JÚLIO CONRADO...

JERUSALÉM, de Gonçalo M. Tavares

Jerusalém é um livro agressivo sem ser um livro agreste.

As personagens representam camadas sociais sobrepostas – médicos, loucos, uma prostituta e um assassino, adúlteros dos dois sexos, miúdos cruéis – que conflituam num quadro de mundos obrigados a inter-comunicarem, extractos socialmente em crise de identidade e de solidariedades internas abaladas pela míngua de referências morais sólidas. Mesmo Deus, um valor consensual, mantém fechadas as portas da casa sagrada a uma mulher que desesperadamente procura ajuda às cinco da manhã, hora perigosa para rondar igrejas. Deus não deve ser interrompido no sono para acudir aos aflitos. O Hospício e a rivalidade entre cientistas, a teoria da catástrofe final do universo dependente dos equilíbrios do terror e a debilidade dos fracos ante os poderosos em tempo de paz, são linhas de força que o autor explora com o à vontade de quem sabe escrever uma história de conteúdo lógico optando por cortes sincrónicos que baralham a cronologia e perturbam a diacronia, sem todavia a estas deixar o discurso de render obediência no cômputo da reconciliação das aproximações e recuos espaciotemporais textualizados.

A este respeito cabe dizer que G. M. T. despe a sua escrita de toda e qualquer menção a localidades, paradigmas epocais, traços de grupo que transcendam a cultura que cada indivíduo da história transporta consigo: o médico, o assassino, a puta, a louca. O autor expulsa do texto, tanto quanto possível, a matéria alusiva. Os nomes não são portugueses: eles e elas chamam-se Hinnerk, Busbeck, Gomperz, Hanna ou Milya. O famoso (e caro) manicómio é o Hospício Georg Rosenberg. Não se sabe de que guerra é Hinnerk sobrevivente. Da segunda guerra mundial? Da Bósnia? Do Iraque? Do Afeganistão? De África? Ignora-se que país é aquele onde se está. Que cidade é aquela. Sim, há o primeiro andar do nº 77 da Rua Moltke mas isso não impede que o leitor seja colocado num não lugar, se sinta num sítio de toponímia reduzida ao mínimo e sem letreiros sinalizadores que lhe forneçam orientações. E depois? E, bem vistas as coisas, para quê, se tudo o que acontece em Jerusalém pode acontecer em Berlim, Paris, Amsterdão ou Lisboa ?     

Das linhas de força estratégicas atrás mencionadas parte o autor para danosos cenários de efabulação. Desde logo, o fogo de artifício psiquiátrico impera nas primeiras páginas (ela era doente da cabeça) mas cedo passará a fogo real quando a intriga maior atravessar a loucura controlada do manicómio e as consequências expuserem os responsáveis aos ajustes de consciência depois de aplicadas medidas administrativas de punição a prevaricadores. O desfecho do acto clínico falhado – a operação de esterilização de uma doente – é trágico. O desrespeito pela vida humana é dado numa prosa dura, fria, sem concessões à emoção. O desespero inculca-se a partir das terminologias profissionalizantes, um tanto clínicas e por conseguinte cínicas, insensíveis à pressão das lágrimas. As falas das personagens, mesmo quando operam em contextos de aguda crise existencial, nunca abandonam o registo contido, como se, na esfera mental, o temor provocado por qualquer revelação radical tivesse dado lugar à naturalização do terror e a linguagem que o exprime soasse já infectada pela resignação a um fado extravagante: a morte a prazo, a pulsão assassina, a despersonalização hospitalar.

Momentos há merecedores da classificação “de antologia”, como o velório de Thomas Busbeck e a reacção de Kaas ante o cadáver do avô, o antagonismo das crianças relativamente a Hinnerk e a crescente presunção deste de que uma delas será um dia sua vítima ou as “dores” de Mylia à porta da igreja, apertada pela fome, pela vontade de urinar e pela “dor que agora não consigo ouvir” mas de que vai morrer, a menos que suceda um milagre. O medo cresce insidiosamente por meio de pequenas frases soltas grafadas a itálico que ressaltam do texto neutro com outro peso, indícios que são de crescente deterioração do chamado mundo normal. As balizas temporais são negligenciadas. O romance, pode dizer-se, começa pelo fim. Cada capítulo dispõe de um tempo autónomo. A ordem cronológica é atropelada mas do distúrbio sequencial que dessa transgressão deriva sai ilesa a articulação da trama: os fragmentos convergem para um eixo semântico clássico, o livro conta realmente uma história, os bons e os maus não são necessariamente recompensados e castigados segundo as suas aptidões mas reflectem, ou alguém reflecte por eles, sobre as causas que socialmente os descompensam ao posarem para uma fotografia do horror urbano em que nenhum se salva, mesmo os que escapam com vida. 

Globalmente, Jerusalém é um bom romance, que põe à consideração do leitor algumas ousadias técnicas, e que obriga, no mínimo, a uma segunda leitura que permita eliminar a inicial sensação de caos e de estranheza, e observar a harmonia com que todas as peças do puzzle acabam por se encaixar umas nas outras. Independentemente da forma como o receptor da obra queira desmontar e voltar a montar o texto realinhando a cronologia da acção, exercício fácil e exequível se para aí estiver virado, cada capítulo vale por si, isto é, cada capítulo é suficientemente apelativo para matar a fome de novidade a quem por aí procure o pão de que precisa. Talvez seja de pôr algumas reticências à forma expedita como é encerrado o caso do assassinato de Kaas. Tudo no livro aponta para que o autor da morte do garoto tivesse sido Hinnerk, a tiro, pois para tal assim se preparara. Uma perícia mínima de rotina criminal – o exame balístico – concluiria pelo calibre igual dos projécteis mortíferos. Um detective astuto não teria dificuldade em relacionar as duas mortes violentas, na mesma noite, em locais de relativa proximidade. Mas isto daria, talvez, um novo romance. E a verdade é que Gonçalo M. Tavares não escreve, preto no branco, que o rapaz foi morto a tiro.

Certamente voltarei qualquer dia a outros escritos do autor, justificando-se esta recensão pela recente edição francesa do romance. Livro vencedor de prémios importantes e que suscitou críticas positivas com unanimidade rara, Jerusalém merece a fortuna ganha. Obras como esta permitem concluir que o futuro da ficção portuguesa de qualidade está assegurado.

Latitudes, Cahiers Lusophones / Triplov

Júlio Conrado. Ficcionista, ensaísta, poeta . Olhão, 26.11.1936 . Publicou o primeiro livro de ficção em 1963 e o primeiro ensaio na imprensa de âmbito nacional em 1965 (Diário de Lisboa). Exerceu a crítica literária em vários jornais diários de referência e em jornais e revistas especializados como Colóquio Letras, Jornal de Letras e Vida Mundial. Participação em colóquios e congressos internacionais. Participação como jurado nos principais prémios literários portugueses. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, Associação Internacional dos Críticos Literários, Associação Portuguesa dos Críticos Literários e Pen Clube Português. A sua obra ensaística, ficcional e poética está reunida numa vintena de livros. Alguns livros e ensaios foram traduzidos em francês, alemão, húngaro e inglês.

Ver bio-bibliografia alargada em:

http://penclube.no.sapo.pt/pen_portugues/socios/julio_conrado.htm