JÚLIO CONRADO.

ESCRITORES DA PANTALHA
2. O sétimo selo da literatura?

O Sétimo Selo
Autor: José Rodrigues dos Santos
Editora: Gradiva
Lisboa, 2007
502 páginas   

1. Contextos

Se a escrita de Miguel Sousa Tavares bascula do coloquial para o gongórico, a de José Rodrigues dos Santos é levíssima como a do ser insustentável do título de Kundera. Uma referência para JRS? Talvez Dan Brown. O autor de O Código Da Vinci parece estar por trás da mãozinha redactora do apresentador de televisão. Digo “parece” porque me falta informação para uma análise comparativa. Só li um livro de J.R.S., este de que vou falar (O Sétimo Selo), e no que respeita ao criador mundial de best-sellers fiquei-me por metade da obra que lhe deu fama e proveito – aquela que referi. Razão mais que suficiente para me eximir ao recurso a analogias, em número e qualidade manifestamente insuficientes para um juízo consistente. Em todo o caso, a intrigante ascensão do escritor-apresentador a escalões de sucesso comercial invulgares entre nós abre caminho a uma questionação sobre o fenómeno social a que esse êxito corresponde. E a melhor maneira de tentar perceber a coisa é tentar perceber o livro. O que diz então O Sétimo Selo que o recomende às multidões?

Um parêntese. Tal como Sousa Tavares, Rodrigues dos Santos é uma personagem. Não é um vulgar apresentador de televisão, é um repórter de guerra. Cobriu as guerras do Iraque de camuflado e microfone em punho em condições adversas, e ainda há poucas semanas (em relação à data em que este artigo está a ser escrito) lá andava ele pelo Paquistão como enviado da RTP às belicosas eleições realizadas após o assassinato de Benazir Bhutto. De 1993 a 2003 foi colaborador da CNN e gostaram tanto dele que lhe atribuíram três prémios: o Best News Breaking Story of the Year, em 1994, pela história Huambo Battle; o Best News Story of the Year for the Sunday, em 1998, pela reportagem Albânia Bunkers; e o Contributor Achievement Award, em 2000, pelo conjunto do seu trabalho. Internamente também ganhou prémios como o de Ensaio, do Clube Português de Imprensa (1986) entre outros. Almerindo Marques, presidente cessante da RTP, teve a malfadada ideia de lhe mover um processo disciplinar, sem perceber que tocar numa pérola como esta era cavar a sua sepultura na empresa (aliás, é atributo de Almerindo perceber muito de números e pouco de pessoas). E assim aconteceu. Fez-se às Estradas de Portugal antes do fim do mandato e os novos dirigentes da estação de televisão apressaram-se a arquivar o processo instaurado ao pivot do telejornal. A forma como Rodrigues dos Santos geriu a crise foi exemplar: deixou correr o marfim, calou-se quando devia estar calado, falou quando devia falar e, à cautela, construiu, sem grandes alardes, paralelamente, uma reputação de “escritor que vende” não inferior à de Margarida Rebelo Pinto. Tudo isto entre 2005 e 2007. É obra!

Vamos lá então perscrutar o que se passa em O Sétimo Selo livro (já tínhamos O Sétimo Selo filme, do saudoso Ingmar Bergman, ó sete, número mágico) a ver se casa a bota com a perdigota, ou seja: se o opulento currículo de José Rodrigues dos Santos encaixa na sua literatura ou se é tudo para americano ver. Um lamiré à entrada põe-nos de sobreaviso. Reza assim: A informação histórica, técnica e científica referenciada neste romance é verdadeira. Uau! O escritor quer que o tomem por homem de palavra. Mas se ele cita as fontes no final do volume, por que carga de água há-de estar a mentir? Receia ser tomado por charlatão? Ou que sejam tomados por charlatães os eméritos autores que nomeia? E então um romance, ainda que aparatosamente técnico, não tem direito, mesmo nessa área, a uma invençãozinha, a uma concessãozinha à imaginação, a um voo a grande altitude? Tem de se cingir ao que é verdadeiro? Acaso Júlio Verne teve em conta o verdadeiro, nas suas ficções “científicas”? Ou foi a ilusão científica de Verne que inspirou a Ciência a viabilizar a chegada do homem à Lua? Adiante.

Uma diferença de fundo separa os textos de Sousa Tavares e Rodrigues dos Santos. O primeiro é um olhar para trás, o segundo, um olhar em frente, mas tendo em vista um futuro catastrófico. O sétimo selo é a bíblica advertência da hecatombe decisiva. Rebentado aquele com o fim das reservas de petróleo fora do mundo árabe e a cada vez maior dependência do ocidente dos abundantes recursos da Arábia Saudita, resta um cenário de política energética ruinoso e de rupturas civilizacionais que auguram o colapso do império ocidental.

A estratégia de José funda-se no engodo dos chamados romances de aeroporto (apodo ambíguo: e então dentro do avião, no ar, não se continua a leitura iniciada enquanto se espera a ordem para embarcar?): uma intriga policial tecida a partir de crimes longínquos e afastados cujas conexões se vão aprofundando a pouco e pouco até tudo ter a ver com tudo, simbologia bíblica e intervenção de sociedades mais ou menos secretas, mutação célere de paisagens, um arsenal de didácticos diálogos em linguagem chã, e ainda, no caso vertente, a máfia do petróleo em acção e ex-vilões ex-KGB cooptados (?) pela Interpol para edificantes operações de combate ao (alto) crime organizado em que as vítimas são no habitual qualificados professores que sabem de mais. Se se juntar ao ramalhete questões candentes como o aquecimento global – que está a comprometer a harmonia gelada da Antártida – e o fim anunciado do petróleo como energia essencial à estabilidade das civilizações, teremos um quadro de pré-catástrofe que inflama o terror gregário e faz disparar as vendas de livros como este.

É um facto: se bem que a leveza da escrita concorde com a leveza do enredo, há uma psicose generalizada de medo que é resultado da percepção talvez inconsciente de se estar a atingir o ponto crítico da delapidação dos recursos do planeta. A possibilidade que a tecnologia de ponta deu aos homens para vasculharem com rigor a casa comum veio mexer com os poderes estabelecidos e o bom senso não prevalecerá sem luta e sem dor. Com a explosão desenvolvimentista da Índia e da China, e enquanto a África não acorda, avizinha-se o caos. O Sétimo Selo, ao menos, chama a atenção para a falta de tempo que torna imperiosa a tomada imediata de medidas justificada pela delicadeza da situação.

Traçadas as linhas gerais que, em primeira instância, determinam o sucesso do livro – as vicissitudes do escritor-personagem e os ingredientes ambientalistas que condimentam as lutas em prol da salvação planetária – é altura de falar um pouco de O Sétimo Selo como obra literária.

2. Texto

A escrita de JRS, já o disse, é ultraleve. Não apresenta erros de sintaxe, não se aventura por literatices estaladiças, é fluente e pouco influente. Isto é: exibe a prosa enxuta do jornalismo escorreito; peca (do meu ponto de vista) por privilegiar a comunicação em prejuízo da arte. Neste sentido, não se trata de grande literatura mas também não deixa de ser um certo tipo de literatura. Não ofende, não fere, não inova. Fomenta o diálogo cerrado, contrariando uma lenda do romance moderno português: a de que o diálogo é algo que escapa ao talento lusitano. Todavia, os diálogos de O Sétimo Selo enfermam de alguns senãos: são didácticos, extensíssimos e desequilibrados. Tentarei explicar-me melhor. O vício de perguntar leva o autor a algum exagero, ao explorar coloquialmente o encontro entre alguém que sabe e alguém que quer saber. Isso transforma a maior parte das conversas em entrevistas – um jogo de perguntas e respostas em que um detentor de saber faz pedagogia junto de um interlocutor inculto cuja curiosidade lhe vai alimentando gradualmente o discurso professoral sob a forma de “segredo” até que por fim o desvenda. O A. não domina a caracterização das falas segundo as características das personagens: os diálogos lineares, desprovidos de entoo próprio, tanto dão para senhoras idosas, como para russos comilões, como para moças que alugam o corpo para pagarem os estudos, como para criptanalistas distraídos.

A dado passo, tudo parece conjugar-se para que o “romance” se transforme em “guião”, tal a evidência das prioridades do discurso alinhavado como uma série de sequências cinematográficas.

A uma escrita bem comportada, sem erros, não corresponde, porém, uma semântica imaculada. A ingenuidade pesa enormemente em todo o livro. A imaturidade no tratamento do “assunto” como trabalho de efabulação conflitua com a diegese – a modalidade “enunciativa e discursiva” de que falam Genette e Aguiar e Silva. O autor não se mostra capaz de articular a peripécia romanesca com a “informação científica verdadeira” e o resultado é um empastelamento desta informação em falas cuja função dialógica é, desta maneira, adulterada. As pessoas do livro exprimem-se todas do mesmo jeito, esquecendo-se o A. (ou jamais tendo aprendido) de que os diálogos servem também para definir tanto as personagens como as situações em que estas interferem.

Atente-se nalgumas fragilidades de sentido que ressaltam da tal escrita asséptica, muito certinha e sereníssima, quase diria, uma escrita feliz.

3. Notícias dos frágeis sentidos

Desde cedo se percebe que J.R.S é um sofrível epígono de Brown. Este, ao menos, tanto quanto dele apreendi, não se alonga em palavreado desnecessário à trama. Constrangedor, realmente, neste “sétimo selo” é o conjunto de fragilidades de sentido que lhe empobrece o enredo, num plano, diga-se, elementar. Aos vícios da linguagem jornalística desinvestida de cultura literária junta-se uma série de truques menores de ordem semântica em que é difícil asseverar se resultam de imaturidade ou de pura ignorância das exigências em matéria de economia textual que é preciso respeitar para que as coisas saiam a contento. Não cabe na cabeça de ninguém que um professor de História “contratado” pela “Interpol” (a história desta “contratação” é de uma ingenuidade aflitiva) para lhe prestar um serviço não saiba que, na Praça Vermelha, de Moscovo, o Kremlin e a catedral de S. Basílio são edifícios distintos; que as raparigas do alterne, sejam russas, portuguesas ou chinesas, andam todas ao mesmo; que as estações do Metro de Moscovo são as sumptuosas galerias subterrâneas construídas em 1935, etc., etc. Apesar da sua especialização, o nosso homem, que diabo, lê jornais. Confrontado com estas lacunas de “cultura geral” o Mestre (que é só perito em línguas antigas e sumidade mundial) parece um turista papalvo, de olhos esbugalhados ante o que vê, calcorreando as ruas da capital russa a “aprender”com a sua acompanhante de luxo banalidades da História e da vida, a arrastar a mala de viagem porque tem… “rodinhas”.

No Transiberiano leva o inocente professor por parceira a estudante com quem dormiu na cidade, que por cursar Climatologia e trazer a matéria na ponta da língua faz uma tal lavagem ao cérebro do inocente português que este, num abrir e fechar de olhos, fica a par da catástrofe ambiental que vem aí e da qual só uma minoria de mentes esclarecidas parece aperceber-se. Uma vez mais, aqui, a entrevista a fingir de conversa. Uma vez mais a personagem sabedora a contracenar com a personagem que quer saber. O caudal da informação científica descaracteriza por completo o diálogo romanesco e às tantas o leitor interroga-se sobre se estará a ler ensaio, se ficção. E a senhora idosa, mãe de Tomás, que procura por todos os meios recusar-se a ser internada num lar, apesar de se obstinar em referir-se ao marido morto como se estivesse vivo, tem um discurso por vezes mais bem organizado do que o do próprio filho. Para a cena do internamento, uma página bastava.

Peripécia atrás de peripécia, encontra Tomás o antigo colega do liceu, com quem experimenta apertos de risco elevado nas imediações do Lago Baikal, aí sendo assassinada, na sua presença, a insinuante estudante-alternadeira. Do amigo escuta mais um compacto de teoria da catástrofe (próxima), apoiado em documentação que ele serenamente, como quem não quer a coisa, sonegou dos escritórios de um engenheiro da OPEP, a qual dá como finita a lenda da perenidade do petróleo na Arábia Saudita. Quanto ao russo enfardadeira, da “Interpol”, que conseguira impingir o conto do vigário à sumidade mundial em decifração de línguas antigas, vem a revelar-se o assassino a soldo da máfia do petróleo que tem três cientistas incómodos sob a mira da sua arma.

A informação científica prestada ao gangster ex-“polícia” da Interpol, ex-agente do KGB, num momento de enorme tensão (o trio de mestres está prestes a ir desta para melhor em nome da lógica sacrossanta do ouro negro), quando ele se preparava para premir o gatilho, cria um facto deveras hilariante. O “alvo” Cummings pespega ao falso polícia de arma pronta a disparar uma dose de paleio científico, indiferente à perspectiva da morte próxima, que teve o mérito de excitar o agressor, subitamente desejoso de aceder aos altos segredos que tão desconfortáveis traziam os seus mandantes. Encavalitados no recorrente modelo perguntador / perguntado, portam-se como uma Sherazade a saciar a curiosidade do sultão, contando-lhe uma história cheia de alçapões para salvar a pele que chega a parecer interminável, tal a quantidade de saber posta a circular em tão constrangedora moldura temporal. É de rir a bandeiras despregadas. E foi com graciosidades do estilo que J.R.S. alongou o romance até ao número de páginas indispensável ao cumprimento das metas industriais do projecto. Depois de tanto gozo, ainda dá para sorrir…

Conclusão: O Sétimo Selo é mais um passo rumo à afectação do género romanesco a padrões inferiores ao que o cânone estabelece como meta mínima de qualidade e prestígio. Fazer dinheiro à custa de “produtos” de factura rudimentar cujo fulcro semântico é o terror da moda municiado pelo terror bíblico, parece ser uma forma nova de estar na literatura, em certa medida acelerando o seu descrédito através de expedientes que se nutrem da intertextualidade sem freio – dois terços deste romance nada devem à inventiva do autor –, do minimalismo causal e de intrigas de telefilme de série B quando não mesmo de sugestões de banda desenhada. Um momento, vou pôr os binóculos. Crrrrrrrrrrr. Quando O Sétimo Selo estiver na calha para ser publicado nos E.U.A., os americanos terão de fazer uma razia no texto semelhante àquela com que brindaram o Codex 632. É fatal como o destino. Talvez o livro fique, então, aceitável.

Júlio Conrado

Ficcionista, ensaísta, poeta . Olhão, 26.11.1936 . Publicou o primeiro livro de ficção em 1963 e o primeiro ensaio na imprensa de âmbito nacional em 1965 (Diário de Lisboa). Exerceu a crítica literária em vários jornais diários de referência e em jornais e revistas especializados como Colóquio Letras, Jornal de Letras e Vida Mundial. Participação em colóquios e congressos internacionais. Participação como jurado nos principais prémios literários portugueses. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, Associação Internacional dos Críticos Literários, Associação Portuguesa dos Críticos Literários e Pen Clube Português. A sua obra ensaística, ficcional e poética está reunida numa vintena de livros. Alguns livros e ensaios foram traduzidos em francês, alemão, húngaro e inglês.

Ver bio-bibliografia alargada em:

http://penclube.no.sapo.pt/pen_portugues/socios/julio_conrado.htm