya. O famoso (e caro) manicómio é o Hospício Georg Rosenberg. Não se
sabe de que guerra é Hinnerk sobrevivente. Da segunda guerra mundial? Da
Bósnia? Do Iraque? Do Afeganistão? De África? Ignora-se que país é
aquele onde se está. Que cidade é aquela. Sim, há o primeiro andar do nº
77 da Rua Moltke mas isso não impede que o leitor seja colocado num não
lugar, se sinta num sítio de toponímia reduzida ao mínimo e sem
letreiros sinalizadores que lhe forneçam orientações. E depois? E, bem
vistas as coisas, para quê, se tudo o que acontece em Jerusalém
pode acontecer em Berlim, Paris, Amsterdão ou Lisboa ?
Das linhas de força estratégicas atrás mencionadas parte o autor para
danosos cenários de efabulação. Desde logo, o fogo de artifício
psiquiátrico impera nas primeiras páginas (ela era doente da cabeça)
mas cedo passará a fogo real quando a intriga maior atravessar a loucura
controlada do manicómio e as consequências expuserem os responsáveis aos
ajustes de consciência depois de aplicadas medidas administrativas de
punição a prevaricadores. O desfecho do acto clínico falhado – a
operação de esterilização de uma doente – é trágico. O desrespeito pela
vida humana é dado numa prosa dura, fria, sem concessões à emoção. O
desespero inculca-se a partir das terminologias profissionalizantes, um
tanto clínicas e por conseguinte cínicas, insensíveis à pressão das
lágrimas. As falas das personagens, mesmo quando operam em contextos de
aguda crise existencial, nunca abandonam o registo contido, como se, na
esfera mental, o temor provocado por qualquer revelação radical tivesse
dado lugar à naturalização do terror e a linguagem que o exprime soasse
já infectada pela resignação a um fado extravagante: a morte a prazo, a
pulsão assassina, a despersonalização hospitalar.
Momentos há merecedores da classificação “de antologia”, como o velório
de Thomas Busbeck e a reacção de Kaas ante o cadáver do avô, o
antagonismo das crianças relativamente a Hinnerk e a crescente presunção
deste de que uma delas será um dia sua vítima ou as “dores” de Mylia à
porta da igreja, apertada pela fome, pela vontade de urinar e pela “dor
que agora não consigo ouvir” mas de que vai morrer, a menos que suceda
um milagre. O medo cresce insidiosamente por meio de pequenas frases
soltas grafadas a itálico que ressaltam do texto neutro com outro peso,
indícios que são de crescente deterioração do chamado mundo normal. As
balizas temporais são negligenciadas. O romance, pode dizer-se, começa
pelo fim. Cada capítulo dispõe de um tempo autónomo. A ordem
cronológica é atropelada mas do distúrbio sequencial que dessa
transgressão deriva sai ilesa a articulação da trama: os fragmentos
convergem para um eixo semântico clássico, o livro conta realmente
uma história, os bons e os maus não são necessariamente recompensados e
castigados segundo as suas aptidões mas reflectem, ou alguém reflecte
por eles, sobre as causas que socialmente os descompensam ao posarem
para uma fotografia do horror urbano em que nenhum se salva, mesmo os
que escapam com vida.
Globalmente, Jerusalém é um bom romance, que põe à consideração
do leitor algumas ousadias técnicas, e que obriga, no mínimo, a uma
segunda leitura que permita eliminar a inicial sensação de caos e de
estranheza, e observar a harmonia com que todas as peças do puzzle
acabam por se encaixar umas nas outras. Independentemente da forma como
o receptor da obra queira desmontar e voltar a montar o texto
realinhando a cronologia da acção, exercício fácil e exequível se para
aí estiver virado, cada capítulo vale por si, isto é, cada capítulo é
suficientemente apelativo para matar a fome de novidade a quem
por aí procure o pão de que precisa. Talvez seja de pôr algumas
reticências à forma expedita como é encerrado o caso do assassinato de
Kaas. Tudo no livro aponta para que o autor da morte do garoto tivesse
sido Hinnerk, a tiro, pois para tal assim se preparara. Uma
perícia mínima de rotina criminal – o exame balístico – concluiria pelo
calibre igual dos projécteis mortíferos. Um detective astuto não teria
dificuldade em relacionar as duas mortes violentas, na mesma noite, em
locais de relativa proximidade. Mas isto daria, talvez, um novo romance.
E a verdade é que Gonçalo M. Tavares não escreve, preto no branco, que o
rapaz foi morto a tiro.
Certamente voltarei qualquer dia a outros escritos do autor,
justificando-se esta recensão pela recente edição francesa do romance.
Livro vencedor de prémios importantes e que suscitou críticas positivas
com unanimidade rara, Jerusalém merece a fortuna ganha. Obras
como esta permitem concluir que o futuro da ficção portuguesa de
qualidade está assegurado. |