Há uns anos, quando participei no júri de um prémio literário importante, veio parar-me às mãos o primeiro livro de Rodrigo Guedes de Carvalho Daqui a Nada, que li com o desprendimento e a pressa de quem tinha obras mais consistentes de que se ocupar num tempo de leitura muito curto, mas que deixei debaixo de olho para ulterior ponderação.
Diz-me a experiência que uma primeira obra ou constrói instantaneamente uma personalidade literária (casos de Rumor Branco, de Almeida Faria ou O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge) ou é apenas um primeiro lanço de escada a cujo topo só se chega com esforço e teimosia. Se houver mérito, o futuro se encarregará, mesmo em data incerta, da respectiva recompensa. Parece-me que Rodrigo Guedes de Carvalho se inclui na segunda categoria e que o seu mais recente romance, Canário, corresponde a um ponto do percurso do ficcionista que o coloca a enorme distância da imaturidade da primeira obra.
Também no contexto em que este livro aqui aparece referenciado – Os Escritores da Pantalha – constituindo o terceiro anel que encerra esta série de artigos, se me afigura existir uma atitude de seriedade na assunção do papel do escritor e um respeito pelo leitor que contrastam com o que, de uma maneira geral, acontece com os escritores-espectáculo fabricados pelos media. Pelo menos, aqui alguém se interroga, por interposta personagem, sobre a condição do escritor e a validade da respectiva obra: “Agora haverá, como sempre, que largar o livro ao mundo. Felicidade e angústia. E se. E se. Se não conseguiu. Se regrediu. Se ficou parado no mesmo lugar. E uma outra palavra, mais perigosa. Irrelevante. Se se tornou irrelevante.” Canário dá algumas respostas a esta ansiedade.
Temos, então, uma personagem que é um escritor maduro, consagrado, que se questiona sobre o seu próprio desígnio, o seu trabalho, a forma como vai evoluindo o gosto dos que lhe vigiam a escrita, os pareceres intercalares, as angústias do criador coladas às flutuações do casamento em crise larvar. Antes disso, o condutor de um automóvel, suposto suicida, lança o terror na estrada à procura de parceiro ou parceiros que lhe façam companhia na viagem fatal. Torna-se claro que a ficção, no processo de enunciação da intriga, vai sendo submetida a fogo opinativo oriundo de vários quadrantes e que perante esses pequenos infernos domésticos relativamente aos quais o autor tem de fazer prova das suas persistência e combatividade, ele só se salvará ignorando o fogo cruzado das críticas, seguindo em frente de dentes cerrados, ouvidos tapados, mente limpa e mãos livres. As consequências desse individualismo militante, que desconhece crises de má consciência na relação com os outros, virão, porém, a revelar-se catastróficas quando se trata dos familiares mais próximos, cavando um fosso que se anunciara intransponível, um buraco negro de que as últimas páginas dão imagem assustadora.
Uma proposta como a de R.G.C. tem sempre o seu quê de fascinante, mesmo apelando para a memória cultural em que exemplos tão pertinentes como O Silêncio dos Inocentes (filme de Jonathan Demme), Ursamaior (romance de Mário Cláudio), A Sangue Frio (romance de Truman Capote) Vida e Mortes de Faustino Cavaco (autobiografia coordenada por Rogério Rodrigues) ou O Canto do Carrasco (romance de Norman Mailler), entre naturalmente muitos outros, nos dizem que a temática do mundo das prisões e o que está por detrás dele, centrada num autor ou autores de crimes de sangue, não sendo nova na literatura nem no cinema, assegura um campo de manobra sempre com algo por desbravar, nomeadamente quando a intriga passa pelos contactos do sujeito “normal”com o objecto da sua curiosidade, o criminoso. A este último, saber que a excepcionalidade do seu caso desperta a atenção de alguém que pode ampliar-lhe a reputação para lá das grades, lisonjeia e faz que se abra à confidência. Mas não é nessa cumplicidade residual que se funda o núcleo duro do enredo que Canário traz à luz e floresce através da palavra em que drama e tragédia se refazem para lá da frieza das sentenças e dos julgamentos de opinião. O escritor – a personagem Alexandre – é implicado directamente no processo ao ser-lhe atribuída a paternidade de Geraldo, o prisioneiro. O grau de parentesco é mantido secreto até meio do livro, ao cabo de cento e oitenta páginas de prosa viva e estimulante sem que se vislumbre o desenho do sentido, o que credita, desde logo, Guedes de Carvalho como um perito do suspense.
O romance não está estruturado linearmente. A alternância na cena ficcional reporta a uma dinâmica em que as histórias de família e a vida no cárcere seguem um trajecto paralelo, durante muito tempo sem conexões à vista, embora a certa altura se pressinta que aquele escritor acabará por ir dar àquele presidiário. O “truque”, administrado com pulso seguro, expande a expectativa do leitor, graças, sobretudo, à competente gestão espaciotemporal e à convocação das formas lexicais específicas que tutelam a plausibilidade dos comportamentos. Do aparente tumulto da escrita vão surgindo como que duas linhas de força que acabam por se impor a todas as outras; é na passagem de paralelas a convergentes que acabam por unir num ponto de encontro os universos antagónicos representados pelos protagonistas.
Essa convergência arrasta consigo dramas do quotidiano que se vinham insinuando isoladamente como conflitos potenciais: o inchado ego do escritor cruelmente desmascarado pela mulher; a indiferença de Alexandre pela filha, abandonada pelo marido, que lhe dera um neto autista; as acções que obrigaram Geraldo a matar o amante da mãe; o oportunismo do pai inesperado ao sugar, até ao tutano, do filho acidental, o relato do diaa-dia na cadeia com que salvará a sua carreira de escritor, afinal em declínio. Emerge, sem dúvida, deste amargo texto, uma verdadeira viagem ao fundo do egoísmo do artista cuja precisão psicológica e caracterização sociológica deveriam constituir fonte de perturbação e de reflexão por parte dos seres humanos tocados por essa outra espécie de autismo: a vaidade desmesurada. No caso particular de Alexandre, autor de todo o desconforto que provoca à sua volta, jamais um exercício de autocrítica lhe sublevou a crença desumanizada nas suas superiores capacidades. A ligeireza com que “deixa cair” o filho que “salvou”, depois que este lhe serviu de degrau para a sua ressurreição profissional, dá a medida justa de um egoísmo incurável que não recua perante nada nem ninguém para se afirmar até ao fim.
Donde, resumindo para concluir: nem tudo aquilo que sai da fábrica da pantalha é de menosprezar. Dos três autores escolhidos para esta série de textos, um denominador comum os une: são, os três, figuras da televisão que publicam romances e que por isso vendem livros aos milhares. Na euforia das sucessivas edições consumidas pelo mercado, um pequeno senão os distingue: um deles é um romancista, os outros dois escrevem “aquilo de que as pessoas gostam”. Para enriquecerem enquanto é tempo? Que lhes faça bom proveito. Para ficarem na História da Literatura? Pela amostra, só uma minoria o logrará. Dos três romances analisados, apenas Canário corresponde a um propósito bem definido para resistir à usura do tempo. Mas não quero ser oráculo. O futuro acabará por ditar quem foi quem na voragem de uma época pouco épica. Célere. Ruidosa. Teleliterária. |