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JÚLIO CONRADO. |
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Dois livros, um prémio |
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A decisão do júri do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores de distinguir Longe de Manaus, de Francisco José Viegas, como o melhor livro, numa daquelas categorias, publicado em Portugal no ano de 2005, não pode deixar de suscitar estranheza quando estava a concurso, pelo menos, um grande romance de Dulce Maria Cardoso: Os Meus Sentimentos. Se eu tivesse feito parte do júri, teria rejeitado o primeiro e puxado pelo segundo. Fui leitor atento das duas obras e sei porque escolheria a ”perdedora”. Sublinho a tangencial vitória. Do mesmo modo que me confesso em absoluto ignorante do que trata o romance histórico votado por dois quintos dos jurados. Ainda assim, julgo valer a pena um pequeno exercício comparativo que permita organizar a defesa da minha desembaraçada escolha sem descurar o sentido de equilíbrio e de justiça de que julgo os dois trabalhos merecedores. E se escrevo trabalhos, é porque em ambos os casos há suor laboral a brotar, intenso, do corpo da escrita, enquanto esta mais e mais se distende, mais e mais se move no caos ou deambula pelos labirintos por ela própria criados.
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LONGE DE MANAUS
Francisco José Viegas
Lisboa, Edições ASA, 2005 |
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Paródia ou nem tanto |
Há anos, discorrendo sobre um dos policiais de Viegas, referenciei-o como ocupando uma zona híbrida em que a fala do escritor oriundo de meios literários cultos se apropria das ferramentas do romance de mistério e as usa na concatenação de intrigas inflacionadas de “factos” e de “situações” atentatórias da economia do texto, tal como esta é definida pelas regras “canónicas” do subgénero. Com isto, avançava-se para a promoção da literatura “menor” a “maior”, sem se saber ao certo se os níveis de contaminação provocariam ou não o fenómeno inverso: a grande literatura dinamitada pela acumulação de casos de muito crime e pouco castigo tentando ainda passar por aquilo que já estava a deixar de ser. No princípio, Viegas, recordemo-lo, pretendia “parodiar” o “género” mas afeiçoou-se a ele e deixou-se de paródias. Se Longe de Manaus não responde à questão de fundo, confirma indiscutivelmente F. J. V. como autor de literatura policial, estatuto que nele assenta como uma luva depois de ter criado um “Pepe Carvalho” à sua medida, cruzado a sua literatura com a de Montalbán, Rubem Fonseca e outros mestres do policial, aos quais terá ido beber, e, last but not least, aceitando essa sua imagem como uma espécie de selo de garantia – assim se lê no final do livro: outras obras de Francisco José Viegas, na publicidade das quais as palavras mortos e/ou assassinados e investigação aparecem sempre associadas. Bem tenta escapar-se: Um romance policial, como se sabe, tem as suas regras. Este [Longe de Manaus] não tem. Mas já não pode sair do buraco que levianamente procurou.
Tudo o que seja extrapolar do âmbito em que o autor se coloca e coloca o livro é, pois, violar o desejo de assim permanecer, sem dúvida para seu comprazimento e deleite do público afecto. Estamos por conseguinte confinados – confina-nos o autor – aos horizontes existenciais do “veterano” inspector Jaime Ramos, um desconfiado estrutural que filosofa segundo a experiência profissional, pese embora a habilidade nos procedimentos instrutórios que lhe permite ir juntando as pontas do fios de vários matizes do enigma, e são muitas; e aos dos seus adjuntos, menos versados nos assuntos da vida, que se comportam como formiguinhas trabalhadeiras na obtenção dos “elementos de prova” conducentes à identificação do criminoso.
Em Longe de Manaus há uma espécie de geografia lusófona do crime. Luanda, Porto, Amarante, Manaus, S. Paulo, Rio de Janeiro, Guiné, Cabo Verde, são os lugares da errância do ódio que o desmoronar do império compatibilizou com ajustes de contas, fraudes, “desaparecimentos” espontâneos e involuntários, suspeitas fundadas e infundadas, num imenso tráfico de pessoas e influências a que não falta o picante da miscigenação. Esta vocação geo-centrífuga do discurso policiário de Viegas está patente noutros livros em que a acção se desenvolve em torno das investigações do detective Jaime Ramos: da Lourenço Marques colonial à Irlanda, dos Açores ao Finisterra galego, do México a Cuba, etc., à mobilidade do crime corresponde a mobilidade do inquérito e do inquiridor. E nessa forma de despacializar a trama ambiciona Viegas cumprir, talvez, um desígnio secreto: o de ilustrar a sua escrita com adornos de tal modo descontextualizados que o expediente lhe consinta apresentar-se à “inteligência” como alguém que “cultiva uma escrita poética e emocional” cruzada “com a frieza típica do género policial”, em que “o futebol é um mundo restrito e simbólico que acaba por dar sentido à falta de sentido da vida” e através da qual se faz “a crítica subtil ao Portugal pequeno burguês e convencido da sua importância, os perigos da paixão, a arrogância do mundo da cultura”. No caso em apreço, está-se em face do “romance da solidão portuguesa, o retrato distante e desfocado de um país abandonado às suas memórias e ao seu desaparecimento.” Magnífico programa, grandes objectivos, alta estratégia literária. E quem temos para materializar projecto de tão vasto alcance? Jaime Ramos. Um homem dotado de talentos de observação e dedução que fazem dele raposa sabida da polícia, mas de espírito limitado. O que nos é dado ler deste grandioso plano de desarrumação dos arquétipos da identidade portuguesa acaba por ser sempre, por mais que o narrador interfira com umas “cunhas” a atirar para o intelectual, a visão do veterano Jaime Ramos acerca do mundo e do país: uma visão redutora, cansada como ele - indivíduo formado por saberes e preocupações definitivamente fora deste tempo.
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A (pouca) importância do adereço |
Um dos trunfos do A. lança mão para seduzir o leitor “informado” consiste em recrear-se com extensas descrições naturalistas laterais ao reportório clássico do romance policial, assim subvertendo a economia textual canónica e introduzindo no livro páginas e páginas de inventários quase inúteis. É certo: a lição do nouveau roman recomenda que se mobile o discurso literário até à exaustão mas há igualmente quem tenha não menos exaustivamente desancado o naturalismo ao estabelecer as diferenças entre narrar e descrever, tudo isto antes de Viegas ter nascido para a literatura. Se o melhor do nouveau roman conseguia, não obstante, “narrar” e “descrever” simultaneamente, porque aí o objecto “significava”, o que temos em Longe de Manaus são colecções de adereços cuja importância se esgota na mera função decorativa. A minúcia jornalística contribuirá para robustecer uma reportagem mas obra com quatrocentas e quarenta e três páginas dispensa bem a precaridade de tais excursos. E porque Viegas a eles recorre de forma deliberada e reiterada, cortando o ritmo à narrativa sem estilisticamente a enriquecer, o decorativismo acaba por não vingar, não porque não sejam por vezes atractivos os enfeites, mas porque em boa verdade pouco fazem ali. Veja-se um curto exemplo do não-estilo a querer passar por estilo:
Tens um nome… doze camisas dobradas, a maior parte delas brancas, alguns pares de calças, dois fatos completos, quatro pares de sapatos, umas botas, um par de chinelos de quarto trazidos de um Hotel Holyday Inn, uma lâmina de barbear, um frasco de espuma de barbear, água-de-colónia, after-shave, escova de dentes, seis toalhas de banho, duas toalhas de rosto, um pullover azul, catorze pares de meias escuras, dois deles por estrear, seis gravatas, dezasseis pares de boxers…
E isto é só uma pequeníssima dose do que parece ter fascinado os jurados maioritários do GPRN e espera o leitor desprevenido para o desassossegar.
Um dos aspectos singularizados pela sua relevância no texto diz respeito aos registos linguísticos alternantes, produto das “alucinações” do narrador, que ora escreve em português de Portugal, ora em português do Brasil, num alarde de versatilidade idiomática que mais parece um piscar de olho à clientela sul-americana do que outra coisa. Ainda aqui Viegas, na minha opinião, vai beber a Rubem Fonseca, tal como o conheço de Agosto ou de A Grande Arte, principalmente no que aos diálogos concerne, embora o tecido comum da Língua aceite sem dificuldade a coexistência das falas e o escritor português demonstre fino engenho ao capitalizar a seu favor esse potencial de diferença, mormente na adequação do português do Brasil ao rastreio do que se passa no submundo das gritantes desigualdades sociais no chamado país irmão. São dramáticos os relatos respeitantes a certas peculiaridades da vida brasileira na perspectiva do chefe policial Osmar Santos, que em Longe de Manaus ganham, pela verosimilhança e pela intensidade das reconstituições dos cenários de crise, os espaços de denúncia e fruição desperdiçados com outras menos logradas iniciativas de efabulação.
Um só reparo mais: o leitor chega à parte final do livro e ainda estão a “entrar” personagens com influência no esclarecimento do caso. Dá a ideia de que se Jaime Ramos, continuando em fuga para a frente, esticasse a corda, mais gente caberia no romance em prejuízo da coesão da história – uma história que mesmo assim poderia contar-se em menos de duzentas páginas se o autor considerasse algumas das regras que diz negligenciar e que, observadas, teriam seguramente ajudado a poupar papel, tinta, tempo, paciência e a optimizar a eficácia da coisa.
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OS MEUS SENTIMENTOS
Dulce Maria Cardoso
Lisboa, Edições ASA, 2005 |
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Uma estética da fealdade |
No caso de Os meus Sentimentos a malha romanesca fia mais fino. Em vez de crime, há acidente; em vez de investigação, memória; em vez de dispersão, cristalização. A história “começa” com um acidente de estrada no momento em que a sinistrada recupera os sentidos e percebe que se encontra imobilizada. Assim permanecerá até que a equipa de salvamento consiga retirá-la dos destroços da viatura e conduzi-la ao hospital, onde chegará “já cadáver”. Nesse meio tempo de espera na ante-câmara da morte, a narradora-protagonista dá-se conta de que a estrutura mental não foi afectada pela violência do desastre e entrega-se a uma reconstituição da sua vida mapeando todos os lances de relevo até ao que seria um corajoso corte com o passado – a venda da velha casa, que precedera de pouco tempo o acidente. Quando escolhera dar passos concretos para alcançar um novo futuro, eis que num dos instantes finais lhe acode ao pensamento a pergunta: Para onde foi o futuro?
A nomenclatura do texto propõe uma estética da fealdade. Uma protagonista feia, uma família feia, um meio laboral feio, ligações incestuosas feias, gente com passado feio, um presente feio – sem futuro. Salva-se aquela que Violeta considera a melhor parte de si, a filha, raio de luz num panorama sombrio. Mas não só. Nesta estética do feio não cabe a escrita sem concessões de Dulce Maria Cardoso. Que é rigorosa, ritmada e forte. Através dela, a A. faz gala de uma notável capacidade de resistência à erosão rápida do assunto: não larga o filão enquanto sente não ter sujeitado completamente a fala do texto ao seu programa discursivo. Se o léxico e o estilo ressentem algum eco de Proust ou de Vergílio Ferreira, o que não é necessariamente um mal, a amplitude alcançada pela narrativa em torno do eixo de uma realidade comezinha incessantemente efabulada comporta um poderoso desafio ao leitor. Esta “máquina literária prodigiosa”, como lhe chamou Maria da Conceição Caleiro, não afrouxa uma página. A isto é costume chamar-se fôlego.
O golpe de asa prodigioso vem quase no fim do livro quando o corpo de Violeta e o seu espírito deixam de ser um só, cabendo a este a responsabilidade de prosseguir a narração num patamar sobre-natural mas atido à lógica do mundo, sublevando a relação espaço-tempo com a perda da visibilidade mas descodificando e reduzindo a pó em contundente tom sarcástico (graças a essa transcendência terra-a-terra) no serviço fúnebre em honra do corpo despedaçado, os rituais de apresentação de condolências (os meus sentimentos) e outras hipocrisias correlatas.
Isto dito, já se percebeu de que lado estou. É verdade que ninguém me pediu para tomar partido. Mas também por ninguém fui coagido a não o fazer.
S. João do Estoril, 22 de Julho de 2006 |
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