JÚLIO CONRADO.

OS ESCRITORES DA PANTALHA - I
Miguel Sousa Tavares: O Rio das Flores

Rio das Flores
Autor: Miguel Sousa Tavares
Editor: Oficina do Livro
627 páginas
Lisboa 2007

O fenómeno do livro best-seller está finalmente instalado em Portugal. Começou pela literatura dita light (Rita Ferro, Margarida Rebelo Pinto, etc.) e agora manifesta-se pela via da notoriedade televisiva. Nesta medida propus-me abordar, do ponto de vista da crítica literária mas também do da sociologia, o sucesso dos “escritores da pantalha”, escolhendo três nomes suficientemente representativos para ilustrarem esta espécie de digressão movida mais pela curiosidade do que pela necessidade. Começarei por Miguel Sousa Tavares, o primeiro nome escolhido desta série, e o seu Rio das Flores

1. O escritor-personagem e o belo negócio do livro

Miguel Sousa Tavares é um homem de convicções e atitudes corajosas (não é todos os dias que se ouve alguém chamar o que ele chama ao presidente de Angola ou zurzir os treinadores da equipa principal de futebol do F.C. Porto que não honrem os pergaminhos do emblema tripeiro), sendo que a exposição pública destes atributos concita à sua volta o apoio silencioso daqueles que não ousam – mas gostariam de poder ousar – dar voz a ressabiamentos os mais variados. De certa maneira, M.S.T. diz em voz alta aquilo que muitos pensam mas não dizem, o que lhe garante uma não negligenciável corte de simpatizantes e, à partida, um fundo clientelar seguro para os seus livros.

Temos, por conseguinte, um conjunto de ingredientes que fazem correr um livro sem a mais pequena dependência do seu valor intrínseco como obra literária. Uma personalidade forte. Uma presença “turbulenta” em dois dos órgãos de imprensa portugueses de maior expansão: o Expresso e A Bola. A visibilidade na televisão, sem a qual, hoje em dia, “nada existe” (M.S.T. é comentador regular da TVI). E, já agora, a herança genética – o A. é filho de um fogoso jornalista-polemista (além de brilhante advogado e resistente anti-salazarista) e de uma notável poetisa – também de levar em conta numa sociedade que protege de novo os feitos dos filhos família notáveis como uma mãe-galinha pressurosa. Vender mais de 100.000 livros em poucas semanas é, em Portugal, proeza só ao alcance de raros. É o corolário de uma demonstração de vitalidade, de confiança nos próprios recursos. É a capacidade de “perceber” o mercado, de o preparar para a (boa) recepção através de mecanismos persuasores mais ligados ao prestígio da imagem do que ao prestígio da escrita. O próprio prestígio do livro dispensa o aval da boa escrita; basta-lhe cimentar-se no número de cópias vendidas e revestir do mesmo cimento o currículo do autor. É notória, pois, uma modificação no conceito de “literário” e de “escritor” a que não será estranha a movimentação de grandes empresas capitalistas na concentração editorial através da compra de editoras médias de firmados créditos culturais (o caso mais excitante será o da Caminho, que se pensaria acima destas grandes manobras da sociedade de consumo). Também há quem considere este fenómeno uma resposta do formato “papel” à voragem descaracterizadora da literatura on line, bloguista, anónima, descentralizada e dissipadora, mas esta será uma versão romântico-nostálgica da coisa indissociável da caução do tempo, que na sua vertigem regeneradora ditará a última palavra. E há quem afine pelo padrão catastrofista: a literatura, tal como a conhecemos até aqui, está a acabar. Estará? Não dizia Aquilino, nos idos de sessenta, “Dentro de vinte anos não há mais literatura em Portugal” (Abóboras no Telhado) falando do “longo eclipse que vai atravessar o mundo no seu estratificado actual”? Já tem 45 anos a profecia. A literatura continua a sobreviver. É de força, a filha duma magana! – como se diz na minha terra. Nem ela morre, nem a gente almoça. Claro que amiudadamente em vez de um livro sai-nos ao caminho um “produto”. E em vez de um “orçamento” baixo, um projecto económico-financeiro ambicioso. E a possibilidade de meter num só volume o equivalente a três best-sellers, que perspectiva aliciante, embora com o sacrifício provável de dois autores menos cotados nesta bolsa de valores. Três em um, como nas promoções de lexívias e pastas dentífricas – e o preço, uma agradável surpresa. Para se alcançar este patamar de rentabilidade tornou-se forçoso, no vertente caso, esticar o romance. E no recurso à engorda do texto com extensos painéis “históricos” esteve a solução para levar Rio das Flores às seiscentas páginas requeridas pelo objectivo financeiro. Que me perdoem autor e editor se as coisas não se passaram bem assim: mas lá que parece, parece. Ah, e não faltou a pimenta de uma boa polémica. Tudo a ajudar. Seja como for, há que render homenagem ao escritor personagem e ao editor que concretizou o negócio: foi bem pensado e melhor executado.

Por falar em polémica, um breve apontamento. 

2. Romance histórico, Rio das Flores?

Não fica bem a oficiais do mesmo ofício descomporem-se na praça pública, fazendo de ódios pessoais bandeira escondida sob a capa de um livro e de um comentário crítico a esse mesmo livro? Talvez, se observarmos as coisas pelo ângulo corporativo de uma desavença inter-pares, expressa em letra de forma, multiplicada pelos meios audiovisuais até ao extremo da “lavagem de roupa suja”, se, como se teme, assim foi etiquetada pela recepção popular. Todavia, essa dimensão simplificadora de duas falas polémicas, que as mornas ondas do politicamente correcto compactam num número de circo de duração breve quanto baste para que o armistício cultural prevaleça num ambiente economicista e de espectáculo, pode e deve ser ultrapassada no seu figurino circunstancial de maneira a que outros enfoques sejam explorados na clarificação da mesma realidade. Desde logo, banir a ideia de que o ressentimento é prejudicial à obra de arte parece-me atitude extremamente profilática. Obras-primas de todos os tempos e de todas as artes foram produzidas debaixo do mais acerado rancor; desvalorizar um trabalho só por que é “ressentido” sem se considerarem aspectos estruturais consagradores de valia, é tão redutor como a “redução” que se quer impor ao que é gerado a partir desse estímulo, diga-se, negativo. Nada tendo, pois, contra o ressentimento, acho até que o tom frontal da análise de Vasco Pulido Valente ao livro de Miguel Sousa Tavares veio agitar saudavelmente as águas estagnadas onde uma crítica mesureira, de enfeudamento a lobbies dos mais diversos matizes, forjou a cínica boa compostura do presente estado das coisas. Num ponto, Miguel Sousa Tavares tem razão: Pulido Valente não é um crítico literário encartado. Mas será Sousa Tavares um romancista apetrechado para escrever um “romance histórico” como se diz ser Rio das Flores?

Nunca tive especial propensão para considerar o romance histórico verdadeira obra de criação, talvez devido ao facto de haver um vasto campo onde a ficção não entra, campo ocupado pelos informantes que lhe dão contexto e lhe fornecem a moldura social da época retratada. Reconheça-se, porém, existir na história “paralela”, aquela que não foi feita por “escribas” pagos para afeiçoarem a crónica ao ponto de vista do poder patronal, um potencial de conflito, branqueado pela decisão canónica, que no âmbito da obra romanesca pode reverter tranquilamente em proveito da correcção dos factos omitidos. O escritor tem todo o direito de intuir e conceber espaços de luz onde reine a mais densa penumbra se achar que pode trazer, ao iluminá-los, algo de novo, de arrebatador, ao conhecimento que temos do passado. Um sobressalto de que derivem hipóteses insuspeitadas mas verosímeis de identificação histórica, dissonante do discurso oficial, merece da literatura tratamento sério enquanto as fontes não forem completamente exploradas nessa direcção e o sentimento de inovação seja causa do desconforto prévio à sua transformação em dado irrefutável. Se, todavia, o reforço histórico constituir um mero adereço da intriga, se esta tiver de valer por si mesma para se salvar de um espectro de referências consabidas, é escusado gastar-se muita “palha” a encher um romance. No caso vertente, assiste-se à mobilização da História para um movimento contrário à especulação factual – à revisão do memorial consagrado –, que assim é posta ao serviço dos valores conservadores da sociedade.

Ou seja: em momento algum os “separadores” históricos de Rio das Flores criam expectativas de revelação. Por um lado, ao revestirem a forma de longos excursos autónomos, não impregnam directamente a intriga; por outro, didácticos que são, falta-lhes, como diria Barthes, o calafrio da novidade. Este recurso ao arsenal historicista faz que a narrativa fique cindida em dois blocos estanques, enfatizando o convite ao leitor para que “esqueça” as peripécias do “conto” embora àquele sobretudo importe o que acontece a quem é quem na lide romanesca. Talvez a feição pedagógica dessa literatura de manual funcione bem como despertador das consciências jovens para referenciais que lhes faltam. É possível. De toda a maneira descrever a odisseia de Luís Carlos Prestes, a guerra civil espanhola ou a génese da ascensão de Salazar ao poder, em deslocações paralelas à história contada, é sacrificar a economia do texto romanesco à função escolar do texto histórico sem que daí decorra qualquer corrente de sentido favorável a rupturas com um universo de informação já saturado.

Romance histórico, Rio das Flores? Nem por isso. Romance e História, lado a lado, talvez. Romance tradicional? Sim, em princípio.

3. Da linguagem, dos diálogos e das personagens

Há na escrita de M. S. T. certo élan que transforma a leitura num exercício aprazível. Negá-lo é tentar iludir uma evidência. Tal atributo, patente em Equador, se não perde intensidade em Rio das Flores, não transita para este com a mesma eficácia por causa da opção pela estrutura bipolar e também do acidentado formal. Qual vaga de fundo avassaladora, que tudo arrasta à sua passagem, a linguagem de representação “engole” a adjectivação opulenta, redundante e pouco exigente, o descuido sintáctico em diversas construções frásicas e, em determinados esquemas “cénicos”, a disfunção palavra / imagem que faz má figura pela impertinência e pela reincidência.

Veja-se como o A. se ataranta na administração dos níveis acústicos na cena do assalto, ao “permitir” que as personagens que seguem a cavalo e numa “carruagem” ouçam “um ruído nas estevas, como se alguém se deslocasse agachado” ou um pouco mais adiante “outro restolhar no mato, à nossa esquerda e, logo de seguida um movimento surdo, que pareceu de passos, correndo, à direita da estrada”. Tudo isto, o “restolhar”, a “corrida” – do movimento? dos passos? - , num lance que exigiria a mudez das cavalgaduras e a cumplicidade silenciosa da “carruagem”...em andamento.

Fragilidades destas parasitam o texto em quantidade suficiente para saltarem aos olhos do leitor experimentado. Mais questionável se afigura determinar se elas constrangem o que o livro tem de melhor para dar, isto é, a energia, as vibrações e as intensidades que no texto consubstanciam o talento do comunicador. Prevalecerá, creio eu, no receptor pouco dado ao exame minudente, a sensação de vigor torrencial da escrita – próxima daquela que M.S.T. cultiva no Expresso ou n’A Bola –, o aparato de algumas descrições, como a tourada em Sevilha, num ou noutro caso a boa urdidura das situações (a noite de núpcias de Diogo e Amparo, por exemplo, é um achado) ou reconstituições históricas estratificadas que sirvam de lições a um destinatário-alvo que não tenha sido contemporâneo ou estudioso dos acontecimentos.

Os diálogos funcionam sempre como um corroborar de incidências de que o discurso indirecto já dera conta com significativa força expressiva. Deles nunca se obtém uma sensação de destreza – de esgrima – coloquial nem a de que algo de distinto é acrescentado à “acção”, antes deixam o rasto de uma carga dialógica que se cumpre mais como satélite do discurso indirecto do que como adjuvante vivificador da narrativa. Os diálogos, em Rio das Flores, não apelam para aquele expediente muito vulgar nos leitores desejosos de chegar ao fim da história, que é o de se pouparem à digressão pelas páginas de prosa maciça interpostas. Os lugares comuns da política, os estereótipos do relacionamento interpessoal e os clichés culturais sobrelevam os poucos movimentos empreendedores de dialéctica da interlocução. Mas não é por esse lado que o romance oscila já que, no próprio corpo do texto, às “vozes” de cada uma das personagens é concedido, relativamente, pouco espaço literal. A organização global do enredo é que padece de descontinuidades que ofendem as que por certo terão sido aspirações superlativas do A.

O recorte psicológico das personagens deixa-as aquém da sua definição completa. Há percursos de epílogo conjecturável desde muito cedo mas que, na fase terminal, enfermam de não ter havido ao longo deles uma maturação da trama favorável ao adensamento do discurso íntimo dos sujeitos. O A. compromete-lhes o futuro incorrendo no pecadilho da brusquidão. A deterioração do casamento de Diogo e Amparo, por exemplo, não é mapeada por forma a tornar visíveis as fases de declínio afectivo que qualquer relação nesse estado supõe. Nem mesmo na “fala” epistolar anterior à ruptura se detectam sintomas de drama conformes a uma predisposição radical para aquela. As coisas acontecem sem que qualquer suporte “histórico” coerente as haja encaminhado para um climax. Atente-se no momento chave da ruptura entre Diogo e Amparo: o simples anúncio de uma “carta terrível” na qual ele informa passar a viver com Benedita, no Brasil, é tudo o que se oferece ao A. revelar. Ao conteúdo integral dessa carta não tem o leitor acesso. Sendo o livro pródigo na transcrição epistolar, causa estranheza que a “carta terrível” desmereça do tratamento dado a outras de menor importância. Preste-se agora atenção à súbita paixão de Pedro pela cunhada, perto do fim do livro. Pressente-se o inevitável desde que Jorge opta pelo Brasil, mas, antes disso, pelas fugas rumo aos banhos de “civilização” lisboetas: cunhado e cunhada acabarão por fazer “aquilo”, lógico resultado da coabitação na herdade em atmosfera de solidão e desespero existenciais. Entretanto ao leitor, que não fora posto ao corrente das fases de desarmamento e de rearmamento psicológicos que viriam a conduzir os dois parentes aos actos limite, depara-se-lhe o produto desse “queimar etapas” quase sob a forma do facto consumado, lembrado, apenas, de uns resquícios de racismo em Pedro provocados pela “escolha” do mano Diogo e de nunca ter havido uma explicação válida para a anulação dos preconceitos inicialmente declarados. Na “conquista” de Amparo, Pedro nem sequer actua como o vilão que aceita pagamentos de rendas atrasadas em “géneros”, mas sim como comparsa numa peça mal montada. O “assunto” resolve-se com o equívoco da entrada fortuita dele no compartimento onde Amparo tomava banho. Um curto diálogo acaba, num abrir e fechar de olhos, com a magna questão.

               “Pedro!”
               “Sim?”
               “Fecha a porta à chave.”
               “Como?”
               “Fecha a porta à chave.”
               ”Mas... por fora?”
               Ela suspirou fundo antes de responder.
               “Não: por dentro!”

E já está: tiro e queda. A cena merecia um poema em louvor das coisas que acontecem por acaso. Ora, nestes apuros, é curial a urdidura contemplar um processo interior desenvolvido em função do desejo e da necessidade, mas que leva o seu tempo a germinar, a amadurecer e a concluir, segundo, claro, os parâmetros do romance fechado - a história contada metodicamente com princípio, meio e fim. Leia-se os grandes clássicos e compare-se, já que, tirando as didácticas lições de História contemporânea, este é um romance tradicional no sentido estrito do termo.

4. Um romance tradicional

Nesta categoria - romance tradicional -  se deve incluir, com efeito, Rio das Flores, posto que se apresenta como uma tentativa de restauro da história de base rural. No contraste campo/cidade na qual reconhecem-se sinais de A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, ou parecenças com a saga dos Cantares (Cortes, de Almeida Faria). Noutra dimensão sociológica mas focalizados na mesma realidade os romances de Alves Redol traduzem essa tendência, que tem o campo como espaço / instância de enunciação, integrando as complexas relações sociais num tempo histórico marcado pelos pacotes político-ideológicos portadores da “mensagem” do Estado Novo aos núcleos familiares do latifúndio. Da Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis, se colhe o paralelismo da ascensão da filha do guarda-livros e da filha cigana do ex-feitor da herdade de Valmonte a patamares de relevo social.

É, no entanto, pelos padrões de Cartilha do Marialva, de José Cardoso Pires, que Rio das Flores deve ser aferido ao apresentar uma galeria de personagens, tiques dos garanhões da terra, alardes machistas como os que acalentam a deslocação a Sevilha do grupo de Ribera Flores à procura de putas (especialmente da que vai iniciar Diogo na vida adulta) e touradas com copos à mistura, traços de resignação (Maria da Glória), de cordura beata (padre Júlio) e de pesporrência feudal-agrária (Pedro) que configuram um retorno à “mística da terra” –  a ordem rural que nos seus fundamentos ancestrais uma parte do romance adula, e que a outra parte “contesta” mas sem destruir a hegemonia do lugar onde a contestação activa teria alguma utilidade. Tal como Carta de Guia de Casados, de D. Francisco Manuel de Melo e A Morgadinha, livros como Rio das Flores vão ao encontro dos gostos enraizados numa certa memória literária da pax ruris à portuguesa que terá em Miguel de Sousa Tavares o seu moderno e destemido porta-voz. De aí, quem sabe se – também – o seu sucesso.

Júlio Conrado

Ficcionista, ensaísta, poeta . Olhão, 26.11.1936 . Publicou o primeiro livro de ficção em 1963 e o primeiro ensaio na imprensa de âmbito nacional em 1965 (Diário de Lisboa). Exerceu a crítica literária em vários jornais diários de referência e em jornais e revistas especializados como Colóquio Letras, Jornal de Letras e Vida Mundial. Participação em colóquios e congressos internacionais. Participação como jurado nos principais prémios literários portugueses. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, Associação Internacional dos Críticos Literários, Associação Portuguesa dos Críticos Literários e Pen Clube Português. A sua obra ensaística, ficcional e poética está reunida numa vintena de livros. Alguns livros e ensaios foram traduzidos em francês, alemão, húngaro e inglês.

Ver bio-bibliografia alargada em:

http://penclube.no.sapo.pt/pen_portugues/socios/julio_conrado.htm