Quando Nadine Vasseur, no Salon du Livre de 2000, apresentou o meu livro C’Était la Revolution (impecavelmente, diga-se) estava longe de imaginar que tinha ao lado a descendente de um sobrevivente do Holocausto. Haviam-me passado o informe vago de uma ligação de Nadine a correntes migratórias romenas (afinal eram polacas) e nunca foram aflorados nos espaçados e breves contactos que mantivémos quaisquer factos que me levassem a crer encontrar-me na presença de alguém cujo trajecto vivencial pudesse estar relacionado com o inferno dos “campos”. Foi, pois, com surpresa, que deparei com a tradução portuguesa de um dos livros de Nadine Vasseur no escaparate de uma livraria de Oeiras, com a chancela de uma editora de Colares, desde logo um circuito pouco convencional para um trabalho de pesquisa que obrigou à mobilização de recursos operativos só ao alcance de especialistas. A conhecida jornalista reúne os dois atributos, um por desígnio histórico, o outro por se tratar de uma investigadora e escritora de méritos firmados e amplamente reconhecidos.
A obra intitula-se Eu não lhe disse que estava a escrever este livro e é constituída por um conjunto de entrevistas a filhos de sobreviventes do Holocausto que dá testemunho da experiência familiar, privada, contextualmente marcada pela tragédia maior, de pessoas que tiveram de construir as suas vidas sobre as marcas de um passado que para o bem e para o mal se mantém vivo como referência de uma época de trevas e inenarráveis suplícios. A experiência de lidar com essa herança na vida quotidiana por parte daqueles que a carregam sobre os ombros é descrita por Nadine Vasseur com a sensibilidade de quem é parte do sistema, evidentemente, mas também com a perícia que consiste em arrancar revelações de mágoa e sofrimento aos descendentes de quem tudo fez por esquecer e se refugiou no voto de silêncio para protecção própria e dos seus. Sobre este livro escreveu Annette Wieviorka, no posfácio: “Os treze relatos que ela [Nadine Vasseur] nos transmite surpreendem pelo rigor, a delicadeza, por vezes a beleza, do pensamento e da expressão.”
Como se depreende do painel de ocupações adiante descrito*, os descendentes dos sobreviventes do Holocausto ressarciram os antepassados das injúrias de que foram alvo ganhando espaço no domínio das profissões liberais, das artes e dos serviços, território de afazeres familiar, aliás, aos membros da comunidade judaica. Dir-se-ia que teriam superado o trauma através do acesso ao conforto de trabalhos que a sociedade reserva aos mais dotados e mais qualificados. Mas Nadine Vasseur não corrobora esse quadro feliz ao penetrar no âmago do problema, conversando, inventariando, confrontando experiências que em muitos casos têm tanto de pungentes como de revelações inesperadas na sua recalcada intimidade. Quebrado finalmente o lacre confidencial, do passo em que Nadine dá uma ajuda ao descrever o seu caso, pôde enfim estabelecer-se uma plataforma de diálogo que redundou neste conjunto de depoimentos dramáticos através dos quais se percebe como foi difícil restaurar uma identidade e refazer percursos tendo como ponto de partida recordações para esquecer.
De aí que esta inquirição da reputada jornalista se tenha jogado, com êxito, na adesão dos interlocutores ao seu projecto, muitos, igualmente, como ela, à procura da verdade, muitos, como ela, detentores de ténues sinais do que terá “realmente acontecido”, e que graças a este livro obtêm uma base de reflexão alargada e enriquecedora das suas próprias visões do passado.
*São os testemunhos ou depoimentos de Marc Perelman, professor de estética em Paris X-Nanterre e director da colecção Art et Architecture das Editions Verdier; Éliane Corrin, psicanalista; Yves Kahn, crítico de cinema, argumentista e realizador; Elisabeth Aboaf, documentalista na embaixada do Canadáe irmã de Jacques Bezborodko, que dirige a sociedade Maginem, especializada em cenografia, decoração e mobiliário para eventos e empresas; Agnès Vourc’h, terapeuta da fala; Pierre-François Veil, advogado; Daniel Cling, ex-actor, realizador de documentários; Dany Choukroun, historiador; Brigitte Jaques, actriz e encenadora, dirigiu o Théatre d’Aubervilliers entre 1991 e 1997; Charles Njman, escritor e cineasta, prémio Jean Vigo; Dominique Vidal, jornalista, historiador; Olivier Jacquet, assistente de realização; Chantal Avran, directora financeira e revisora de contas, e naturalmente Nadine Vasseur, jornalista, produtora do programa da France Culture Panorama entre 1982 e 1997, e actualmente colaboradora de Palace, ligne 8 (revista da Ópera de Paris) e do Nouvel Observateur. |