Depois de árdua indagação em torno de um mito da História de Portugal tão apaixonante, o da Padeira de Aljubarrota, Júlia Nery logrou fazer convergir o seus talentos de investigadora, professora e escritora para um texto talhado à medida dessas três áreas de intervenção por forma a convencer os mais cépticos quanto à real valia da sua literatura. A escritora agarra no mito com mão sensível e, sem perder de vista o horizonte pedagógico que lhe serve de arrimo quando a acção sugere mais ásperas deambulações pelo léxico e pela semântica, encontra os meios ideais para se instalar num frente-a-frente com o leitor de maneira a captar-lhe a curiosidade, sem trair a boa compostura que é sua imagem de marca e de que nunca prescinde mesmo quando os tais temas ousados reivindicam outro tipo de linguagem.
Uma primeira impressão prende-se, pois, à harmonia patente desde as páginas inaugurais entre estilo, hábil encenação do enigma histórico e domínio completo do ritmo da narração, enlace cujo elevado índice de dificuldade, pela desenvoltura técnica e finura expositiva que exige, faculta ao sujeito da leitura afortunados momentos de partilha. Senti na arte de Júlia Nery o fluir/fruir do texto em elaboração, o verbo maduro que esgaravata no passado dialogando elegantemente com os cronistas da época, o sentido do equilíbrio justificado pela aproximação a uma mulher sem biografia escrita que colhe a sua reputação de biografável na persistência da lenda e na força da memória colectiva. Em terreno tão alagadiço Júlia Nery fez nascer um formoso livro, bem humorado, tranquilo e redigido com mestria, e adiante explicarei porque é que vejo nele estas e outras qualidades igualmente dignas de menção.
A volatilidade do mito da forneira Brites, também conhecida pela alcunha de Pisqueira, potencia o aparecimento de múltiplos espaços de efabulação, abertos à criatividade dos escritores imaginosos. A História deixa de comandar a narrativa face à ausência de informação abonada pelo registo escrito (sem escrituras vestidas de fé e testemunhos de vivos) e as zonas de sombra são decoradas para receber os focos luminosos da interpretação livre. Ora é preciso dizer que Júlia Nery, neste campo minado da biografia rastreada da memória popular, está como peixe na água a concatenar um discurso, sobre a personagem, que nunca foge à sua soberania – ninguém imagina a Brites assassina, arruaceira e mulher-homem a dizer “partes feminis”, “partes íntimas” (referindo-se à Abadessa de S. Bento) ou “membro viril” para identificar os genitais femininos e masculinos. Aquilo que noutros contextos seria porventura inadequado, não fere aqui qualquer princípio de verosimilhança: autora e personagem são cúmplices, tão cúmplices que uma se mete na pele da outra para falarem a uma voz, mas o tom de conto moral jamais atraiçoa a distinção que o esmero descritivo irremediavelmente cava entre as duas. Em momento algum a “cronista” abre mão do seu estilo aprimorado para descer ao nível da parceira; ela é, afinal, a detentora da linguagem que à outra falta. E esse fosso cultural jamais desaparece em intimidades promíscuas ou relacionamentos espúrios. A vénia a Fernão Lopes na página cinco diz logo de que lado Júlia Nery quer ficar. E por isso bem pode a Brites expressar-se desta maneira: “Esta e outras histórias de Donzelas Guerreiras eu as recontava depois, ornamentando com muitos pormenores as suas pelejas e artes de dissimulação, omitindo os finais de que não gostava: o casamento e a sujeição ao rei ou a um companheiro de armas, a revelação da sua condição feminina…” – que aquela que lemos em acto de elocução é bem a Júlia Nery no seu melhor, se bem que confie ao mediador copista, roubado, e à velha que o ajuda a reconstituir o “acontecido”, a transmissão da mensagem. O alvo destas ficções não é o leitor que aguardaria um encontro sórdido, talvez brutal, com a matadora, mas aquele que se presta a desfrutar o texto na sua feição de história bem contada, rendido ao défice de aparato belicoso no cotejo com a humanização da protagonista.
Na cisão de Brites de Almeida em Brites (quando se quer no feminino) e Almeida (quando encarna o masculino) a escritora enfatiza esta dupla personalidade mediante o uso muito ágil da língua, conciliando circunstâncias e urgências, sobretudo as de sobrevivência, ainda que deixando por desatar o nó libidinal para não desmanchar a estabilidade do disfarce. O problema existencial da personagem é, aliás, um falso problema visto não se evidenciar sob a forma de dissídio interior fracturante. Consubstanciado na combinatória nem sempre pacífica das suas duas naturezas, se assim se pode dizer, é aquele “problema” resolvido através da concessão, às partes diferentes, da faculdade de se exporem, tal como são, nos cenários a que cada uma delas melhor se conforme, segundo as premências do momento. A incapacidade da Brites em domar o Almeida quando o cheiro a sangue nele desperta a vontade de matar, trai na subjectividade da criatura dual um certo pendor crítico, do lado feminino, para a condenação da violência e outrossim uma certa incapacidade para frear a pulsão masculina de morte, já que por via dela corrige o vilipêndio a que as mulheres estão sujeitas em alturas de desnorte colectivo, e, em simultâneo, preserva a sua própria integridade física, matando para viver. É o caso de Aldonça, vexada pelos castelhanos com quem teve “comércio carnal”, vingada exuberantemente pelo Almeida ao liquidar sem dó nem piedade os inimigos que iam assomando à boca do forno. Ora, angústias existenciais e comportamentos passíveis de tratamento psicanalítico caem mal numa personagem como a forneira. As desgraças desta têm por contraponto o figurino do mais puro desenrascanço. Júlia Nery demora-se, carinhosamente, na criação de uma intérprete de recorte vitalista, terra a terra, pícara na medida do seu instintivo pragmatismo para se salvar de apertos recorrendo aos mais diversos expedientes, desde o uso da força à ladinice para ludibriar quantos queiram intrujá-la. Veja-se, a propósito, o divertido episódio do clérigo charlatão a quem impinge a relíquia do caracol de cabelo de Santo António depois de aquele, em vão, a ter querido enganar exibindo como autêntico o crânio de uma das onze mil virgens. Do instinto defensivo sempre alerta na mulher-homem, cresce a ideia de que cada um dos seus actos é pautado por uma estrutural desconfiança. Este livro bem poderia ser considerado, além da preciosa crónica romanceada que é, um ensaio sobre a desconfiança. A desconfiança atravessa de lés-a-lés a narrativa, colada a uma Brites e a um Almeida permanentemente em fuga, desconfiados do mundo mas ao mesmo tempo enfrentando-o de garras bem afiadas sempre que ele, mundo, se obstina em desqualificá-los e humilhá-los.
Uma Padeira assexuada emerge, pois, da crónica de Júlia, um tanto por carência de informação precisa sobre a vida sentimental da biografada, outro tanto porque a arquitectura da ficção resulta melhor através da autonomia binária, sustentada para produzir um efeito psicológico em que alguns serão tentados a discernir o entalhe feminista. Em várias ocasiões, a máscara masculina funciona para proteger a mulher dos excessos machistas mas a rejeição da feminilidade nos esporádicos e superficiais contactos com o sexo oposto radica na necessidade de manter intacto o prestígio do Almeida, obtido pela destreza no manejo das armas e pela bravura demonstrada nas justas com adversários ocasionais. Um modo simpático, astuto, de afiançar que a Brites não precisava de homens porque em certa medida era ela própria um deles.
Vimos que o asseio formal sustém a aspereza das representações, muito por força do distanciamento a que a cronista-ficcionista se obriga em relação à personagem principal e ao que lhe acontece, e também porque em boa verdade consegue imiscuir-se no universo mítico em absoluto acordo com os trâmites da efabulação, afastando desta todo o traço bizarro susceptível de impedir a narrativa de atingir as metas que para ela dispôs. Júlia Nery dá uma lição de como deve ser gerida a intertextualidade, uma técnica a cujos atropelos quotidianamente assistimos, sobretudo em autores recentes: a palavra alheia é cuidadosamente colocada na história de maneira a interagir com a acção em subtil homenagem às fontes em vez da flagrante e despudorada apropriação que por aí grassa.
Aspecto interessante nesta Crónica de Brites é ela provavelmente ter sido escrita para ser lida como exemplar lição de História pátria – história viva, cheia de gente, peripécias, incessantes desafios colocados ao povo miúdo pela inclemência dos tempos, em que a coragem física extrema e a arte da fuga alternam nas prioridades de sobrevivência - mas também poder ser vista como palpitante livro de aventuras, ou imaginar-se facilmente para ela uma versão em banda desenhada, um filme, uma peça de teatro. Talvez a Júlia Nery dramaturga decida um dia pôr esta sua Brites em palco, tão rica é a personagem que soube criar e tão variadas e estuantes de vida as situações em que a envolve.
É na aliança manifesta da escritora com o texto, nesse notório prazer com que, ao fruir a sua escrita, passa, com êxito, ao leitor, um recado de ternura, sabedoria, optimismo e crença na literatura como instância de reconhecimento e entreposto de emoções, que Crónica de Brites se singulariza, muito provavelmente, como um dos melhores, senão o melhor, livro de Júlia Nery. Pelo menos para mim, já conhecedor de um punhado de obras da autora e porventura das principais, este livro situa-se no topo do que produziu até hoje, porque em caso algum, do meu ponto de vista, alcançou, como agora, a excelência da empatia texto-destinatário de que a nossa intratável forneira é a capitosa inspiradora. |