A permanência, durante alguns anos, de António Augusto Menano em Macau, e o facto de no antigo território chinês sob administração portuguesa terem nascido os seus quatro netos, transformaram para ele um lugar que poderia ter sido “de passagem” em âncora afectiva que revisita uma vez por ano. Essa conexão com Macau em termos que excedem o transitório de uma “comissão de serviço” para se reflectir de maneira indelével no percurso humano do poeta teria fatalmente de interferir no seu trajecto literário. É uma conexão que se projecta no tempo e no espaço com a dimensão de um relacionamento passional. E que ganha nos escritos do autor o peso de um testemunho histórico raro. Não é vulgar encontrar-se na nossa literatura essa linha de continuidade entre um antes e um depois, normalmente crispados, que resultam de uma troca de soberanias, através de um discurso tranquilo em que as novas realidades são encaradas como factores positivos de integração. Pois é isso que o novo livro de poemas de António Augusto Menano nos traz como mensagem: uma ponte entre o antes e o depois de Macau numa perspectiva existencial serena – a que não será alheia a sua invulgar condição familiar – numa época em que “as esferas armilares repousam num qualquer armazém poeirento.”
Não espanta, por conseguinte, que estes “poemas de Macau” aflorem e ressintam sentimentos de nostalgia pelos velhos sinais de soberania, sem contudo deixarem de se constelar à volta do mundo que vai crescendo e ultrapassando o que foi o nosso “estar ali”. Não há neles, poemas, a manifestação de melancolias amargas ligadas a uma ou outra forma de ressentimento, naturais quando se dão mudanças tão fundas como as que ocorreram; existe, antes, como que uma espécie de sabedoria acumulada, oriunda da experiência vivida, que repercute uma estável sensação de tranquilidade no discurso de quem foi testemunha privilegiada das “portas abertas pelo tempo”. Do património de experiência feita de amor e de abertura ao mundo brotou uma poesia tecida de delicados fios e sensíveis vibrações, atenta ao particular e ao geral, viajando no tempo até à infância iluminada e ao beijo materno, detendo-se no presente com a curiosidade própria de quem é parte da diferença, e sugerindo até, nalguns lances, subtis metamorfoses na curta linha do verso, de significação ambígua, como a ponta de um segredo que não se quer completamente desvendado: “Desato os sistemas reais / brancas pérolas / em que complicadas servidões / quase nos ataram.”
Obra de maturidade, de reflexão e, a espaços, de uma ternura que comove, Poemas de Macau mostra-nos um Menano empenhado em celebrar um solposto opulento e jamais a noite entremostrada no horizonte crepuscular como um monstro de garras de fora pronto para tudo. Para tal concorre o gosto de viver, de escrever, de pintar e de amar, de que esta poesia, por si só, é espelho fiel, remetendo para as calendas as angústias pela proximidade da mãe de todas as separações quando tanto há ainda para fazer. Num poema ou num quadro, reter o “zumbido do mosquito” é preferível a ignorá-lo. Atento à vida, à carnal alegria do sol a despedir-se em beleza para a sua viagem ao fim da noite, o poeta reabilita a palavra e com ela suspende o tempo para que o zumbido do mosquito possa sobreviver no verso que o designa. E nessa arte de dizer o indizível e de celebrar o improvável vai o poeta juntando pequenas grandes emoções no seu saco de feitiços, para seu e nosso prazer, enquanto é tempo, enquanto há tempo.
Poemas de Macau , um aceno de generosa harmonia com a vida.